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Processo n.º 501/08
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
1.Relatório
Por despacho de 13 de Novembro de 2007, o Juiz da 2.º Secção da Vara de
Competência Mista de Coimbra declarou sem efeito, nos termos previstos no n.º 3
do artigo 80.º do Código das Custas Judiciais, o requerimento de interposição de
recurso apresentado pelo arguido A., por omissão do pagamento da correspondente
taxa de justiça.
O arguido impugnou essa decisão perante o Tribunal da Relação de Coimbra,
formulando nas respectivas alegações as seguintes conclusões:
I – O presente recurso tem por objecto o douto Despacho proferido, que decidiu
não admitir o recurso interposto pelo arguido, A., por falta de pagamento da
taxa de justiça.
II – Estando em causa uma pena de prisão efectiva, o arguido está dispensado do
pagamento da taxa de justiça.
III – O arguido havia interposto recurso do douto Acórdão e que o condenou, pela
autoria de um crime de tráfico agravado, p.p. pelo art.º 23º, n.º 1, alínea c) e
27º do DL 430/83, de 13 de Dezembro, e, actualmente pelos art.s 21º, n.º 1, e
24.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 anos de prisão.
IV – O arguido requereu o apoio judiciário, que lhe foi indeferido.
V – Por dificuldades financeiras não liquidou a taxa de justiça, sendo
confrontado com o douto despacho ora em crise.
VI – Refere o art.º 522º, n.º 2, do CPP que – «Os arguidos presos gozam de
isenção de taxa de justiça pela interposição de recurso em 1.º instância; …»
VII – A jurisprudência tem entendido que, esta disposição deve também ser
entendida no sentido em que o seu campo de actuação abrange casos em que por
força de uma decisão condenatória, haja lugar ao cumprimento imediato de uma
pena de prisão aplicada ao arguido, ou seja, de o arguido ser preso se não
recorrer – Neste sentido ver Ac. STJ de 21.10.1992, In Col. de Jur., 1992, 4,
28.
VIII – Tal é exactamente o que se passa no caso em apreço: o arguido caso não
recorresse, ia preso, e a não admissão do referido recurso, conforme consta no
douto despacho recorrido, implica a prisão do recorrente.
IX – Deve assim ser alterado o douto despacho, devendo ser admitida a
Interposição de Recurso em causa
X – Em consequência, a Douta Decisão recorrida, violou por errada interpretação
o disposto nos art.s 522º do CPP e art.s 13º e 32º da Constituição da República
Portuguesa.
O recurso foi rejeitado, por manifesta improcedência, por se ter entendido, em
síntese, que a norma do artigo 522.º, n.º 2, do CPP, ao isentar os arguidos
presos de taxa de justiça pela interposição de recurso em 1.ª instância, não é
aplicável a quem, no momento da interposição de recurso se encontre em situação
de liberdade, concluindo-se assim que se não verificou qualquer violação do
disposto na referida norma processual penal.
O arguido interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, alegando
que a norma do artigo 522º, n.º 2, do CPP interpretada no sentido segundo a qual
«não se encontrando o arguido preso à data do acórdão, [é] devido o pagamento da
taxa de justiça pela interposição do recurso”, constitui uma violação do direito
à igualdade e do disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa
Tendo sido admitido o recurso no tribunal recorrido, o relator, no Tribunal
Constitucional, por decisão sumária proferida ao abrigo do disposto no artigo
78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, decidiu dele não tomar
conhecimento, com base nas seguintes ordens de considerações:
Resulta das disposições conjugadas da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º
2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional que o recurso de
constitucionalidade, tendo por base uma decisão negativa, e, portanto, uma
decisão que formulou um juízo de improcedência quanto a um fundamento de
inconstitucionalidade, implica que a decisão tenha aplicado norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada, pelo recorrente, durante o processo,
de modo processualmente adequado, em termos de o tribunal recorrido estar
obrigado a dela conhecer.
Ora, da leitura das alegações produzidas perante o tribunal recorrido, cujas
conclusões se encontram acima transcritas, retira-se que o recorrente apenas
imputou à decisão recorrida a violação, por errada interpretação, do disposto no
artigo 522.º do Código de Processo Penal e nos artigos 13.º e 32.º da
Constituição da República Portuguesa, o que não se confunde com a invocação,
perante o tribunal recorrido, da inconstitucionalidade de determinada norma ou
interpretação normativa.
E, por outro lado, a decisão recorrida não chegou a efectuar a interpretação
normativa que o recorrente considera ferida de inconstitucionalidade, antes
tendo-se limitado a declarar que não houve, no caso, qualquer violação do
disposto no artigo 522.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e do artigo 80º,
n.º 4, do Código das Custas Judiciais.
Assim, não só não foi efectuada em termos processualmente adequados a suscitação
de uma questão de inconstitucionalidade, como também não pode considerar-se que
a decisão recorrida tenha aplicado a interpretação normativa que o recorrente
identificou como constituindo o objecto de recurso.
Assim sendo, não poderá tomar-se conhecimento do presente recurso de
constitucionalidade, por falta de preenchimento dos seus pressupostos
processuais.
É desta decisão que vem interposta a presente reclamação para a conferência, com
os seguintes fundamentos:
O Tribunal a quo entende que “O recurso para o Tribunal Constitucional não é
admissível pois que a invocada inconstitucionalidade não foi arguida durante o
processo, nem se entende haver motivo bastante para dispensar o recorrente do
ónus da referida alegação, tudo conforme arts. 70.º, n.º 1, b), e 72º., n.º 2,
da Lei 28/82 de 15 de Novembro.”
É claro que o arguido/recorrente não poderia arguir em momento anterior tal
inconstitucionalidade – pela simples razão de não poder prever que a mesma se
registaria em fase de Recurso!
É a interpretação que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra fez dos
preceitos invocados (artigo 522º, n.º 2, do Código de Processo Penal e art.º
80º, n.º 4, CCJ) que gera o vício da inconstitucionalidade que se invocou.
Se o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da
interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação
ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal
Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade
que cabe a esse alto tribunal.
Como é óbvio, também nesta particular questão o arguido/recorrente não podia
pressupor, intuir, que o Tribunal da Relação do Porto, agiria como agiu, e
interpretaria as normas do Código de Processo Penal e da própria Constituição
como interpretou e aplicou.
É com a prolação do Acórdão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios
e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de
maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático,
pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem
jurídica portuguesa:
Assim sendo, o recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto
para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
a) Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do
disposto no art. 522º n.º 2, pelo Insigne Tribunal da Relação de Coimbra, na
interpretação de que «não se encontrando o arguido preso à data do acórdão, ser
devido o pagamento da taxa de justiça pela interposição do recurso, constitui
uma violação do seu direito à igualdade e consequentemente também do artigo 32°
da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas
previamente no seu recurso da Vara mista de Coimbra para o Tribunal da Relação
de Coimbra.
Com efeito, o arguido, caso não recorresse, ia preso, e a não admissão do
referido recurso, conforme consta no douto despacho recorrido, implica a prisão
do recorrente, violando o seu direito à igualdade, uma vez que vai ser
prejudicado pela sua situação económica, e em violação também do art.º 32º da
CRP.
A inconstitucionalidade resulta da interpretação dada pelo Tribunal de recurso
às normas do artigo 522º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 80º, n.º 4, do
CCJ.
É, pois, um vício que se regista somente no Acórdão que se pretende seja
analisado à luz das normas da Constituição.
Desta forma, tem o recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto
para o Tribunal Constitucional.
O representante do Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento
da reclamação, por considerar que o reclamante teve plena oportunidade para
antecipar e questionar, durante o processo, a interpretação normativa feita pela
Relação em termos de poder atempadamente suscitar a questão de
constitucionalidade.
2. Fundamentação
Pretende o reclamante que não era exigível, no caso vertente, o cumprimento do
ónus de suscitação da questão de constitucionalidade no decurso do processo,
porquanto não era previsível que o Tribunal da Relação, em sede de recurso,
viesse a adoptar uma interpretação desconforme à Constituição, relativamente à
norma do artigo 522º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que estava
especialmente em causa na apreciação do recurso.
E é certo que o Tribunal Constitucional tem vindo a admitir, excepcionalmente, o
recurso de constitucionalidade, sem prévia verificação do pressuposto processual
enunciado nos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional, quando o interessado se tenha deparado, na ordem jurisdicional
comum, com uma decisão surpresa quanto a uma questão de natureza
jurídico-constitucional, que não fora antes debatida ou suscitada e que as
partes não tiveram sequer oportunidade de equacionar durante a discussão da
causa.
No entanto, não é essa seguramente a situação que ocorre nos presentes autos.
O recorrente perante o Tribunal da Relação imputou à decisão de primeira
instância (que constituía o objecto do recurso) a violação do disposto no artigo
522º do Código de Processo Penal, bem como dos artigos 13º e 32º da Constituição
da República Portuguesa. E, desse modo, o tribunal de recurso teria
necessariamente de se pronunciar sobre o alegado erro de julgamento, de tal
forma que uma das soluções possíveis sempre seria a de o tribunal superior
confirmar a decisão recorrida, mediante a consideração de que não ocorreu o
pretendido erro de interpretação quanto à referida disposição da norma
processual penal.
E sendo assim, estando em causa apenas a aplicação da norma do artigo 522º, n.º
2, do Código de Processo Penal, o recorrente não poderia deixar de estar
prevenido quanto à possibilidade de o tribunal de recurso acolher a
interpretação seguida pelo tribunal recorrido e afastar o sentido interpretativo
que era proposto nas alegações de recurso. Daí que o recorrente, caso
pretendesse recorrer subsequentemente para o Tribunal Constitucional, devesse
ter identificado, nas alegações de recurso para a Relação, a questão de
constitucionalidade que poderia colocar-se quanto à falada norma do artigo 522º
do Código de Processo Penal, em termos de o tribunal ad quem ficar obrigado a
dela conhecer. Isto é, podia e devia, nesse momento processual, identificar a
interpretação normativa relativa à referida disposição, que, a ser adoptada pelo
tribunal de recurso, poderia encontrar-se ferida de inconstitucionalidade.
De resto, o recorrente não deixou de invocar, nas suas alegações, a violação de
norma constitucional; só que imputou o vício de inconstitucionalidade, não a uma
dada interpretação normativa do artigo 522º do Código de Processo Penal (que
nunca chegou a identificar), mas à própria decisão de primeira instância que
constituía objecto do recurso.
Ora, como é sabido, o Tribunal Constitucional não dispõe de competência para
conhecer da inconstitucionalidade das decisões judiciais em si mesmas
consideradas, mas apenas da norma ou interpretação normativa que essas decisões
tenham aplicado na resolução do caso concreto, quando entretanto a questão de
constitucionalidade normativa tenha sido suscitada de modo adequado durante o
processo.
Como vimos, o reclamante não pode invocar o factor surpresa, para efeito de se
considerar dispensado dos pressupostos de que a Lei faz depender a interposição
do recurso para o tribunal Constitucional: isso porque teve oportunidade, no
momento próprio, de suscitar a questão de constitucionalidade normativa por
forma a que o tribunal de recurso tivesse de emitir uma pronúncia quanto a essa
mesma questão, que poderia constituir então objecto idóneo de recurso para o
Tribunal Constitucional.
E, conforme se concluiu na decisão sumária reclamada, não só não foi suscitada
no decurso do processo qualquer questão de constitucionalidade normativa, como
também a decisão recorrida não chegou a efectuar a interpretação normativa que o
recorrente considera ferida de inconstitucionalidade, antes tendo-se limitado a
declarar que não houve, no caso, qualquer violação do disposto no artigo 522.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal.
Não há, por isso, qualquer motivo para alterar o julgado.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam em indeferir a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 23 de Julho de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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