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Processo nº 51/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
reclamante A., S.A. e reclamada B., S.A., vem a primeira reclamar, ao abrigo do
nº 4 do artigo 76º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do despacho de 27 de Novembro de 2008.
2. Por acórdão de 10 de Abril de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça negou a
revista interposta pela ora reclamante. Requerido o esclarecimento desta
decisão, o pedido foi indeferido por acórdão de 3 de Julho de 2008. Notificada
deste acórdão, a reclamante arguiu a “nulidade que deriva do incumprimento do nº
2, do art. 732º-A, do CPC, e da violação do Princípio da Confiança, previsto no
art. 2º da Constituição”, invocando, entre o mais o seguinte:
«O acórdão recorrido, nesta parte referenciada, revogou o acórdão da Relação do
Porto e a sentença do Tribunal Cível do Porto.
Constituiu para a requerente uma surpresa, no sentido de que não podia ela
razoavelmente antecipar uma decisão que lhe veio a ser desfavorável.
A requerente não foi menos diligente nem omitiu qualquer dever de cuidado, por
não lhe ser possível antecipar a decisão proferida.
Por isso, não usou do direito de requerer a revista ampliada, nos termos do
disposto no n° 2, do art. 732°-A, do CPC.
No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Ilustre Senhor Conselheiro
Relator do processo, teve a possibilidade de antever a possibilidade da decisão
contrariar a jurisprudência firmada pelo mesmo Tribunal noutros arestos.
E, sendo assim, antes de proferido o acórdão e perante o respectivo projecto,
deveria ter usado do poder ou faculdade de requerer a intervenção do plenário
das secções cíveis.
O não uso da faculdade prevista no n° 2, do art. 732°-A, por parte do Relator,
quando verifique a possibilidade do acórdão colidir com jurisprudência firmada,
implica a impossibilidade de uniformização de jurisprudência e a violação do
Princípio da Confiança, ínsito no art. 2° da Constituição da República
Portuguesa.
É fundamental ao Estado de Direito que os Tribunais Superiores não contrariem a
jurisprudência por si fixada.
Ocorre a violação do Princípio da Confiança, sempre que não seja usado, por
parte do Conselheiro Relator, o poder ou faculdade de fazer intervir o plenário
das secções, para fixação de jurisprudência.
III
No presente caso, a aqui requerente não teve a possibilidade de fazer intervir o
plenário das secções cíveis, porque não lhe era possível fazer um juízo de
prognose que antecipasse uma decisão que contrarie jurisprudência firmada.
No entanto, deveriam, perante o projecto de acórdão, o Ilustre Conselheiro
Relator ou qualquer um dos Conselheiros Adjuntos, fazer intervir o mesmo
plenário das secções, usando do poder de intervenção do Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça. Sempre com a intervenção das partes e respectivo
contraditório.
Não o tendo feito e não tendo usado de correspondente poder- dever, foi violado
o Princípio da Confiança ínsito no Estado de Direito, tendo sido violado o art.
2° da Constituição».
3. Por acórdão de 16 de Outubro de 2008, foi indeferida a arguição de nulidade,
tendo a reclamante interposto recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo
da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, mediante requerimento do qual importa
reter o seguinte:
«A. LDA, nos Autos de RECURSO DE REVISTA N.° 762/08-7, em que contende com B.
SA, notificada do acórdão que indeferiu a arguição de nulidade e
inconstitucionalidade, dele vem recorrer para o Tribunal Constitucional, nos
termos do art. 75°-A, da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro».
4. O recurso de constitucionalidade não foi admitido, com o seguinte fundamento:
«3º O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto no art.
70º n 1 al. b) da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, em ordem ao seu
efectivo conhecimento o preenchimento de alguns requisitos, nomeadamente, que a
questão de constitucionalidade normativa tenha sido adequadamente levantada
perante a instância “a quo”, assim permitindo que a mesma se tivesse pronunciado
sobre tal matéria.
Este requisito resulta directamente do artº 280º nº1, al. b) da CRP.
Arguir tal questão em tempo útil será assim, fazê-lo em termos tais que seja
ainda possível ao tribunal recorrido, debruçar-se sobre a mesma.
4º No caso vertente a recorrente suscita a questão da inconstitucionalidade
relativa à interpretação dada ao art. 732º-A, nº 2, do CPCiv, apenas no
requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido (a fls 1196/1207) que
julgou do mérito do recurso de revista.
Ora, como tal requerimento (que mereceu o acórdão de fls. 1235/1237) não
constitui um meio idóneo nem momento processualmente adequado para o
levantamento, pela primeira vez, de questão de inconstitucionalidade normativa
(como resulta expressamente do disposto no art. 72º nº 2 da L.T.C. e constitui
jurisprudência assente no Tribunal Constitucional – cfr acs do TC nºs 62/85,
90/85, e 450/87 e ainda nos procs. nº 463/07; 560/07; 340/08 e 998/07)
considerando o exposto e, concretamente, por não ter ocorrido suscitação da
questão da inconstitucionalidade da interpretação dada ao nº 2 do art. 732-A do
CP Civ., durante o processo, não pode o Tribunal Constitucional tomar
conhecimento do objecto do recurso.
5º Assim, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, a
fls 1264/1266».
5. A recorrente vem agora reclamar deste despacho, nos seguintes termos:
«O problema da constitucionalidade concreta só surge, quando há uma decisão que,
em concreto, interpreta uma norma que conduz à inconstitucionalidade da decisão.
Não se discute, como se disse abundantemente nos autos, a constitucionalidade da
decisão concreta, mas a interpretação de uma norma e o resultado a que ela
chega.
No caso presente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça revogou a sentença de
1ª instância e o acórdão da Relação do Porto que, até aí, nessa parte, tinham
sido favoráveis à aqui reclamante.
Daí resulta que esta não podia adivinhar o resultado dessa decisão, levantando
antecipadamente qualquer questão jurídica sobre uma matéria que até aí era
pacífica.
Acresce que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça contraria jurisprudência do
mesmo Supremo Tribunal de Justiça, constante dos acórdãos identificados em
requerimentos anteriores.
Na óptica da reclamante, num verdadeiro, real e material Estado de Direito não é
aceitável que um Tribunal Superior tome posições divergentes sobre a mesma
questão de direito.
A não se entender assim, lá vão por água abaixo os Princípios da Confiança e da
Segurança que resultam do art. 2° da Constituição.
Não está em causa uma questão de facto, mas de direito, um conceito jurídico, no
caso presente, de qualificação de um roubo (furto com violência) constituir, ou
não, causa de força maior, determinante da impossibilidade objectiva de
cumprimento da obrigação.
Perante o cenário de uma decisão que contraria a jurisprudência do STJ, deveria
o Senhor Conselheiro Relator ter feito intervir oficiosamente a revista
ampliada, nos termos do disposto no n°2, do art. 732°-A, do CPC.
Só o Ilustre Senhor Conselheiro Relator do processo, teve a possibilidade de
antever a possibilidade da decisão contrariar a jurisprudência firmada pelo
mesmo Tribunal noutros arestos. Mais ninguém.
E, sendo assim, antes de proferido o acórdão e perante o respectivo projecto,
deveria ter usado do poder ou faculdade de requerer a intervenção do plenário
das secções cíveis.
O não uso da faculdade prevista no n° 2, do art. 732°-A, por parte do Relator,
quando verifique a possibilidade do acórdão colidir com jurisprudência firmada,
implica a impossibilidade de uniformização de jurisprudência e a violação do
Princípio da Confiança, ínsito no art. 2° da Constituição da República
Portuguesa.
Assim, a questão que se levanta é simples: a revista ampliada, perante o cenário
de oposição de acórdãos, é um dever ou um poder do Juiz Relator?
Qual a interpretação do n.º 2, do art. 754.º do CPC: trata-se de um dever ou de
um mero poder ou faculdade?
Ora, diz-se que o recurso não foi admitido, porque a parte não suscitou
anteriormente no processo a questão da constitucionalidade.
Salvo o devido respeito, não é assim.
1°: O problema da constitucionalidade foi levantado na arguição de nulidade do
acórdão, após o seu esclarecimento.
Este foi o primeiro e único momento relevante em que a parte interveio no
processo, após ter sido proferido o acórdão.
A questão da constitucionalidade foi levantada imediatamente após ter sido
proferida a decisão que interpreta inconstitucionalmente o n°2, do art. 732°-A.
Até aí não tinha ocorrido qualquer inconstitucionalidade, porque não tinha
havido nenhuma decisão que revogasse as decisões da 1ª Instância e Relação, e
ferisse a jurisprudência do STJ.
2°: O Supremo Tribunal de Justiça teve a oportunidade de apreciar a questão da
constitucionalidade no acórdão que proferiu sobre a nulidade levantada.
E, efectivamente, fê-lo, como resulta do teor do acórdão proferido.
Não é correcta a afirmação proferida no despacho sob reclamação sobre esta
matéria.
Aceite-se, por hipótese académica, a tese sufragada no despacho reclamado.
Resultado: nunca as decisões do STJ seriam passíveis de análise pelo Tribunal
Constitucional.
Estando no topo da pirâmide judicial, numa fase em que a intervenção das partes,
após alegações, está limitada à arguição da nulidade do acórdão, jamais as
decisões seriam sindicáveis pelo Tribunal Constitucional.
O que significa que Estado de Direito, só na letra da Constituição!
O despacho sob reclamação, para além de sufragar a inconstitucionalidade
anterior, suscita uma nova inconstitucionalidade: nega parte o direito de ver
apreciada a constitucionalidade da decisão pelo Tribunal competente, ou seja,
nega o acesso ao direito e de tutela de jurisdição efectiva, do art. 20° da Lei
Fundamental.
Em conclusão:
1ª A parte levantou a questão da constitucionalidade no processo.
2ª Fê-lo na arguição de nulidade do acórdão.
3.ª Esse foi o primeiro momento processualmente relevante em que pôde intervir,
após ter sido proferido o acórdão;
4.ª Deu ao STJ a oportunidade de apreciar essa questão;
5.ª Deu à parte contrária a possibilidade de exercer o contraditório;
6.ª O STJ apreciou efectivamente a questão da constitucionalidade, no acórdão
que indeferiu a nulidade;
7.ª O despacho sob reclamação sufraga a inconstitucionalidade levantada nos
autos e adita-lhe a inconstitucionalidade resultante de negar à parte o acesso
ao Tribunal Constitucional e o direito de tutela de jurisdição efectiva».
6. Os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou pela forma
seguinte:
«A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Na verdade, a reclamante não suscitou – nem sequer no requerimento de fls 1240,
em que arguiu a nulidade do acórdão proferido pelo STJ – qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, susceptível de constituir objecto idóneo do
recurso de fiscalização concreta interposto: cabia, na verdade, à entidade
reclamante, se pretendia assegurar a via recursória prevista na al. b) do n.º 1
do art.º70.º da Lei 28/82, enunciar de forma clara e inteligível, qual a
interpretação normativa, extraída do art.º 732.º-A do CPC que considerava
violadora da Constituição, vinculando o Supremo a pronunciar-se expressamente
sobre tal matéria. Ora, manifestamente não o fez, já que se limitou a questionar
a conformidade aos princípios constitucionais de certa actuação processual – o
“não uso” do poder – ora consagrado em tal preceito legal, – o que conduz à
inverificação dos pressupostos do recurso interposto».
7. Notificadas deste parecer, a reclamante e a reclamada apresentaram as
respostas constantes de fls. 1315 e ss. e 1322.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O despacho reclamado não admitiu o recurso de constitucionalidade –
interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC – com fundamento
na não suscitação, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade da
interpretação dada ao nº 2 do artigo 732º-A do Código de Processo Civil. De
acordo com esta decisão, a recorrente questionou esta interpretação apenas no
requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido (a fls 1196/1207) que
julgou do mérito do recurso de revista.
A reclamante sustenta que o requerimento de arguição de nulidade foi o primeiro
momento processualmente relevante em que pôde intervir, após ter sido proferido
o acórdão que negou a revista.
Um dos requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC é a suscitação prévia, durante o processo, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, da questão de inconstitucionalidade cuja
apreciação é requerida ao Tribunal Constitucional (artigo 72º, nº 2, da LTC).
Sobre este requisito escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/92
(Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992) o seguinte:
“Vem este Tribunal entendendo, em jurisprudência uniforme e reiterada, que o
pressuposto de admissibilidade daquele tipo de recurso (...) no atinente ao
exacto significado da locução 'durante o processo' utilizado em ambos os
normativos [artigos 280º, nº 1, da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da LTC],
deve ser tomado não num sentido puramente formal (tal que a
inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas
num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em
momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a
inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de
inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se
estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que
pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de constitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação
da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não
constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna
esta obscura ou ambígua', há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de
uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio,
meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade”.
Reiterando este entendimento, importa concluir, por referência aos presentes
autos, que o requerimento de arguição de nulidade não era meio idóneo e atempado
para suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade relativa a norma
aplicada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que negou a revista (acórdão
de 10 de Abril de 2008).
2. Sucede, porém, conforme resulta do requerimento de interposição de recurso,
que o reclamante recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça que indeferiu a arguição de nulidade (acórdão de 16 de
Outubro de 2008), pelo que o requerimento de arguição de nulidade era, afinal,
um meio idóneo e atempado para suscitar questão de inconstitucionalidade
relativa a norma aplicada naquela decisão.
Apesar de ser um meio idóneo e atempado, é de concluir, no entanto, que não foi
questionada a constitucionalidade de qualquer norma no requerimento de arguição
de nulidade. Acompanhando o parecer do Ministério Público, é de concluir, isso
sim, que em tal peça processual, foi questionada apenas “a conformidade aos
princípios constitucionais de certa actuação processual”. Disso mesmo é
expressão a passagem que de seguida se transcreve:
«O não uso da faculdade prevista no n° 2, do art. 732°-A, por parte do Relator,
quando verifique a possibilidade do acórdão colidir com jurisprudência firmada,
implica a impossibilidade de uniformização de jurisprudência e a violação do
Princípio da Confiança, ínsito no art. 2° da Constituição da República
Portuguesa» (itálico aditado).
Na medida em que não foi questionada perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Outubro de 2008 – a
constitucionalidade de qualquer norma (artigos 70º, nº 1, alínea b), 72º, nº 2,
e 77º, nº 4, da LTC), importa concluir pelo indeferimento da presente
reclamação.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de Março de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
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