|
Processo n.º 667/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. intentou, no Tribunal Judicial de Estarreja, acção ordinária contra B., S.A.,
pedindo a sua condenação no pagamento de 14.208.016$00 correspondente a pensão
de aposentação respeitante ao período compreendido entre Abril de 1995 e Março
de 2000, bem como as respectivas prestações das mensalidades vincendas, a partir
desta última data, devidamente corrigidas anualmente, fundamentando o seu pedido
no artigo 30º do Estatuto da C., SARL (entidade a que sucedeu a B., EP e,
depois, a B., S.A., ora ré).
Após diversas vicissitudes, o Tribunal da Relação do Porto (fls. 719 e
seguintes), em sede de recurso de apelação, condenou a Ré a pagar ao Autor “a
quantia de 548,43 € relativa às pensões anuais em dívida correspondentes aos
cinco anos anteriores à citação da Ré, bem como as pensões vencidas desde essa
data (28.04.00), e as vincendas, acrescidas dos respectivos juros de mora, à
taxa legal, sucessivamente e em cada momento (…)”.
O Autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
746), formulando nas alegações respectivas (fls. 759 a 785), na parte que agora
mais interessa, as seguintes conclusões:
“[…]
10. A decisão recorrida, ao defender a aplicação, no caso concreto, do princípio
nominalista, elimina o efeito útil da presente acção, quando, como se sabe, um
dos deveres dos tribunais consiste justamente em acautelar o efeito útil de
qualquer acção (cfr. artigo 2º do CPC).
[…]
19. […] Recorde-se que o que se pretendeu com a instituição da pensão de
aposentação foi permitir que os administradores que cessassem essas suas funções
na C. pudessem manter um nível de vida idêntico àquele que tinham enquanto
administradores, por se considerar que dignificava a empresa dignificar os seus
antigos administradores, sendo certo que aquela pensão consubstancia o seu
sustento. O que parece justificar afinal que seja tomada em consideração a
desvalorização da moeda ocorrida desde 1974.
[…]
21. Depois, é por demais evidente a alteração das circunstâncias em que as
partes fundaram a decisão de contratar, entre elas, concretamente, a
desvalorização galopante e excessiva da moeda.
[…]
31. Finalmente, cabe referi-lo ainda, na interpretação dada no douto acórdão
recorrido aos artigos 2º do Código Processo Civil, 550º e 551º do Código Civil e
30º do Estatuto da C., SARL, o Tribunal da Relação do Porto violou o princípio
da confiança, ínsito nos princípios do Estado de direito democrático, para além
do princípio da segurança jurídica, inerente à função judicial, consagrados nos
artigos 2º e 9º, alínea b), assim como os direitos do acesso ao direito,
previsto no artigo 20º, da segurança social e solidariedade, expresso no artigo
63º e da terceira idade, consagrado no artigo 72º, todos da Constituição da
República Portuguesa.
[…]”
Por acórdão de 24 de Maio de 2007 (a fls. 860 e seguintes), o Supremo Tribunal
de Justiça negou a revista, tecendo, no que respeita à suscitada questão da
aplicação do princípio nominalista, as seguintes considerações:
“[…]
O Mº Juiz de Estarreja, depois de ter fixado em 35.659$00 o valor da retribuição
mensal do A., em Dezembro de 1974, acabou por, actualizando-o em face dos
índices do INE, dizer que, em Dezembro de 1999, tal correspondia a 811.886$60.
Daí partiu para a condenação da R. no pagamento ao A. de 60,754,01 €, “relativa
às pensões anuais em dívida correspondentes aos 5 anos anteriores à citação da
ré (12.150,80 € x 5 anos), bem como as pensões vencidas desde essa data (28 de
Abril de 2000), acrescidas dos juros de mora à taxa anual de 4%, e ainda as
vincendas, devidamente corrigidas de acordo com o índice da inflação”.
Mas a Relação do Porto, louvando-se na aplicação ao caso do princípio
nominalista, arredou a actualização preconizada pela 1ª instância, e condenou a
R. a pagar ao A. apenas “a quantia de € 548,43, relativa às pensões anuais em
dívida correspondentes aos cinco anos anteriores à citação da R., bem como as
pensões vencidas desde essa data (28.04.00) e as vincendas, acrescidas dos
respectivos juros à taxa legal”.
Pensamos que a tese propugnada pela Relação é a que está certa e por uma razão
mui simples: o art. 550º do CC consagra o princípio nominalista como regra para
o cumprimento de obrigações pecuniárias. Ao mesmo tempo, permite estipulação em
contrário.
Como bem acentua Baptista Machado, este princípio nominalista “não visa nem
impor o sistema monetário legal como unidade de medida para a determinação do
quantum da prestação pecuniária, nem impor ao credor da prestação pecuniária o
risco decorrente da oscilação do valor daquela moeda; mas apenas visa impor,
para efeitos de liquidação e pagamento do quantum devido, a aceitação da moeda
legal com o poder liberatório que se acha inscrito nas respectivas espécies
monetárias” (in Nominalismo e Indexação – Obra Dispersa, Vol. I, pág. 431 e
432).
Assim sendo, a regra a aplicar ao montante a que o A. tem direito a perceber é,
sem dúvida, a que consagra o princípio nominalista.
Só não seria assim se o A. tivesse alegado e provado que os estatutos da R. ou
os usos ou algum eventual acordo de empresa previssem a actualização da pensão a
que tem direito a título de aposentação.
Os Estatutos da R. (e nomeadamente o seu art. 30º) são totalmente omissos a
respeito de actualizações das ditas pensões. Daí que a respeito dos mesmos o A.
nada pudesse alegar com vista a obter a actualização da sua pensão.
Independentemente do que consta (melhor: não consta) dos Estatutos, poderia,
eventualmente, ter havido entre o A. e a R. um acordo no preconizado sentido de
actualização. Mas nada foi a esse respeito alegado.
Isto significa que, não tendo o A. invocado de qualquer estipulação a este
respeito, a regra a observar é a que resulta do princípio nominalista.
Ou seja, independentemente de, pelas mais diversas vicissitudes, se verificarem
situações de inflação ou de deflação, a pensão em causa mantém sempre o mesmo
valor.
Desta forma, estamos perante uma prestação que é nominalmente devida pela R. ao
A. tanto in solucione como in obligatione, o que significa que não se pode
qualificar a mesma como dívida de valor, o mesmo é dizer não actualizável.
Para além do montante devido pela pensão, fixada nos termos já referidos, a
única coisa que o A. tem ainda direito é a perceber juros, por força do disposto
no art. 806º do CC, atenta a mora da R..
O A. limitou-se a alegar que o seu ordenado mensal à data de 1974
corresponderia, em 1999, segundo os dados do INE, a 811.886$60, mas nada disse
sobre a possibilidade de actualização derivada ou do acordo estatutário da R. ou
de um outro qualquer, sendo certo que a ele competia tal alegação com vista a
obter o ganho pretendido, atento o preceituado no nº 1 do art. 342º do CC.
Competindo ao A. a alegação e subsequente prova da verificação de factos
integradores da verificação da excepção ao princípio nominalista, tal-qualmente
é permitida pelo já citado art. 550º do CC (“salvo estipulação em contrário”), a
solução, de acordo com a regra contida no art. 516º do CPC, não pode ser outra
que não seja a de não actualização da pensão a que o A. tem direito.
Tendo o Supremo, no acórdão de 27 de Maio de 2003, delimitado o direito do A. a
perceber a pensão de aposentação, tal como está prevista no art. 30º, nº 2 dos
Estatutos, aos duodécimos referentes aos últimos cinco anos anteriores à
citação, e por isso não prescritos, e aos vincendos, e tendo ficado provado que
o vencimento mensal do A. era de 35.650$00, fica explicada a nossa posição de
concordância total com o decidido a este respeito pela Relação do Porto.
Aqui chegados, é altura de podermos dizer que, salvo o sempre devido respeito
por posições adversas, não faz o mínimo sentido falar de ofensa aos princípios
da confiança, da segurança jurídica e do acesso ao direito, da segurança social
e solidariedade.
[…]”
Deste aresto recorreu A. para o Tribunal Constitucional (fls. 880 e seguintes),
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
explicitando o objecto do recurso nos seguintes termos:
“[…]
2. Em causa no presente recurso está a interpretação dada na decisão recorrida
ao art. 30° dos Estatutos da C. S.A.R.L., reduzidos a escritura pública
outorgada em 72.05.16 nas notas do 1° Cartório Notarial de Lisboa, e publicada
no Diário do Governo, III Série, n.° 129, de 72.06.02 […]
3. Concretizando, depois de ser reconhecido ao Autor, no douto acórdão
recorrido, o direito a receber da Ré a pensão de aposentação prevista no n° 2 do
citado art. 30º dos Estatutos da C., é ali entendido, no entanto e com
fundamento no princípio nominalista, decorrente do preceituado no art. 550º do
Código Civil, que aquela deve ser calculada com base na remuneração mensal de
Esc. 35.650$00 (€ 177,82), auferida pelo Autor em 1974, ou seja, sem
actualização — quando já lá vão 34 (trinta e quatro) anos e o Autor conta já com
a provecta idade de 82 (oitenta e dois) anos -, isto quando foi, oportuna e
devidamente, articulado por este, depois quesitado, resultando, finalmente,
provado que a importância de Esc. 35.650$00, em Dezembro de 1974, corresponde a
Esc. 811.886$60 €4.049,97), em Dezembro de 1999, sendo certo que a acção dos
autos foi instaurada em Março de 2000 […];
4. Com a consequência de a Ré estar, nesta data, limitada a pagar ao Autor, a
título de pensão de aposentação, o montante anual de € 548,43 (Esc. 109.950$00)
ou €45,70 (Esc. 9.162$00) mensais, isto é, valores verdadeiramente absurdos e
obscenos, por ficarem muito, mas muito, aquém, inclusivamente, seja do salário
mínimo nacional seja do rendimento mínimo garantido
[…]
8. Em suma e precisando, aquilo que o ora Recorrente pretende é ver apreciada a
constitucionalidade do n° 2 do citado art. 30° dos Estatutos da C. com base na
interpretação que lhe é conferida através do douto acórdão recorrido, onde é
defendida a aplicação, sem mais, do princípio nominalista, previsto no art. 550°
do Cód. Civil, impeditivo da actualização do montante a ter em causa para o
cálculo do quantitativo devido pela Ré ao Autor a título de pensão de
aposentação;
[…]”
Em conferência, por acórdão de 7 de Novembro de 2007, foi ordenado o
prosseguimento do processo mediante a notificação das partes para alegações, com
base nas seguintes considerações:
“[…]
Nas alegações de recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o
recorrente considerou a interpretação dada no acórdão da Relação aos artigos 2º
do Código Processo Civil, 550º e 551º do Código Civil e 30º do Estatuto da C.,
SARL, como susceptível de violar o princípio da confiança, ínsito nos princípios
do Estado de direito democrático, para além do princípio da segurança jurídica,
inerente à função judicial, consagrados nos artigos 2º e 9º, alínea b), assim
como os direitos do acesso ao direito, previsto no artigo 20º, da segurança
social e solidariedade, expresso no artigo 63º e da terceira idade, consagrado
no artigo 72º, todos da Constituição da República Portuguesa.
Tendo sido confirmada, pelo Supremo, a decisão recorrida, o recorrente interpôs
recurso de constitucionalidade por referência à interpretação dada ao artigo 30º
dos Estatutos da C., S.A.R.L., na perspectiva de que é aí «defendida a
aplicação, sem mais, do princípio nominalista, previsto no artigo 550º do Código
Civil, impeditivo da actualização do montante a ter em causa para o cálculo do
quantitativo devido pela Ré ao Autor a título de pensão de aposentação».
Numa primeira análise, poderia entender-se – tal como se ponderou na decisão
sumária agora reclamada - que o tribunal recorrido não aplicou a interpretação
normativa censurada pelo recorrente, visto que a especificação feita no
requerimento de interposição de recurso (e especialmente no seu ponto 8) aponta
para a ideia de que essa interpretação seria a que implicasse, em qualquer
circunstância (assim se compreendendo a locução sem mais), a subordinação ao
princípio nominalista, do que resultaria que em nenhum caso (nessa
interpretação) poderia ter lugar a actualização da obrigação.
Assim entendido, não poderia conhecer-se do objecto do recurso, porquanto o que
decorre do acórdão recorrido – e se torna claro pelo excerto que dele foi
transcrito – é que não foi feita qualquer interpretação, a partir do artigo 30º
dos Estatutos da C., S.A.R.L., que permitisse consagrar o princípio nominalista
sem quaisquer restrições. A adopção deste princípio, no caso, resulta tout court
do disposto no artigo 550º do Código Civil, que, por sua vez, apenas se tornou
aplicável por virtude de o Autor não ter alegado e provado que os estatutos da
Ré ou os usos ou algum outro eventual acordo de empresa previssem a actualização
da pensão da aposentação.
Da explicitação constante da reclamação parece resultar, porém, que a
interpretação que se pretende que constitua objecto do recurso é a que, por
aplicação do princípio nominalista, permite afastar qualquer actualização da
obrigação, salvo estipulação em contrário, o que leva a concluir que o que está
verdadeiramente em causa, no caso, é a própria norma do artigo 550º do Código
Civil (que de si já ressalva a estipulação em contrário).
Sendo assim, existe um maior grau de aproximação entre a interpretação
identificada no recurso de constitucionalidade e aquela que foi efectivamente
aplicada no acórdão recorrido.
O que o acórdão recorrido reconhece é que os Estatutos da Ré (e nomeadamente o
seu artigo 30º) são totalmente omissos a respeito de actualizações das ditas
pensões, e é essa omissão que determina a observância do princípio nominalista,
pelo que a norma que foi objecto de aplicação e ditou a solução jurídica do caso
foi a do artigo 550º do Código Civil.
Poderá aceitar-se, em todo o caso, que o resultado interpretativo tenha
envolvido também, ao menos de forma implícita, a aplicação do artigo 30º dos
Estatutos da C., S.A.R.L., no ponto em que se entenda que essa norma, ao não
prever qualquer actualização das pensões de aposentação, implica o funcionamento
do regime geral do artigo 550º do Código Civil.
Assim, e na dúvida, entende-se ser de ordenar o prosseguimento do recurso de
constitucionalidade, sem embargo de se manter sob escrutínio a questão, ainda
não analisada – e que pela sua complexidade se justifica que seja decidida
apenas a final -, de saber se o sobredito preceito do artigo 30º (resultante de
actuação em autonomia privada) poderá ser qualificado como norma para os efeitos
do dispostos no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
[…]”
Nas suas alegações (a fls. 959 e seguintes), o recorrente reputa de
“inconstitucional a norma do artigo 30.º dos Estatutos da C., S.A.R.L. (…)
quando aplicada com a interpretação e alcance dados àquele normativo, por aquele
tribunal, concretamente, quando entende que, por essa norma ser omissa, assim
como os referidos Estatutos em geral, a respeito da actualização das pensões de
aposentação nela previstas, funciona o regime geral do art. 550º do Código
Civil, ou seja, o princípio nominalista (…)”, e formula as seguintes conclusões:
“ […]
- Não obstante a pensão de aposentação reconhecida ao Autor corresponder a uma
dívida de valor, como prestação alimentar que é - a responsabilidade do seu
pagamento impende exclusivamente sobre a Ré -optou, no entanto, o tribunal
recorrido por submetê-la ao princípio nominalista, consagrado no art. 550º do
Código Civil, impeditivo da sua actualização;
- Encontra-se provado, nos autos — quesito 2° - que a importância de €177,82
(Esc. 35.650$00), em Dezembro de 1974, corresponde a €4.049,97 (Esc. 8
11.886$00), em Dezembro de 1999, sendo que entre a saída do Autor da empresa, em
74.12.11 e a presente data decorreram mais de 33 (trinta e três) anos; em que as
décadas de 70 e 80, por seu turno, coincidiram com um período altamente
inflacionista;
- Com a sujeição ao princípio nominalista resultou, naturalmente, anulado o
efeito útil da presente acção, quando, como é sabido, um dos deveres dos
tribunais consiste justamente em acautelar o efeito útil de qualquer acção (art.
2° do Cód. de Processo Civil);
- Ora, se com a interpretação e alcance dados, no acórdão recorrido, à norma do
artigo 30° dos Estatutos da C., S.A.R.L., resulta efectivamente anulado o efeito
útil da presente acção e, consequentemente, violado, o princípio da confiança,
ínsito nos princípios do Estado de direito democrático, assim como o da
segurança jurídica, inerente à função judicial e do acesso ao direito,
consagrados nos arts. 2° e 9°, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa, não é menos certo que tal interpretação ofende, outrossim,
gravemente os direitos sociais da segurança social e solidariedade, expresso no
art. 63°, e da terceira idade, consagrado no art. 72°, também da CRP;
- É que, além de o Autor ter a provecta idade de 82 (oitenta e dois) anos, os
valores de €548,43 (Esc. 109.950$00), anuais, ou €45,79 (Esc. 9.162$00),
mensais, que a Ré está obrigada a pagar-lhe, a título de pensão de aposentação,
encontram-se absurdamente abaixo seja do salário mínimo nacional seja do
rendimento mínimo garantido;
- Ao determinar, pois, o pagamento, ao Recorrente, de um valor mensal de €45,79
ou anual de €548,43, a título de pensão de aposentação, fez o acórdão recorrido
a aplicação da citada norma com uma interpretação que a fere de
inconstitucionalidade material;
- Assim, para assegurar tais direitos e princípios constitucionais, a pensão de
aposentação reconhecida ao Autor deveria ser calculada, não com base na
remuneração, mensal, de €177,82, auferida, pelo mesmo, em 1974 - como foi,
inconstitucionalmente - mas, sim, com base no valor de €4.049,97, também mensal,
resultante da correcção monetária fixada na resposta ao quesito 2°, aliás, tal
como peticionado;
- O sobredito preceito do artigo 30º dos Estatutos em causa deve ser qualificado
como norma para efeitos do disposto no art. 70º, n° 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional, por um lado, atenta a jurisprudência já produzida, pelo
mesmo, nesse sentido e, por outro lado, por se tratar de uma situação
escandalosa a exigir pronta reparação - ainda a tempo e como se espera! -, que,
a não verificar-se, conduzirá, imediata e irremediavelmente, à apresentação da
competente queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Nestes termos, deve a identificada norma (artigo 30º dos Estatutos da C.,
S.A.R.L.) ser julgada inconstitucional, quando interpretada e aplicada em termos
de não serem susceptíveis de actualização as pensões de aposentação aí
previstas.
[…]”
B., S.A. contra-alegou (fls. 981 e seguintes), concluindo do seguinte modo:
“[…]
A) Não tendo o Recorrente invocado qualquer estipulação, acordo ou uso, a
respeito da actualização da pensão de aposentação e atenta a redacção da própria
cláusula, a regra a observar é a que resulta do princípio nominalista (art°.
550° do Cód. Civil);
B) Ou seja, a solução para o caso em apreço não pode ser outra, atento o
disposto no art°. 516° do Cód. Proc. Civil, que não seja a de não actualização
da pensão do Recorrente, não havendo aqui lugar à invocada alteração das
circunstâncias;
C) Ademais, não pode o Recorrente, pela via do presente recurso, obter um efeito
que não tem consagração na cláusula em apreço e que, ao fim e ao cabo, nem
sequer alegou, nem provou, em sede própria, sendo, por isso, desadequado falar
no efeito útil da acção que só ao Recorrente competia acautelar;
D) Contrariamente ao alegado, não se verifica no caso sujeito qualquer violação
seja de princípio da confiança, seja do principio da segurança jurídica e do
acesso ao direito, seja do direito da segurança social e solidariedade e da
terceira idade;
E) Com efeito, não se tendo provado (não tendo sido sequer alegado) qualquer
acordo no sentido de a pensão ser actualizada, não se podia (arbitrariamente)
actualizar a mesma, sob pena de violação do princípio da confiança;
F) Com o presente recurso é o Recorrente que pretende pôr em crise o princípio
da confiança e da segurança jurídica e não, como alega, a decisão recorrida com
o princípio propugnado da não actualização;
G) Não se verifica igualmente qualquer violação do direito à Segurança Social,
além do mais porque a pensão de aposentação prevista na cláusula 30ª dos
Estatutos da C. jamais se pode confundir com uma pensão da Segurança Social ou
com uma pensão de alimentos;
H) A pensão de aposentação emana de um poder discricionário de uma entidade
privada e não é equiparável ou substitui a pensão da Segurança Social a que o
Recorrente sempre tem direito;
I) De qualquer modo jamais o Recorrente pode defender que foram violados os
art°s. 63° e 72° da C.R.P. por lhe ter sido atribuída uma pensão de aposentação
de acordo com o que ficou estabelecido nos Estatutos;
J) Se o valor da pensão é “obsceno”, “insultuoso” e “ridículo” só ao Recorrente
se pode ficar a dever porquanto só cerca de 26 anos depois de ter renunciado ao
mandato é que veio propor a presente acção;
L) Por último, cumpre dizer que, no caso sujeito, estamos perante uma cláusula
resultante da actuação em autonomia privada e não de um acto emanado de um poder
público ou objecto de um reconhecimento público, cujo conteúdo se imponha como
norma nos termos e para os efeitos do art°. 70°, n°. 1, al. b), da Lei do
Tribunal Constitucional;
M) Logo, tratando-se de cláusula resultante de actuação em autonomia privada e
emanada de um poder discricionário da entidade que atribuiu a pensão, não pode a
questionada cláusula 30ª ser qualificada como norma para efeitos do artº. 70º,
nº. 1, al. b), do Tribunal Constitucional;
N) Por outro lado e não menos importante, como bem foi referido no despacho do
Senhor Conselheiro Relator que não admitiu o recurso, a verdade é que o Tribunal
recorrido não aplicou a interpretação normativa censurada pelo Recorrente;
O) Efectivamente, o Tribunal recorrido considerou que a actualização da pensão
seria possível caso o Recorrente tivesse alegado e provado que os Estatutos da
Recorrida ou os usos ou algum eventual acordo de empresa previssem tal
actualização, estando, neste caso, subtraída ao princípio nominalista consagrado
no art°. 550º do Cód. Civil.
[…]”
Cumpre apreciar.
II. Fundamentação
A interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso reporta-se
a um preceito dos Estatutos da C., S.A.R.L., reduzidos a escritura pública
outorgada em 16 de Maio de 1972, nas notas do 1º Cartório Notarial de Lisboa, e
publicada no Diário do Governo, III Série, n.º 129, de 2 de Junho de 1972.
O preceito em causa é o artigo 30º dos referidos Estatutos, que, integrado num
Capítulo dedicado à Administração da sociedade (a C., S.A.R.L.), determina o
seguinte:
“Artigo 30º
1 – Os indivíduos que tenham exercido cargos de administração com efectividade
de funções durante, pelo menos, vinte anos, seguida ou interpoladamente, terão
direito a perceber, a título de aposentação, uma pensão anual, que poderá ser
dividida em duodécimos, igual à que resulte da média das remunerações fixas
percebidas nos últimos cinco anos.
2 – Quando o tempo de exercício efectivo no cargo for inferior a vinte anos, mas
superior a cinco, a pensão será calculada multiplicando o número de anos
completos de exercício do cargo pela vigésima parte das remunerações.
3 – Para efeitos do disposto nos números anteriores levar-se-á em conta o tempo
de exercício de outros cargos da sociedade.
4 – Em caso de morte, quando e enquanto as circunstâncias o justifiquem, poderá
o conselho de administração atribuir à viúva e filhos menores do administrador
falecido uma pensão de quantitativo não excedente a metade do vencimento ou da
pensão que este percebia”.
Importa, pois, começar por verificar se o Tribunal Constitucional possui
competência para apreciar a interpretação normativa que constitui o objecto do
presente recurso, atendendo a que, como se frisou na decisão sumária e no
acórdão da conferência que decidiu a reclamação que o recorrente contra esta
deduziu (acima transcrito), o preceito a que essa interpretação se reporta
resulta de actuação em autonomia privada, sendo, como tal, discutível a sua
qualificação como norma, nos termos e para os efeitos do artigo 70º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (que consagra o recurso, para o
Tribunal Constitucional, de decisão judicial que aplique norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo).
Sobre a questão da sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional das normas
provenientes da autonomia privada tem-se debruçado a doutrina e a jurisprudência
constitucional.
Jorge Miranda e Rui Medeiros considerando que “[a] fiscalização da
constitucionalidade e da legalidade versa sobre normas jurídicas e actos
normativos públicos” sustentam que “[i]Insusceptíveis de fiscalização são as
normas e os actos normativos de Direito privado, designadamente contratos
normativos, estatutos de associações e fundações, pactos sociais, regulamentos
internos de pessoas colectivas privadas ou convenções colectivas de trabalho
(…). Tribunais competentes para conhecer da validade destes actos – mesmo por
referência à Constituição, são os tribunais comuns” (Constituição Portuguesa
Anotada, Tomo III, 2007, Coimbra Editora, págs. 709 e 712).
Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.º Edição,
Almedina, pág. 944) defende que “[o] objecto de controlo da constitucionalidade
são normas jurídico-públicas. Excluem-se, assim, da fiscalização judicial da
Constituição os actos normativos privados. Esta solução inscreve-se na
perspectiva tradicional baseada na autonomia da ordem jurídico-privada perante o
ordenamento constitucional. Dito por outras palavras: as consequências jurídicas
dos actos ou comportamentos inconstitucionais dos particulares não se reconduzem
a problemas de inconstitucionalidade.”
Refere, ainda, que “os meios de defesa e protecção” dos actos privados que “se
reconduzem a verdadeiras normas entendidas como padrões de conduta juridicamente
vinculativos” como “os regulamentos das associações, os regulamentos de locais
abertos ao público, os regulamentos de empresa e os estatutos de sociedades e
fundações” não são “os instrumentos de controlo da constitucionalidade de normas
jurídico-públicas mas os meios judiciais comuns de impugnação de actos
ilícitos.”
Também Carlos Lopes do Rêgo (O objecto idóneo dos recursos de fiscalização
concreta da constitucionalidade: As interpretações normativas sindicáveis pelo
Tribunal Constitucional, Jurisprudência Constitucional n.º 3, Jul/Set. 2004,
págs. 5 e 6) considera que “[e]xcluídos do controlo da constitucionalidade estão
naturalmente os actos de autonomia privada, mesmo que neles se estabeleçam
regras de vocação generalizante (regulamentos internos de empresas; estatutos de
sociedade cooperativa) (…)”.
Por seu lado, o Tribunal Constitucional tem entendido dever utilizar-se – para
proceder à delimitação do conceito de norma objecto idóneo dos recursos de
constitucionalidade – “um conceito funcional adequado ao sistema de fiscalização
da constitucionalidade […] e consoante a sua justificação e sentido” (acórdão nº
26/85, publicado no Diário da República, II Série, n.º 96, de 26 de Abril de
1985, pág. 3871).
Especificamente quanto à questão de saber se as normas de regulamentos internos
de empresas integram o conceito de norma para efeitos de fiscalização concreta
de constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional considerou-se, no
acórdão n.º 156/88, de 29 de Junho de 1988 (publicado no Diário da República, II
Série, n.º 216, de 17 de Setembro de 1988, pág. 8579), que “[a] fiscalização da
constitucionalidade não abrange as «normas provenientes da autonomia privada»,
ou os «regulamentos e regras colectivas de carácter privado»: - não pode, pois,
ser objecto de fiscalização da constitucionalidade o Regulamento de Prevenção e
Controlo de Alcoolismo da CP – Caminhos de Ferro Portugueses, aprovado por
despacho do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, Inspecção do Trabalho,
de 20 de Julho de 1984.”
E no acórdão n.º 1172/96, de 20 de Novembro de 1996 (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 32, de 7 de Fevereiro de 1997, pág. 1694), que carece o
Tribunal Constitucional de competência para apreciar a constitucionalidade de
normas regulamentares internas de uma sociedade comercial anónima regida pelo
direito privado, que disciplinam a atribuição do prémio de assiduidade, da
participação nos lucros da empresa e a atribuição da classificação de mérito.
Relativamente a normas constantes dos estatutos e regulamento disciplinar de uma
federação desportiva decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 472/89, de
12 de Julho (publicado no Diário da República, n.º 219, de 22 de Setembro de
1989, pág. 9578), não conhecer do pedido de declaração de inconstitucionalidade
das normas constantes dos artigos 86º dos Estatutos da Federação Portuguesa de
Futebol e 86º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação sobre acesso à via
judiciária dos desportistas federados e das demais entidades inscritas na
Federação, por incompetência do Tribunal Constitucional para se pronunciar sobre
normas não públicas.
No entanto, posteriormente, veio a pronunciar-se, no acórdão n.º 730/95, de 14
de Dezembro de 1995 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 31, de 6 de
Fevereiro de 1996, pág. 1854), no sentido de ser competente para conhecer do
pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 106.º do Regulamento
Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol, por considerar que essa norma,
após a publicação do Decreto-Lei n.º 270/89, de 18 de Agosto, da Lei n.º 1/90,
de 13 de Janeiro, do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril e do Despacho n.º
5/95, de 14 de Setembro, da Presidência do Conselho de Ministros, traduz o
exercício de um poder devolvido.
Entendeu-se que o Tribunal Constitucional é competente para proceder ao controlo
da constitucionalidade de normas provindas de um poder normativo público – mas
não de normas de natureza privada –, devendo considerar-se como revestindo tal
qualidade as disposições que, no âmbito da atribuição de poderes, com certos
fins de interesse público, a entidades privadas pelo Estado, representem o
exercício desse poder público devolvido ou delegado.
A questão em análise - a sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional das normas
provenientes da autonomia privada – tem, no entanto, sido sobretudo discutida,
quer na doutrina quer na jurisprudência constitucional, a propósito do
enquadramento no conceito de norma das convenções colectivas de trabalho.
Recentemente, o plenário do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 174/2008
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 98, de 21 de Maio de 2008, pág.
22769), inflectiu a sua jurisprudência que era no sentido de que as convenções
colectivas de trabalho, porque fundadas no exercício da autonomia privada, não
contêm actos normativos sujeitos à fiscalização concreta da constitucionalidade
que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280.º da Constituição
da República Portuguesa (cfr. acórdão n.º 172/93 publicado no Diário da
República, II Série, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, pág. 6454 e acordão n.º
224/2005 publicado no Diário da República, II Série, n.º 138, de 19 de Julho de
2006, pág. 11776).
Passou o Tribunal a reconhecer a sindicabilidade constitucional das normas das
convenções colectivas de trabalho por considerar, agora, que “(…) as disposições
constantes das convenções colectivas, apesar da sua origem contratual,
constituem hoje não só regras dotadas das características de generalidade e
abstracção, mas também verdadeiras normas, num conceito funcionalmente adequado
ao sistema de fiscalização de constitucionalidade adoptado.
Na verdade, nelas se encontram os apelidados critérios adicionais que, na óptica
da jurisprudência deste Tribunal, justificam a sua sujeição à fiscalização
constitucional: a heteronomia (intenção vinculativa não dependente da vontade
dos seus destinatários), e o reconhecimento jurídico-político (imposição desse
vinculismo pelo ordenamento jurídico) (…)”.
Entendeu, ainda, o Tribunal Constitucional que “(…) estando nós num tempo de
apelo à revitalização da contratação colectiva, em que se deseja que cada vez
mais as relações laborais sejam reguladas por normas que nasçam da vontade
concordante dos representantes dos seus destinatários, não é compreensível que
todo um vastíssimo sector da vida dos cidadãos, com particular relevância
constitucional, como o que se prende com os direitos dos trabalhadores, fique
privado de acesso ao Tribunal Constitucional.”
Retornando ao caso, aplicando a mais recente jurisprudência deste tribunal,
cumpre verificar se na norma em apreço – o artigo 30.º dos Estatutos da C.,
S.A.R.L. – estão presentes os elementos do conceito funcional de norma
susceptíveis de a qualificar como objecto possível do recurso de
constitucionalidade.
Ainda que possa entender-se que os preceitos dos estatutos de uma sociedade são
dotados de normatividade e estabelecem regras de conduta ou de comportamento
para os particulares, e possa reconhecer-se também que são normas heterónomas
porquanto susceptíveis de vincular as pessoas por elas abrangidas,
independentemente da sua vontade, o certo é que como se considerou no acórdão
n.º 174/2008, em adesão à declaração de voto do conselheiro José de Sousa e
Brito, no acórdão n.º 172/93, a questão decisiva é a de saber se as normas têm
pretensão de “generalidade”, isto é, se se integram no sistema de direito
objectivo, se prosseguem ao fim e ao cabo os fins da Constituição, não obstante
o espaço de autonomia. De tal depende justificar-se, ou não, o controlo
específico de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, ou seja, de tal
depende serem ou não normas heterónomas em sentido funcionalmente relevante.
Ora, às normas dos estatutos de uma sociedade não se pode reconhecer a
heteronomia funcionalmente relevante para a definição de norma jurídica como
objecto do processo constitucional a qual, como vimos, não se basta com a
simples susceptibilidade de imposição a terceiros.
Na verdade, estas normas não prosseguem fins da Constituição, antes resultam da
expressão da vontade privada, dentro da sua esfera própria de actuação, na
prossecução de fins pessoais ou particulares.
E não pode dizer-se que tais estatutos se integram no sistema do direito
objectivo e prosseguem os fins da Constituição, com o consequente reconhecimento
jurídico-político das correspondentes normas, pois que, desde logo, a
Constituição não lhes faz qualquer alusão (contrariamente ao que se verifica
quanto às normas constantes das convenções colectivas de trabalho).
Nas palavras do conselheiro José de Sousa e Brito (cfr. declaração de voto no
acórdão n.º 172/93), estas normas não têm pretensão de “generalidade” ou de
constitucionalidade capaz de fundamentar a sua heteronomia ou o seu
reconhecimento jurídico-político, pelo que não se justifica o específico
controlo da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
Por outro lado, a razão de ordem social e de relevância constitucional que
justifica a sindicabilidade, pelo Tribunal Constitucional, das normas das
convenções colectivas de trabalho não assume idêntica preponderância no caso das
normas constantes dos estatutos das sociedades anónimas, nomeadamente daquelas
que atribuem certos benefícios sociais aos respectivos administradores.
Assim sendo, deve concluir-se que o preceito a que se reporta a interpretação
normativa que constitui o objecto do presente recurso não reúne as
características que as normas elaboradas por entidades privadas devem possuir
para a sua qualificação como normas nos termos e para os efeitos do artigo 70º,
n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Não estão, como tal, preenchidos os pressupostos processuais do recurso
contemplado neste preceito, pelo que não pode conhecer-se do respectivo objecto.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do
recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 18 de Junho de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
|