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Processo n.º 927/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa que confirma sentença condenatória proferida em processo-crime pela
primeira instância.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de Outubro de 2008, julgou o
recurso improcedente, pelo que o recorrente interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, que foi depois objecto de convite ao aperfeiçoamento por
despacho do relator.
Por decisão sumária de fls. 1380 e seguintes, não se tomou conhecimento do
objecto do recurso de constitucionalidade, pelos seguintes fundamentos:
“1. Resulta da resposta ao despacho de aperfeiçoamento que o recorrente pretende
que o Tribunal Constitucional aprecie sete questões de inconstitucionalidade,
que referencia em números autónomos.
Relativamente à primeira questão (referenciada sob o n.º 1 da resposta), é
patente que dela não pode tomar-se conhecimento, por não traduzir qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, mas sim de inconstitucionalidade da
própria decisão recorrida.
Com efeito, o Tribunal Constitucional, como decorre das várias alíneas do n.º 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, só possui competência para
apreciar a conformidade constitucional de normas ou interpretações normativas e
não das próprias decisões recorridas, em si mesmas consideradas; ora não traduz
qualquer norma ou interpretação normativa a consideração do “depoimento do
assistente e dos seus filhos como prova bastante, permitindo-se substituir a
prova documental alegadamente existente, abstendo-se, por via disso, de ordenar
diligências de prova adicionais que se impunham - a junção aos autos dos
indicados documentos - que fariam prova plena do facto em apreço”, antes se
reconduzindo a alegada interpretação à própria decisão que julgou suficiente um
concreto meio de prova e prescindiu de outros.
Não pode, assim, tomar-se conhecimento do objecto do presente recurso, no que se
refere à primeira questão de constitucionalidade, por esta extravasar a
competência do Tribunal Constitucional.
A isto acresce que, mesmo que se entendesse que tal questão constitui uma
questão de constitucionalidade normativa (o que manifestamente não sucede), dela
não poderia tomar-se conhecimento por outro motivo: perante o tribunal
recorrido, o recorrente não suscitou qualquer questão de constitucionalidade
reportada aos “artigos 364° do Código Civil, 655° do Código de Processo Civil,
com referência aos artigos 4°, 164°, 169°, 127°, n° 1, e 340º todos do Código de
Processo Penal” (os preceitos legais que, em seu entender, suportam a alegada
interpretação normativa) – isto é, não imputou qualquer inconstitucionalidade a
estes preceitos -, pelo que não cumpriu o ónus de suscitação da questão de
inconstitucionalidade durante o processo, a que se referem os artigos 70º, n.º
1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Relativamente à segunda questão de constitucionalidade (referenciada no n.º 2
da resposta ao despacho de aperfeiçoamento), é também evidente que dela não pode
conhecer-se, pelas razões antes apontadas.
Não consubstancia, com efeito, qualquer interpretação normativa a realidade que
o recorrente descreve do seguinte modo: “quando, perante o Tribunal da Relação
de Lisboa fez operar a reapreciação da prova, ainda que devidamente documentada
através da gravação da audiência e demais documentação junta, daí extraiu factos
inexistentes do depoimento da testemunha Ricardo Tavares, nomeadamente que este
confirma a entrega ao recorrente da quantia indicada pelo assistente num
envelope A4”.
Por outro lado, é também manifesto que, perante o tribunal recorrido, o
recorrente não imputou qualquer inconstitucionalidade aos artigos 410º, n.º 2, e
379º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal (os preceitos que, na
sua óptica, alicerçaram a alegada interpretação normativa, a que acabou de
fazer-se referência), pelo que não cumpriu o ónus de suscitação a que aludem os
artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
3. A terceira questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente
(referenciada sob o n.º 3 da resposta ao despacho de aperfeiçoamento) reporta-se
à interpretação que permite “a utilização de prova proibida, não obstante
tratar-se de matéria cujo conhecimento está vedado por via do segredo
profissional, conquanto incide sobre alegados factos conhecidos no âmbito de uma
reunião entre dois advogados sobre tema profissional que, não tendo havido
levantamento do sigilo profissional, constitui prova ilegal”.
Todavia, percorrendo a decisão recorrida, verifica-se que nela não se faz
qualquer referência à possibilidade de utilização, em processo, de prova
proibida.
Ora a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja
conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie
constitui um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (aquele que foi interposto
pelo recorrente), que, não estando preenchido, como é o caso, determina o não
conhecimento do respectivo objecto.
A isto acresce que, perante o tribunal recorrido, o recorrente não imputou
qualquer inconstitucionalidade aos “artigos 125.°, 135°, 374.°, n.° 2, todos do
Código de Processo Penal e artigo 87°, n.° 5, do Estatuto da Ordem dos
Advogados, aprovado pela Lei n.° 15/2005, de 26 de Janeiro” – preceitos esses
que, em seu entender, suportariam a interpretação relativa à possibilidade de
utilização da prova proibida -, pelo que não cumpriu o ónus de suscitação a que
se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional
4. Relativamente à quarta questão de inconstitucionalidade (referenciada pelo
recorrente sob o n.º 4, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento), que diz
respeito à possibilidade de utilização, pelo Tribunal da Relação, de prova não
apreciada em primeira instância, constata-se igualmente que, perante o tribunal
recorrido, o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade do artigo 379º, n.º
1, alínea c), do Código de Processo Penal (a norma a que reporta tal
interpretação).
O recorrente não cumpriu, assim, o ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1,
alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que, também
quanto à quarta questão, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
5. A quinta questão de inconstitucionalidade prende-se com a “interpretação
normativa dada aos imperativos legais constantes do artigo 379º n° 1, al. c),
com referência ao artigo 374º, n° 2, e artigo 97º todos do Código de Processo
Penal, conjugado com o artigo 32°, n.ºs l, e 5 e artigo 205°, n.° l, todos da
Constituição da República Portuguesa, conquanto ter sido adoptado o entendimento
que admite como conforme o Acórdão que não se pronuncia sobre questões
suscitadas durante a audiência de julgamento e que, obrigatoriamente, teriam de
ser conhecidas/decididas”.
Ora, não só não se encontra, na decisão recorrida, qualquer referência ao
acolhimento de tal interpretação, como também o recorrente não suscitou, perante
o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade do artigo 379º, n°. 1, al. c), com
referência ao artigo 374º, n° 2, e artigo 97º, todos do Código de Processo
Penal.
A não aplicação, na decisão recorrida, dessa interpretação, bem como a não
suscitação da sua inconstitucionalidade durante o processo, determinam – como já
se disse atrás - que não possa dela conhecer-se, por não se mostrarem
preenchidos os pressupostos processuais do presente recurso.
6. Da sexta questão de inconstitucionalidade – que, na expressão do recorrente,
diz respeito à interpretação normativa dada ao artigo 379º, n.° 1, alínea c),
com referência ao artigo 374º, n.° 2, e ao artigo 97°, todos do Código de
Processo Penal, segundo a qual é “conforme o Acórdão que não conhece de uma
questão que lhe é suscitada, omitindo pronúncia sobre aquela” – não pode também
conhecer-se, uma vez que a mesma questão não envolve qualquer interpretação
normativa, antes se reconduzindo à própria decisão recorrida, que, segundo o
recorrente, teria omitido pronúncia.
Ora o Tribunal Constitucional, como já se referiu, não pode apreciar a
conformidade constitucional das decisões judiciais, em si mesmas consideradas,
nomeadamente verificando se a omissão de pronúncia de que alegadamente padecem
viola ou não normas ou princípios constitucionais.
Não pode, assim, conhecer-se do objecto do recurso de constitucionalidade,
também quanto a esta sexta questão.
7. A sétima e última questão colocada pelo recorrente versa sobre a
“interpretação normativa dos artigos 40º, n° 2, do Código Penal e 29°, n°4, da
nossa Lei Fundamental que vai no sentido da não aplicação do regime penal, que
em concreto, se demonstrar mais favorável ao arguido, por via da qual recusa-se
a analisar as condições de aplicabilidade do regime que permite a suspensão da
pena”.
No texto da decisão recorrida não se encontra qualquer referência a tal
interpretação, pelo que, não tendo a mesma sido aplicada, não pode dela
conhecer-se, por falta de preenchimento de um dos pressupostos processuais do
presente recurso”.
Notificado da decisão sumária, dela veio A. reclamar para a conferência, ao
abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional,
sustentando o seguinte (fls. 1404 e seguintes):
“[…] Seguindo a individualização estrutural da resposta ao despacho de
aperfeiçoamento relativo às sete questões de invocada inconstitucionalidade
suscitadas perante este Tribunal, o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Relator,
resumidamente, decide não poder conhecer de todas elas em virtude do Tribunal
Constitucional somente poder conhecer de situações de inconstitucionalidade
normativa desde que a mesma esteja vertida no texto da decisão recorrida. Isto
é, que o Tribunal Recorrido tenha expressamente plasmado na sua decisão qual ou
quais as disposições constitucionais que, na sua óptica, suportavam a
interpretação que fez das normas penais para chegar à solução jurídica que
chegou.
Contudo, em relação à primeira questão suscitada pelo ora recorrente, afirma-se
na decisão de que ora se reclama que estaremos perante uma decisão materialmente
inconstitucional, que não uma impugnação sobre a constitucionalidade dos
normativos ali indicados e, por conseguinte, insusceptível de apreciação por
parte do Tribunal Constitucional dado extravasar as suas legais competências.
Decorre da própria Lei do Tribunal Constitucional, mormente das diversas alíneas
do art. 70 n.º1, que este apenas poderá apreciar a conformidade constitucional
das normas ou das interpretações normativas do decisor do acórdão em crise.
É exactamente neste sentido que se requer a intervenção deste Tribunal, em
concreto suscitou-se a questão da inconstitucionalidade da interpretação dada
pelo tribunal recorrido às normas ali aludidas, bem como, desde logo se indica a
interpretação que deva ser dada perseguindo conformidade legal/constitucional.
A fundamentação da maioria dos recursos das decisões dos tribunais ordinários
sujeitas ao crivo do Tribunal Constitucional decorre da interpretação normativa
dos preceitos legais que serviram de fundamento à decisão. Obviamente as
potenciais questões de inconstitucionalidade surgem da interpretação normativa
que o julgador gera perante o caso concreto e não da inconstitucionalidade
material ou forma da norma, note-se que é abundante a jurisprudência do Tribunal
Constitucional que aprecia interpretações inconstitucionais dadas a preceitos
normativos que materialmente e formalmente não padecem de qualquer vício. Esta é
a razão pela qual, no cumprimento do ónus da suscitação da questão da
constitucionalidade, o ora recorrente imputou à interpretação dada aos
normativos indicados, pelo tribunal recorrido, o vício de inconstitucionalidade,
sendo que foram aquelas normas que serviram de fundamento de direito á decisão.
Com o devido respeito, advoga-se que, uma vez que, em cumprimento do douto
Despacho, foi dado cumprimento do ónus da impugnação, a questão da
constitucionalidade, em sede da interpretação dada às normas penais em causa,
pode e deve ser apreciada por este Tribunal, pois de outra forma,
independentemente da bondade e da conformidade com a magna lei de qualquer
interpretação – mesmo que ela se revele ilegal por desacordo com a Lei
Constitucional e os seus princípios – sempre se tornaria legítima e inatacável
conquanto quem decida não faça expressa referência aos fundamentos
constitucionais em que alicerçou a sua interpretação da lei penal adjectiva ou
substantiva. Por outras palavras, sempre que a decisão judicial não expressasse
claramente o raciocínio interpretativo da lei constitucional que ficou
subjacente à aplicação de determinado preceito da lei ordinária penal num ou
noutro determinado sentido, nunca poderia o alto Tribunal Constitucional
fiscalizar a conformidade constitucional da aplicação da lei penal ordinária.
Ora, como óbvio se torna, é através do resultado da aplicação da lei penal
ordinária que, de per si e sem mais, fica exposto se a mesma está de acordo ou
se está em oposição com os preceitos constitucionais penais.
Ademais, se assim não fosse, abrir-se-ia a possibilidade de que, o próprio
tribunal recorrido, subtraísse ao Tribunal Constitucional a competência de
fiscalizar a constitucionalidade da aplicação da lei penal ordinária, bastando
para isso que não fizesse referência ao modo como interpretou a
constitucionalidade na aplicação em concreto da lei penal ordinária.
Desse modo, acreditamos que o direito de defesa do arguido estaria
irremediavelmente comprometido e esvaziado, maxime, o direito ao efectivo
recurso das decisões judiciais – e que passa, obrigatoriamente, pela efectivação
da função jurisdicional dos tribunais, tal como está preconizado no n.º 2, do
art. 202.º, da CRP e que está, igualmente, assegurado no art.º 6 e no art.º 13.º
da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, que, pelos mesmos motivos, se revela igualmente violado. […]”.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
à reclamação nos termos seguintes (fls. 1413):
“1º A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que respeita à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Começa o reclamante por afirmar que, na decisão sumária, se entendeu só poder
conhecer-se do objecto do recurso de constitucionalidade desde que “o tribunal
recorrido tenha expressamente plasmado na sua decisão qual ou quais as
disposições constitucionais que, na sua óptica, suportavam a interpretação que
fez das normas penais para chegar à solução jurídica que chegou”.
Na decisão sumária não se consagra tal entendimento, expressa ou implicitamente
(até porque o mesmo não tem qualquer base legal), pelo que as considerações que,
acerca do mesmo, tece o reclamante são, para efeitos da decisão da reclamação,
irrelevantes.
Afirma depois o reclamante que a primeira questão de constitucionalidade que
constitui o objecto do recurso traduz, ao contrário do que se sustenta na
decisão sumária, uma questão de inconstitucionalidade de uma interpretação
normativa, e não da própria decisão recorrida.
Recorde-se que tal questão era a da inconstitucionalidade da consideração do
“depoimento do assistente e dos seus filhos como prova bastante, permitindo-se
substituir a prova documental alegadamente existente, abstendo-se, por via
disso, de ordenar diligências de prova adicionais que se impunham – a junção aos
autos dos indicados documentos – que fariam prova plena do facto em apreço”.
Ora, é evidente que esta questão não traduz qualquer interpretação normativa,
pois que a mesma – como, aliás, se explicou na decisão sumária - não se
autonomiza da própria decisão recorrida que julgou suficiente um concreto meio
de prova e prescindiu de outros. E reconhecê-lo não significa negar a
possibilidade de o objecto do recurso de constitucionalidade ser constituído por
interpretações (a par de normas, em si mesmas consideradas), mas apenas afirmar
que as interpretações não se confundem com as próprias decisões recorridas e que
estas não podem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional, sob o ponto de
vista da sua conformidade constitucional.
Refere seguidamente o reclamante que “uma vez que, em cumprimento do douto
despacho, foi dado cumprimento ao ónus da impugnação, a questão da
constitucionalidade, em sede da interpretação dada a normas penais em causa,
pode e deve ser apreciada por este Tribunal”.
Deste trecho da reclamação resulta que o reclamante confunde o cumprimento do
despacho de aperfeiçoamento com a colocação, perante o Tribunal Constitucional,
de uma questão de constitucionalidade normativa: ora, a circunstância de o
reclamante ter respondido ao despacho de aperfeiçoamento do relator não
significa que, aquando da prolação da decisão sobre o recurso, se prescinda da
aferição do preenchimento da generalidade dos pressupostos processuais do
recurso de constitucionalidade, nomeadamente verificando se se submete ao
Tribunal Constitucional uma questão de constitucionalidade normativa ou, antes,
de constitucionalidade da própria decisão.
Por último, assinale-se que sobre a restante fundamentação da decisão sumária
(designadamente, o não cumprimento do ónus de suscitação em relação a certas
questões que constituem o objecto do recurso de constitucionalidade, ou a não
aplicação, na decisão recorrida, de interpretações que constituem o objecto do
recurso de constitucionalidade) não se pronuncia o reclamante, pelo que não há
razões para a sua alteração.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, desatende-se a presente reclamação,
mantendo-se a decisão sumária de fls. 1380 e seguintes.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 25 de Março de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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