|
Proc. nº 102/96 1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves Acordam no Tribunal Constitucional: I - O Tribunal de Círculo de Coimbra, em acórdão de 2 de Dezembro de 1994, condenou A., pelo cometimento de um crime de furto, na pena de quinze meses de prisão. O arguido recorreu desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a questão de constitucionalidade do artigo 127º do Código de Processo Penal. Assim: '1) O artº 127º do CPP encontra-se ferido do vício da inconstitucionalidade material, por violação do disposto no artº 32º nº 1 e 32º nº 5 da Lei Fundamental. 2) Consta dos autos (Auto de Detenção e fls. 58 e 59) vários elementos de prova que apontam para a inocência do recorrente. Não obstante, os mesmos não foram devidamente valorados pelo - embora douto - Tribunal Colectivo. 3) O douto acórdão condenatório violou o disposto nos artºs. 124º, 125º, 128º do CPP, e, sobretudo violou o disposto no artº 355º do CPP. 4) De qualquer dos modos, sem conceder quanto ao já alegado àcerca da inconstitucionalidade patente do artº 127º do CPP, deve dizer-se que o douto acórdão condenatório valorou de um modo inconstitucional a prova em causa, fazendo uma interpretação inconstitucional do citado preceito (o artº 127º do CPP), violadora das garantias de defesa do recorrente consignadas no artº 32º nº 1 do CPP. 5) Existindo - como parece que existe - o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - deverão os autos nos termos do disposto no artº 426º ser reenviados para novo julgamento'. O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 20 de Setembro de 1995, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. O arguido A. requereu ainda a aclaração do acórdão, mas foi indeferida, em novo acórdão, de 28 de Setembro de 1995. Recorreu, então, para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. O objecto do recurso delimitava-o na norma do artigo 127º do Código de Processo Penal, norma que confrontava com o artigo 32º, nº 1, da Constituição da República. Notificado, nos termos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para indicar a peça processual em que suscitara a questão de constitucionalidade, o recorrente identificou-a como sendo a motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. E acrescentou: 'Mais requer que o Venerando Tribunal Constitucional se pronuncie àcerca da inconstitucionalidade manifesta do artº 666º nº 1 do CP Civil, uma vez que por requerimento entregue em 13.10.1995, o recorrente solicitava que o Supremo Tribunal de Justiça fizesse aplicação do NOVO CÓDIGO PENAL, requerimento esse que viria a ser desatendido por douto acórdão judicial do S.T.J., de 16/11/1995'. Depois, já em alegações, o recorrente concluiu assim: '1ª O artº 127º do CPP encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, por violação clara do artº 32º nº 1 e 5 da Constituição da República; 2ª O artº 127º impede um controle rigoroso da prova produzida, uma vez que não prevê qualquer limitação processual á prova produzida; 3ª O artº 666º nº 1 do C.P.Civil encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, por violação 'in casu' do artº 32º nº 1 da constituição e 29º nº 4 da Lei Fundamental. 4ª Termos em que o douto acórdão recorrido deverá ser revogado, em conformidade'. O Ministério Público neste Tribunal suscitou a questão prévia de não conhecimento do recurso relativo à norma do artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, e pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal. II - A delimitação do objecto do recurso Manifestamente, a norma do artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil não integra o objecto do recurso. O recorrente apenas a impugnou no momento em que respondeu à notificação que lhe foi feita nos termos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que era uma notificação para esclarecer a peça processual em que suscitara, durante o processo, a questão de constitucionalidade da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal. A controvérsia em torno da norma do artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, não é oportuna nem adequada: não é oportuna porque se constrói já depois do momento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, e não é adequada porque o recorrente não formula clara e inequivocamente em que termos essa norma é contrária à Constituição. É então a norma do artigo 127º do Código de Processo Penal que aqui se constitui em objecto do recurso. III - A fundamentação 1. No Código de Processo Penal, Livro III, 'Das provas', Título I, 'Disposições gerais', o artigo 127º consagra a regra da livre apreciação da prova, ao determinar que 'salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente'. Este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta. A valoração da prova segundo a livre convicção do juiz não significa uma valoração contra a prova ou uma valoração que já se desprendeu dos quadros da legalidade processual [a legalidade dos meios de prova, as regras gerais de produção da prova]. Esta livre convicção é 'objectivável e motivável' (Figueiredo Dias): existe conjugada com o dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade, com a imediação e a publicidade da audiência. Radicando na lógica da investigação que estrutura o processo penal, que é uma investigação virada à descoberta da verdade objectiva do caso, a prova livre centra-se 'no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo (pelas alegações, respostas, meios de prova utilizados, etc.)' (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-68, pp. 47-48). 2. Sem dúvida, como sublinha Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação da prova adquiriu um lugar no sistema de processo 'pela deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstractas para as circunstâncias concretas do caso'. A liberdade do juiz é um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão. É uma certeza sobre os factos da existência e tudo o que neles 'de material e espiritual participa' (Castanheira Neves). Esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso 'mediante fundamentos que a 'razão prática' reconhece como tais' (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso está 'apta para o consenso'. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça. A liberdade do juiz de que aqui se fala é, como diz Castanheira Neves, uma 'liberdade para a objectividade (...) não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros' (ob. cit., pág. 50). A norma do artigo 127º do Código de Processo Penal não é, pois, contrária ao artigo 32º da da Constituição da República. Também assim decidiu o acórdão nº 1165/96, do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 6-2-1997, com apoio num longo excurso sobre a doutrina. É a jurisprudência desse acórdão que aqui se reitera. IV - Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 127º do Código de Processo Penal. Em consequência, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida. Lisboa, 1 de Julho de 1997 Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa
|