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Processo n.º 293/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. Relatório
O Clube A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, do acórdão proferido
pela Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol em 11 de Dezembro
de 2007, nos termos do qual o recorrente foi, em suma, condenado a indemnizar
determinados clubes desportivos pela formação do jogador B.. Apresentou, para
esse efeito, o seguinte requerimento:
CLUBE A., requerido nos autos supra referenciados, notificado do Acórdão de
11.12.2007, que pôs termo ao processo, vem, ao abrigo do estatuído nos arts.
70.º n.º 1 alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional e 280º, nº 1, alínea b)
da CRP, e porque sempre defendeu que o Tribunal aplicou normas feridas de
inconstitucionalidade, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com o
fundamento de que a decisão final do pleito se fundou no Regulamento de
Transferências de Jogadores Profissionais adoptado pela Federação Portuguesa de
Futebol, o qual padece de inconstitucionalidade orgânica por se tratar de
matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República, nos
termos do disposto no art. 165.º/b) da CRP, como foi oportunamente alegado no
requerimento de oposição (cfr. arts. 6.º, 7.º, 8.º e 9.º da referida peça).
Por outro lado, estando em causa matéria respeitante a relações laborais, ou
seja sobre direitos dos trabalhadores, não poderia o regime em causa ser
instituído através de Regulamento Federativo, mas apenas por instrumento de
regulamentação colectiva de trabalho, verificando-se, também por esta via, a
violação directa de normativos constitucionais, nomeadamente do disposto nos
arts. 55.º, 56.º e 59.º da CRP, o que acarreta a inconstitucionalidade das
normas do Regulamento em causa (cfr. arts. 6.º, 7.º, 8.º e 9.º da oposição).
Todavia, o requerimento foi indeferido por despacho do seguinte teor:
Presente requerimento do Clube A. de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional do acórdão proferido nesta Comissão nos autos do Processo nº 1
6/CA-07/08.
Cumpre decidir.
Afirma a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional que compete ao tribunal que
tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso
(art. 76 n.º 1 da Lei 28/82 com a redacção da Lei 13-A/98).
Mais refere a Lei que o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional deve ser indeferido quando a decisão o não admita ou ainda, no
caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º, quando
forem manifestamente infundados (art. 76º n.º 2).
Ora, a norma constante do nº 2 do art. 14º do Regulamento do Estatuto da
Inscrição e Transferência de Jogadores (REITJ), aplicável processualmente aos
presentes autos, estabelece que a Comissão de Arbitragem decide a título
definitivo, não cabendo recurso das suas decisões.
Por outro lado, de acordo com a Lei da Arbitragem Voluntária (Lei 13/86), a
autorização dada aos árbitros para julgarem segundo equidade, como é a situação
do caso concreto, envolve a renúncia aos recursos.
Deste modo, tendo em consideração que a admissibilidade de recurso de qualquer
decisão é determinada pela lei processual aplicável e que, “in casu”, a mesma
impede tal admissibilidade, decide-se não admitir o recurso interposto,
indeferindo-se o mesmo, não se apreciando a sua fundamentação.
Inconformado, o recorrente reclama directamente para o Tribunal Constitucional
contra a decisão que lhe não admitiu o recurso, nos termos do n.º 4 do artigo
76º da LTC, alegando:
CLUBE A., pessoa colectiva no -------, com sede na Rua ------------, ----,
---------- vem, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 76º, nº4 da
Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), reclamar do
despacho proferido, em 7 de Fevereiro de 2008, notificado ao ora reclamante em
15 de Fevereiro de 2008, pelo Exmo. Senhor Presidente da Comissão de Arbitragem
da Federação Portuguesa de Futebol, no Processo nº 16/CA-07/08, que indeferiu o
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o que
faz nos termos e pelos fundamentos seguintes:
I – Preliminarmente
A 1. Em 11 de Dezembro de 2007, foi proferido acórdão pela Comissão de
Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, no âmbito do processo supra
referenciado, do qual foi o ora Reclamante notificado em 28 de Janeiro de 2008,
na qualidade de Requerido nos autos.
2. O litígio foi cometido pelas partes — o ora Reclamante na qualidade de
Requerido e os clubes C., D., E. e F., na qualidade de Requerentes — à decisão
arbitral, tendo-se a Comissão de Arbitragem constituído nos termos do artigo
10.º do Regulamento de Transferências de Jogadores Profissionais (doravante
abreviadamente designado por R.T.J.P.) que faz parte integrante do anexo ao art.
104.09 do Regulamento de Provas Oficiais da F.P.F..
3. Ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.º 1 do Anexo ao R.TJ.P., os
Requerentes nesses autos — C., D., E. e F. — reclamaram o pagamento de uma
compensação pela formação e promoção do jogador B., titular da licença F.P.F. no
------, que representou os quatro clubes como amador nas épocas de 1994/1995;
1995/1996, 1996/1997 e 1997/1998; 1998/1999; e 1999/2000 e 2000/200 1
respectivamente, pelo facto de o atleta ter celebrado um contrato de trabalho
desportivo com o clube Requerido e ora Reclamante — Clube A. — através do qual
teria adquirido o estatuto de profissional, na data de 13 de Setembro de 2005.
4. Nos termos da douta sentença arbitral, a Comissão de Arbitragem da F.P.F.
decidiu que assiste aos quatro clubes Requerentes o direito a que lhes sejam
arbitradas indemnizações pela formação do atleta em causa, aplicando-se ao caso
concreto os preceitos legais constantes do R.T.J.P., designadamente os seus
artigos 4º, n.º 1 e 2.º do Anexo, mais decidindo pelo rateio da indemnização
pelos referidos clubes na proporção das épocas em que o jogador representou cada
um deles.
5. A Comissão de Arbitragem da F.P.F. deu, assim, parcial provimento aos pedidos
dos Requerentes, acordando em fixar, por equidade, o montante indemnizatório
global em €29.700,00 (vinte e nove mil e setecentos euros), acrescido dos juros
legais respectivos, nos termos do artigo 5º, n.º 2 do Anexo ao R.T.J.P., rateado
da seguinte forma:
a) C. € 2.700,00 (dois mil e setecentos euros);
b) D. € 8.100,00 (oito mil e cem euros);
c) E. € 2.700,00 (dois mil e setecentos euros);
d) F. € 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros).
II – Da reclamação
6. Nos termos conjugados do disposto nos arts. 70.º, n.º1, alínea b), 75.º,
75º-A e 76º, todos da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, e do constante no
art. 280º, n.º 1, b) da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), em 31 de
Janeiro de 2008, o ora Reclamante interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional da decisão arbitral acima referenciada.
7. O Exmo. Presidente da Comissão de Arbitragem da F.P.F. proferiu despacho de
não admissão do recurso, invocando, para o efeito, o artigo 14º do Regulamento
do Estatuto, da Inscrição e da Transferência de Jogadores (R.E.LTJ.), aplicável
processualmente aos autos, que prescreve que a Comissão de Arbitragem decide a
título definitivo, não cabendo recurso das suas decisões, bem como o disposto na
Lei da Arbitragem Voluntária (Lei nº 13/86, de 29 de Agosto), nos termos da qual
a autorização dada aos árbitros para julgarem segundo a equidade determina a
renúncia aos recursos.
8. Salvo melhor opinião, do aludido despacho da Comissão de Arbitragem da F.P.F.
que indeferiu o requerimento de interposição do recurso não pode o ora
Reclamante deixar de apresentar a presente reclamação, porquanto se não acham
fundamentos legais bastantes que possam sustentar a posição da Comissão de
Arbitragem da F.P.F. de não admissão do mencionado requerimento de recurso.
Senão vejamos,
9. A decisão em causa foi proferida por uma Comissão de Arbitragem da F.P.F., na
qualidade de tribunal arbitral institucionalizado, constituído ao abrigo da Lei
nº 36, de 29 de Agosto (de ora em diante, abreviadamente designada por LAV),
para dirimir conflitos emergentes da aplicação dos dispositivos regulamentares
próprios da F.P.F.
10. Apesar do carácter convencional da arbitragem directamente decorrente do
art. 1º, nº 1 da LAV, a lei equipara a função arbitral à função judicial no seu
escopo típico — a resolução de um litígio com o mesmo valor jurídico de uma
sentença de um tribunal de primeira instância — funcionando o tribunal arbitral
no âmbito da estrutura jurisdicional do país em que está inserido e exercendo
funções jurisdicionais e poderes soberanos, no estritos limites da lei.
11. Nessa medida, não obstante ter o Exmo. Presidente da Comissão de Arbitragem
sustentado que a decisão arbitral não admite recurso porque a Comissão de
Arbitragem decide a título definitivo, com base no artigo 14º, nº 2 do REITJ,
renunciando as partes ao recurso das suas sentenças, sempre se dirá que o
recurso para o Tribunal Constitucional é imperativamente irrenunciável, tanto no
domínio dos tribunais comuns como no dos tribunais arbitrais.
Com efeito,
12. O artigo 73.º da Lei do Tribunal Constitucional assim estatui, ao dispor que
“o direito de recorrer para o Tribunal Constitucional é irrenunciável”.
13. Chamando aqui à colação os ensinamentos académicos sobre os instrumentos ou
fontes do Direito Português e sobre o seu ordenamento hierárquico, em
articulação com o disposto no artigo 112º d CRP, as leis emanadas da Assembleia
da República imperam sobre quaisquer regulamentos, nomeadamente de matriz
federativa.
Assim,
14. Não poderão quaisquer normas regulamentares ditar que uma Comissão de
Arbitragem decide a título definitivo, com o alcance de determinar a
renunciabilidade do recurso para o Tribunal Constitucional.
Por outro lado,
15. Sendo a Comissão Arbitral uma entidade com competência jurisdicional que, à
face da LAV, tem a natureza de tribunal arbitral submete-se, por isso, às suas
disposições, nomeadamente em sede de recurso das decisões arbitrais.
16. Nos termos do artigo 29.º da citada LAV, “se as partes não tiverem
renunciado aos recursos, da decisão arbitral cabem para o Tribunal da Relação os
mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelo tribunal de comarca”
comportando este preceito apenas os recursos ordinários.
17. Dele se excluindo, por interpretação sistemática, os recursos de tais
decisões para o Tribunal Constitucional, que são imperativamente irrenunciáveis.
18. Nestes termos, por entender que a decisão arbitral “in casu” admite recurso
para o Tribunal Constitucional, o ora Reclamante não pode deixar de reclamar do
despacho de indeferimento proferido pela Comissão de Arbitragem, devendo a mesma
merecer provimento.
Para além de que,
19. No seu requerimento de oposição à liquidação e aos pedidos formulados pelas
Requerentes, o então Requerido e ora Reclamante suscitou logo a
inconstitucionalidade do R.T.J.P. adoptado pela F.P.F., no qual se fundou a
decisão final do pleito.
Com efeito,
20. No entendimento do Reclamante, escudado num douto Parecer da Procuradoria
Geral da República — Parecer nº 7/2001, publicado no DR, II.ª Série, no 139, de
18/06/2001, e homologado por despacho do Senhor Ministro da Juventude e
Desporto, de 2 de Maio de 2001 — o citado diploma regulamentar padece de
inconstitucionalidade orgânica por se tratar de matéria de reserva relativa de
competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165º, n.º 1, b) da
CRP, na medida em que, no quadro definido pela Lei nº 28/98, de 26 de Junho,
oportunamente invocada pelo Reclamante no seu requerimento de oposição, a
obrigação de pagamento de uma compensação por formação, decorrente da celebração
pelo formando do primeiro contrato de trabalho como profissional, com entidade
empregadora distinta da entidade formadora, só pode ser estabelecida por
convenção colectiva.
21. Nessa conformidade e por maioria de razão, essa mesma obrigação não pode ser
estabelecida por regulamento federativo, pelo que as disposições do RTJP
invocadas pelas Requerentes, ao conterem disciplina inovadora em matéria de
reserva relativa de competência da Assembleia da República nos termos
explanados, estariam feridas de inconstitucionalidade orgânica, como assim fez
constar o Reclamante nos arts. 6.º, 7.º, 8º e 9.º do seu requerimento de
oposição. E,
22. Estando em causa matéria respeitante a relações laborais, incidente sobre os
direitos dos trabalhadores, o regime em apreço só poderia ser instituído através
de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, pelo que, também nessa
medida, está o mesmo ferido de inconstitucionalidade, por violar directamente o
disposto nos arts. 55.º - Liberdade Sindical - 56º - Direito das Associações
Sindicais e Contratação Colectiva - e 59º - Direitos dos Trabalhadores - da CRP,
o que o Reclamante veio invocar em sede de oposição, nos citados artigos 60, 70,
8º e 9º do respectivo requerimento.
23. Ademais, no artigo 39.º do requerimento de oposição, veio o Reclamante
suscitar a inconstitucionalidade material das disposições do RTJP, na parte em
que consagram o direito a uma compensação pela formação com base em critérios
matemáticos abstraindo da prova da efectiva formação do jogador pelo clube
reclamante, por violação directa dos preceitos constitucionais (arts. 58.º e
59.º da CRP).
24. A decisão proferida não considerou a questão da inconstitucionalidade do
normativo do RTJP que o ora Reclamante, na qualidade de Requerido nesses autos,
oportunamente questionou, limitando-se a nela aplicar tais preceitos
regulamentares.
25. Em face do que antecede e estabelecendo os artigos 280.º, n.º 1, b) e n.º 2
da CRP e 70º, n.º 1, b) da Lei do Tribunal Constitucional que cabe recurso para
o Tribunal Constitucional de decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, é por demais
evidente que o requerimento de interposição de recurso ora em apreço se deveria
ter sido admitido pela Comissão de Arbitragem. Na verdade,
26. O normativo cuja constitucionalidade o ora Reclamante pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie – R.T.J.P. – constituiu a “ratio decidendi” da
decisão, sendo que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada em tempo e
de modo funcionalmente adequado.
27. Nessa medida, a pronúncia sobre a sua eventual inconstitucionalidade é por
demais relevante, porquanto terá inquestionavelmente reflexos jurídicos sobre a
decisão da causa.
28. Em sede de ónus de suscitação, no âmbito de um sistema de fiscalização
concreta de constitucionalidade das normas de controlo difuso por via do
recurso, rege o princípio de que “todos os tribunais podem e devem não só
verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos feitos em
juízo, como recusar a aplicação das normas que considerem inconstitucionais” em
abono do princípio tradicional e basilar do direito constitucional português do
acesso directo dos tribunais à Constituição (cfr. A Jurisdição Constitucional em
Portugal, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró,
Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss).
29. Assim será mesmo quando o litígio seja dirimido perante um Tribunal
Arbitral, porquanto é este um verdadeiro tribunal que exerce funções
jurisdicionais e poderes soberanos, ainda que não estejam os árbitros sujeitos
em rigor ao estatuto privativo dos Juízes.
30. É, pois, inquestionável que a questão de inconstitucionalidade das normas do
aludido R.T.J.P. que os Requerentes invocaram nos citados autos foi suscitada
pelo Reclamante durante o processo perante o Tribunal Arbitral e nunca “ex post
factum” bem como que, em face do teor da decisão, o juiz/árbitro não tomou
qualquer posição directa sobre a mesma, tendo antes aplicado as disposições
regulamentares sobre as quais incidiu a invocação de inconstitucionalidade nos
autos pelo Reclamante.
31. Diferente questão se poderia nesta sede levantar quanto à competência do
Tribunal Constitucional para apreciar a constitucionalidade de normas de
natureza regulamentar desportiva, no domínio da fiscalização concreta da
constitucionalidade e da legalidade. Porém,
32. Atendendo a que juridicamente os regulamentos são qualificados como normas e
que, nos termos do disposto nos artigos 277º e seguintes da C.R.P. e 6º da Lei
do Tribunal Constitucional, incumbe nuclearmente ao Tribunal Constitucional
apreciar a inconstitucionalidade de quaisquer normas, caberá recurso para este
Tribunal das decisões dos tribunais — designadamente arbitrais — que apliquem
norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
33. A elaboração doutrinal e da jurisprudência constitucional apontam para
conceder ao conceito “norma” um largo âmbito de cobertura de actos normativos,
“independentemente da sua natureza, da sua forma, da sua fonte ou da sua
hierarquia” nas palavras de Gomes Canotilho (cf. Direito Constitucional, 5. ed.,
Coimbra, 1991, p. 1008), por conseguinte atribuindo-lhe um sentido não
circunscrito à estatuição meramente formal, sem, no entanto, prescindir da
exigência da sua génese no poder normativo do Estado, em acepção lata
considerado. Ou seja, o que se visa com o sistema é o controlo dos actos
emanados desse poder normativo, o que vale por dizer “daqueles actos que contêm
uma ‘regra de conduta’ ou um ‘critério de decisão’ para os particulares, para a
Administração e para os tribunais” (cfr. Acórdão n.º 168/88, publicado no Diário
da República, 1. a série, de 11 de Outubro de 1988).
34. Acresce que o estatuto de utilidade pública desportiva atribui a uma
federação desportiva, em exclusivo, a competência para o exercício, dentro do
respectivo âmbito, de poderes de natureza pública, bem como a titularidade de
direitos especialmente previstos na lei, sendo que, por força disso, está
subordinada inevitavelmente ao artigo 266º, no 2 da C.R.P., nos termos do qual
deverá actuar no exercício das suas funções — designadamente quando aprove
regulamentos federativos — com respeito por todos os preceitos constitucionais.
35. Salvo melhor opinião, atentos os motivos expostos, os dispositivos
regulamentares federativos podem, com efeito, ser objecto de fiscalização
concreta da constitucionalidade.
Termos em que deve a presente reclamação ser atendida e o recurso admitido para
serem apreciadas e decididas as inconstitucionalidades invocadas,
determinando-se à Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol a
avocação do processo.
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional teve vista nos
autos e emitiu o seguinte parecer:
A razão invocada para a não admissão do recurso de constitucionalidade
interposto é, a nosso ver, improcedente: na verdade, a circunstância de não ser
admitido recurso ordinário de certa decisão não inibe a admissibilidade de
interposição de recurso de fiscalização concreta, cujos pressupostos se mostram
preenchidos (assim, por ex., conforme entendimento uniforme, e reiterado, a
inimpugnabilidade da decisão proferida, em processo de reclamação, pelo
Presidente do tribunal Superior em nada afecta a admissibilidade de impugnação
da decisão que confirma a não admissão do recurso perante este Tribunal
Constitucional).
Importa, porém, determinar se se verificam os demais pressupostos de
admissibilidade do recurso – e, desde logo, se a decisão proferida pela Comissão
de arbitragem se pode configurar como “decisão de um tribunal”, directamente
impugnável perante o Tribunal Constitucional: note-se que o reclamante admite
que o acórdão arbitral, proferido nos autos, corresponde a uma decisão proferida
por um “tribunal arbitral institucionalizado”, constituído ao “abrigo da Lei nº
31/86, de 29 de Agosto”, “para dirimir conflitos emergentes de aplicação dos
dispositivos regulamentares próprios da F.P.F.”
A qualificação como “tribunal arbitral voluntário” do órgão em causa
pressupõe que, na sua composição e funcionamento, o mesmo obedeça aos regimes
prescritos na Lei nº 31/86, como modo de garantia da plena independência e
imparcialidade dos árbitros, no exercício da tarefa materialmente jurisdicional
que os litigantes lhes cometem – destrinçando claramente tal figura dos
instrumentos e formas de composição não jurisdicional dos conflitos (art. 202º,
nº 4, da CRP).
Na verdade – e como se decidiu, de forma paradigmática, no ac. nº 52/92 –
não é constitucionalmente admissível a submissão de um litígio privado a um
“tribunal arbitral” sem que esteja plenamente assegurada – atento, nomeadamente,
o modo de designação dos árbitros – a independência e imparcialidade dos
juízes-árbitros que o integram.
Tal desiderato é alcançado, no sistema da Lei nº 31/86, pelo mecanismo de
designação dos árbitros previsto no art. 7º, pressupondo ou o acordo originário
dos litigantes, expresso designadamente logo na convenção de arbitragem
(indicando directamente os árbitros ou fixando o modo da sua escolha); ou, na
falta deste, a designação de um árbitro por cada uma das partes, cabendo aos
assim designados, por um mecanismo de cooptação, escolher o árbitro que deve
completar a constituição do tribunal.
Estes princípios são respeitados pelo regime que institui o “Tribunal
Arbitral” que exerce “obrigatória jurisdição” quanto aos litígios que ocorram
entre a FPF e os sócios ordinários e agentes desportivos, a propósito da
aplicação dos Estatutos e demais regulamentos (arts. 61º, e 74º, nº 3, dos
Estatutos da FPF).
Já não o são, porém, a propósito do funcionamento das Comissões Arbitrais
constituídas no âmbito de tal Federação, já que a alínea n) do nº 1 do art. 30º
dos respectivos Estatutos atribui ao Presidente da FPF a competência para nomear
o Presidente das ditas Comissões Arbitrais (cf. ainda os arts. 14º, nº 4, do
REITJ e 10º do RTJP, a fls. 90 e 119 dos autos).
Os Estatutos e Regulamentos em causa nos presentes autos quebram, deste
modo, o princípio basilar da autonomia da vontade das partes na designação dos
juízes-árbitros, imposto pelo art. 7º da Lei da Arbitragem como garantia
adequada da independência e imparcialidade do tribunal – cometendo a escolha do
juiz-presidente das referidas Comissões Arbitrais a um órgão administrativo,
dotado de competências executivas e de representação da FPF – e que integra a
própria Direcção (cfr. Arts. 30º e 31º dos Estatutos da dita FPF).
Ora, à semelhança do que se decidiu no citado ac. nº 52/92, entendemos que
a desconformidade do modo de designação dos árbitros que integram as Comissões
arbitrais constituídas no âmbito da FPF com o estatuído no art. 7º da Lei da
Arbitragem prejudica a possibilidade de tal órgão ser qualificado como “tribunal
arbitral”, ficando consequentemente precludida a possibilidade de as suas
decisões serem directamente impugnáveis perante o Tribunal Constitucional.
O relator proferiu, depois, o seguinte despacho, que fez notificar ao
reclamante:
O recorrente deverá ser notificado do Parecer do representante do Ministério
Público para, na medida em que são invocados novos motivos para a não admissão
do recurso que pretende interpor, poder responder.
Apura-se, por outro lado, que, pretendendo o mesmo recorrente interpor o seu
recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82 de 15 de Novembro, incumbir-lhe-ia ter definido a questão de
inconstitucionalidade mediante a enunciação das normas impugnadas efectivamente
aplicadas como ratio decidendi na decisão recorrida, o que não fez.
Às razões adiantadas no aludido Parecer acrescerá, porventura, mais este motivo
– a que, na oportunidade, cumpre ouvir o interessado – para não conhecer do
recurso.
O reclamante não respondeu, cumprindo agora decidir.
2. Fundamentos
Visa o Clube A. recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, do acórdão proferido
em 11 de Dezembro de 2007 pela Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de
Futebol, tendo apresentado ao presidente da aludida Comissão de Arbitragem o
requerimento já transcrito nos autos, a sustentar a inconstitucionalidade
orgânica e formal do Regulamento de Transferências de Jogadores Profissionais
adoptado pela Federação Portuguesa de Futebol, instrumento jurídico que teria
sido aplicado na decisão recorrida.
Todavia, antes mesmo de analisar as razões invocadas no despacho reclamado ou no
parecer do Ministério Público, que, por diverso fundamento, coincidem numa
solução de não admissão do recurso, há que apurar se o requerimento de
interposição de recurso observa os requisitos essenciais que habilitam o
Tribunal a proceder a essa análise.
É que, como se adiantou no despacho notificado ao Clube reclamante, o
requerimento de interposição do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro deve obrigatoriamente identificar a norma
ou as normas que, tendo sido aplicadas na decisão recorrida, são pretensamente
inconstitucionais; na verdade, estando vedada pela natureza do recurso uma
impugnação abstracta de normas contidas em determinado diploma, o primeiro
requisito de cuja verificação depende a admissão do recurso consiste
precisamente na enunciação da norma impugnada, pois só assim se permite ao
Tribunal constatar que essa determinação jurídica foi aplicada na decisão
recorrida com o sentido pretensamente inconstitucional denunciado pelo
recorrente.
Tal requisito ganha especial relevância no caso presente, perante a alegação de
vícios relacionados com inconstitucionalidade orgânica e formal, cuja solução
sempre passaria pela análise concreta da matéria em causa, e da sua qualificação
jurídica, para efeito de a enquadrar na exigência de uma forma mais solene de
aprovação.
Também não há dúvida de que é ao recorrente que incumbe satisfazer este ónus
relacionado a delimitação do objecto do recurso, não cabendo ao Tribunal
interferir nesta matéria e na liberdade de opção do interessado.
Todavia, o recorrente não identificou concretamente as normas que, retiradas do
aludido Regulamento de Transferências de Jogadores Profissionais, foram
decisivamente aplicadas na decisão recorrida, apesar de, em seu entender, serem
inconstitucionais, limitando-se a acusar genericamente o diploma de ser
infractor da Constituição. Ora, pelas razões já apontadas, não é possível, no
âmbito deste recurso, proceder a uma análise abstracta do diploma, sem
identificar a norma que, em concreto, não pode ser aplicada como ratio decidendi
da decisão por se mostrar desconforme com a Constituição.
Verificando-se esta omissão, não é possível determinar o objecto do presente
recurso, o que impede o Tribunal de o conhecer. Não pode, por isso, ser admitido
o recurso.
3.
Decisão
Nestes termos, julgando prejudicada a apreciação da restante matéria, decide-se
indeferir a reclamação, mantendo-se a decisão que o rejeitou. Custas pelo
reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 11 de Junho de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão
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