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Processo n.º 141/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A., B., C., D., E., F. e G. requereram, no Supremo
Tribunal Administrativo (STA), contra a Comissão de Inscrição da Câmara dos
Técnicos Oficiais de Contas, ao abrigo do artigo 161.º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, a extensão dos efeitos do acórdão do Pleno da
Secção de Contencioso Administrativo do STA, de 5 de Julho de 2005, proc. n.º
164/04, que confirmou o acórdão da 1.ª Subsecção, de 3 de Novembro de 2004, que
anulara o acto da requerida que recusara a inscrição de um interessado na então
designada Associação dos Técnicos Oficiais de Contas (ATOC), criada pelo
Decreto‑Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro (designação alterada para Câmara dos
Técnicos Oficiais de Contas (CTOC) pelo Decreto‑Lei n.º 452/99, de 5 de
Novembro).
Nessas decisões entendeu‑se que, para efeitos de
inscrição na ATOC que a Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, possibilitara aos
“profissionais de contabilidade que desde 1 de Janeiro de 1989 e até à data da
publicação do Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro, tenham sido, durante
três anos seguidos ou interpolados, individualmente ou sob a forma de sociedade,
responsáveis directos por contabilidade organizada, nos termos do Plano Oficial
de Contabilidade, de entidades que naquele período possuíssem ou devessem
possuir contabilidade organizada”, era possível provar por qualquer meio
probatório admissível em procedimento administrativo esse requisito de
responsabilidade directa por contabilidade organizada, sendo ilegal a limitação
da possibilidade de prova a cópias de declarações modelo 22 de IRC ou anexo C ao
modelo 2 de IRS, como a Comissão de Inscrição estabelecera num “Regulamento”, de
3 de Junho de 1998, que aprovara para execução daquela Lei.
Aduziram os requerentes que se encontram na mesma
situação daqueles casos, já superiores a cinco, em que foram proferidas decisões
judiciais, transitadas em julgado, em processos em que foi parte a ora
requerida, que julgaram inválidos os actos de recusa de inscrição por
considerarem ilegais as normas restritivas de meios probatórios constantes do
referido Regulamento: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 355/2005, de 6 de
Julho de 2005, e acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do
STA, de 5 de Julho de 2005, proc. n.º 164/04, de 6 de Outubro de 2005, proc. n.º
342/04, de 10 de Novembro de 2005, proc. n.º 343/04, de 19 de Janeiro de 2006,
proc. n.º 424/04, de 7 de Fevereiro de 2006, proc. n.º 419/04, e de 2 de Março
de 2006, proc. n.º 423/04.
A pretensão formulada obteve acolhimento no acórdão da
1.ª Secção do STA, de 19 de Abril de 2007, que determinou que “na esfera
jurídica dos requerentes se produzam os mesmos efeitos que o mencionado acórdão
do Pleno da 1.ª Secção, de 5 de Julho de 2005, proferido no proc. n.º 164/04,
projectou na esfera jurídica dos respectivos beneficiários”.
Contra este acórdão interpôs a recorrente recurso para o
Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, terminando a respectiva
alegação com a formulação das seguintes conclusões:
“1. O acórdão recorrido incorreu em deficiente aplicação do direito
aos factos;
2. Desde logo, deveria ter procedido à desaplicação in casu da norma
contida no artigo 161.º do CPTA, porquanto a mesma não está conforme à
Constituição da República Portuguesa;
3. Com efeito, são violados os princípios do Estado de Direito, na
sua vertente da protecção da segurança jurídica e da protecção da confiança, e
o princípio da igualdade, plasmados, respectivamente, nos artigos 2.º e 13.º da
Constituição;
4. A opção tomada pelo legislador viola, intoleravelmente, a
confiança que a Administração deve poder pôr na estabilidade das relações
administrativas e nos seus efeitos;
5. Além disso, traduz um benefício concedido em favor dos que,
perante um acto desfavorável, se quedaram passivos e não reagiram judicialmente
dentro do prazo legal para tanto fixado, tratando‑se, pois, de forma desigual
face àqueles particulares que, dentro do prazo de que dispunham, tiveram que
mobilizar os meios processuais adequados, para que não se firmasse na sua esfera
jurídica um acto que lhes era desfavorável, assim se violando o princípio
constitucional da igualdade;
6. Ao contrário do que considerou o tribunal a quo, o artigo 161.º
mais não é, em termos materiais, do que a atribuição a quem já não o tinha, do
direito de impugnar um acto administrativo desfavorável, indo até mais além do
que isso, pois esse particular, que vê, assim, «ressuscitado» o seu direito de
acção, poderá, por essa via, ver automaticamente produzidos na sua esfera
jurídica os mesmos efeitos que veria caso tivesse impugnado atempadamente o
acto desfavorável e tivesse obtido vencimento;
7. A argumentação oferecida pelo acórdão recorrido para sustentar a
constitucionalidade da norma perspectiva, assim, a questão de um prisma
estritamente formal, não atendendo à materialidade das razões que apontam, ao
contrário, para a inconstitucionalidade da norma;
8. Por outro lado, e independentemente da posição tomada quanto à
conformidade do artigo 161.º do CPTA, andou mal o acórdão recorrido ao
considerar que a situação em apreço se encaixava na respectiva previsão da
norma;
9. O artigo 161.º está pensado para se aplicar nos casos em que
foram praticados actos administrativos com vários destinatários, e não, como é
o caso, actos administrativos distintos;
10. Ao não dar razão à aqui recorrente, procedeu o acórdão recorrido
a uma errada interpretação e aplicação do artigo 161.º [do CPTA].”
Por acórdão de 13 de Novembro de 2007, o Pleno da 1.ª
Secção do STA negou provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação
jurídica:
“2.2. Matéria de direito.
A recorrente insurge‑se contra o acórdão da Subsecção por entender
que o artigo 161.º do CPTA é inconstitucional e, se assim não for entendido, por
não se verificarem os requisitos aí previstos para se declarar a extensão de
efeitos de uma decisão judicial, ou seja, por não estar em causa uma sentença
anulatória de um acto plural.
Vejamos cada uma das questões.
2.2.1. Inconstitucionalidade do artigo 161.º do CPTA.
A recorrente retoma, no recurso, os argumentos que esgrimira na acção e que o
acórdão não acolheu. O acórdão recorrido, em suma, entendeu que o artigo 161.º
do CPTA não violava os princípios da segurança inerente ao Estado de Direito
(artigo 2.º) e da igualdade (artigo 13.º, ambos da Constituição). A recorrente
insiste na tese oposta, vendo no referido artigo uma intolerável violação da
confiança que a Administração deve poder pôr na estabilidade das relações
jurídicas (violação da protecção da segurança jurídica) e ainda a violação da
igualdade, na medida em que o preceito em causa traduz um «favor dos que,
perante um acto desfavorável, se quedaram passivos e não reagiram judicialmente
dentro do prazo legal… tratando‑os de forma desigual face àqueles que, dentro do
prazo de que dispunham, tiveram que mobilizar os meios processuais adequados».
i) Princípio da segurança jurídica.
O artigo 161.º do CPTA, sob a epígrafe «extensão dos efeitos da sentença»,
permite que os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado
um acto administrativo desfavorável ou reconhecido uma situação jurídica
favorável possam ser estendidos a outras pessoas que «se encontrem na mesma
situação jurídica» [A redacção do preceito é a seguinte: «Os efeitos de uma
sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto administrativo
desfavorável ou reconhecido uma situação jurídica favorável a uma ou várias
pessoas podem ser estendidos a outras que se encontrem na mesma situação
jurídica, quer tenham recorrido ou não à via judicial desde que, quanto a estas,
não exista sentença transitada em julgado».]
É verdade que a eficácia de um acto administrativo inimpugnável – e
que portanto gozava de alguma estabilidade na ordem jurídica – pode vir a ser
inutilizada, por aplicação do artigo 161.º do CPTA. Mas essa destruição dos
efeitos, não obstante o «caso decidido», não significa uma intolerável quebra da
confiança na estabilidade das relações jurídicas inerente a um Estado de
Direito.
O acórdão recorrido sublinhou, citando a propósito o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 17/84, que o cidadão deve «poder prever as
intervenções que o Estado poderá levar sobre ele ou perante ele e preparar‑se
para se adequar a elas. (…) Deve poder confiar em que a sua actuação seja
reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as consequências
juridicamente relevantes». Ora, a introdução na ordem jurídica do artigo 161.º
do CPTA não é uma ruptura inesperada da irrelevância (em determinadas
situações) do caso decidido. A lei, a doutrina e a jurisprudência desde sempre
admitiram – como veremos – hipóteses em que o caso decidido não gozava de total
protecção.
Como é sabido, nem sequer os actos favoráveis, constitutivos de
direitos, não impugnados têm essa protecção, pois podem ser revogados com
fundamento em ilegalidade no prazo de um ano – cf. artigo 141.º, n.º 1, do CPA.
Por outro lado, a ilegalidade dos actos inimpugnáveis (consolidados), como hoje
decorre do artigo 38.º, n.º 1, do CPTA pode ser posta em causa e, portanto,
reconhecida. O artigo 7.º do Decreto‑Lei n.º 48 051, ainda em vigor, também
permite a discussão da ilicitude de actos administrativos consolidados,
mostrando que um acto ilegal não impugnado pode levar à condenação da
Administração pelos danos causados a terceiros com a prática desse acto.
Freitas do Amaral (Direito Administrativo, IV, Lisboa, 1988, pág.
227) defendia – desde há muito – a eficácia erga omnes de algum tipo de
sentenças anulatórias, tudo dependendo do seu fundamento: «terão eficácia erga
omnes se forem baseadas em fundamentos objectivos, e eficácia inter partes se
baseadas em fundamentos subjectivos». Marcello Caetano (Manual de Direito
Administrativo, II, págs. 1371‑1373) defendia que a anulação de um acto
divisível por fundamentos objectivos, isto é, por razões independentes das
condições pessoais seja de quem for, tinha eficácia erga omnes. Rui Machete
(Dicionário [Jurídico da Administração Pública, II, 1969], p. 291) também
refere, como se dá conta no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Junho de
2004, proferido no processo n.º 45 497/B, «que na delimitação do caso julgado
anulatório de acto administrativo encontra‑se a ideia de que, sob pena de
contradição insanável, o mesmo acto não pode ser, perante a mesma ordem
jurídica, simultaneamente nulo para uns e válido para outros» [No seguimento da
posição que defendeu in «O Contencioso administrativo: o caso julgado nos
recursos directos de anulação», Coimbra, 1973, pág. 132 e seguintes]. Ou seja,
adverte o autor, casos haverá em que a estabilização dos efeitos de um acto
consolidado seria uma pura contradição (o acto era e não era válido ao mesmo
tempo).
Na jurisprudência deste Supremo Tribunal sempre se reconheceu
haver efeitos «extra-processuais» das sentenças anulatórias, como se pode ver,
por exemplo, no acórdão deste Tribunal, de 26 de Setembro de 2001, recurso n.º
35 484, citado no acórdão de 15 de Dezembro de 2006, proferido no processo n.º
195/05: «os efeitos extra-processuais desse caso julgado obstam a que, em
processos judiciais que tenham por objecto actos atinentes à mesma relação
material controvertida, venham a ser proferidas decisões incompatíveis com o
decidido», já que «valem aqui as razões de impedir que o tribunal seja colocado
em situação de ter de contradizer ou reproduzir decisão anterior que justificam
o caso julgado (n.º 2 do artigo 497.º do CPC)».
O artigo 161.º do CPTA insere‑se, assim, num entendimento mais geral
que permitia, em determinados casos, negar protecção ao «caso decidido»,
aceitando que actos não impugnados, e já inimpugnáveis, possam vir a ser
destruídos. A existência de um entendimento claro (na lei, na doutrina e na
jurisprudência) permitindo a inutilização da estabilidade assente no «acto
inimpugnável» – anulado por razões objectivas – mostra que o artigo 161.º do
CPTA não introduziu na ordem jurídica qualquer perturbação (intolerável) da
confiança na Ordem Jurídica.
Não tem, pois, razão de ser a crítica ao preceito em causa, pois o
mesmo não veio introduzir qualquer perturbação inaceitável na estabilidade dos
actos administrativos inimpugnáveis.
ii) Princípio da igualdade.
O acórdão recorrido considerou que o preceito em causa não violava o
princípio da igualdade: «Não se vê, assim, (diz o acórdão) em que medida é que o
princípio constitucional da igualdade postule que, numa situação como a definida
no questionado artigo 161.º do CPTA, aos aludidos particulares, que não tenham
acedido à via judicial, esteja vedada a já referida extensão dos efeitos, tanto
mais que, aqui, ou seja, no âmbito de aplicação do artigo 161.º do CPTA, não se
trata, como já se salientou, de permitir a impugnação contenciosa do acto de
recusa de inscrição, não sendo, por isso, particularmente pertinente, a este
nível, trazer à lide o regime da aceitação do acto, prevista no artigo 56.º do
CPTA, não comportando, no caso em apreço, o citado artigo 161.º qualquer
pretensão anulatória do acto de recusa. Ou seja, o referido princípio
constitucional não constitui impedimento a que o órgão legiferante tivesse
editado a norma em causa, nos termos e com o seu preciso conteúdo, não se
detectando, aqui, um qualquer arbítrio legislativo, traduzido na hipotética
clara falta de apoio constitucional para a diferenciação ou não diferenciação
efectuada pela citada medida legislativa. Em suma, o legislador não deu
tratamento jurídico diferente a situações semelhantes, na exacta medida em que
tudo se situa ao nível dos efeitos do julgado anulatório ou daquele que tenha
reconhecido uma situação jurídica favorável, não tendo, por isso, sido
desrespeitado o comando contido no artigo 13.º da CRP.»
A nosso ver, é de manter o acórdão. A argumentação da recorrente
relativamente à violação do princípio da igualdade é de resto «perversa», pois
a razão de ser da extensão de efeitos do caso julgado regulada no artigo 161.º
do CPTA é precisamente a de dar tratamento substancialmente igual a quem se
encontra na mesma «situação jurídica». Não se entende, também, o argumento da
recorrente quando acusa o acórdão de ter encarado a questão num prisma
«estritamente formal» (conclusão 7.ª). O artigo 161.º, n.º 1, do CPTA exige como
requisito da extensão dos efeitos do julgado que estejamos perante a «mesma
situação jurídica», pretendendo, desse modo, que situações jurídicas
materialmente semelhantes venham a ser reguladas, na prática, do mesmo modo. Não
é uma visão «estritamente formal», sendo, pelo contrário, uma visão que
privilegia a igualdade.
O princípio da igualdade, nos termos do artigo 13.º da Constituição,
proíbe discriminações decorrentes dos índices (sexo, raça, etc.) aí definidos,
onde não se encontra a «não interposição do recurso contencioso». Fora dos casos
expressamente proibidos de discriminação, só existe violação do princípio da
igualdade quando estivermos perante discriminações arbitrárias ou manifestamente
injustificadas [Cf. Jorge Miranda, Direito Constitucional, tomo IV, pág. 248, e
jurisprudência do Tribunal Constitucional aí citada e, em especial, o Acórdão
n.º 231/94, de 9 de Março, Diário da República, I Série‑A, n.º 98, de 28 de
Abril de 1994, pág. 2056 e 2057: «(…) a essência da aplicação do princípio da
igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos
e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que
significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem
de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de
ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso
de entender que tal se justifica». Trata‑se, hoje, de um entendimento pacífico e
consolidado – cf., por todos, Acórdãos n.º 44/84, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 3.º vol., págs. 133 e segs., n.º 309/[8]5, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, [6.º] vol., págs. [547] e segs., n.º 191/88, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 12.º vol., págs. 239 e segs., n.º 303/90, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 17.º vol., págs. 65 e segs., n.º 468/96, Diário da
República, II Série, de 13 de Maio de 1996, e, mais recentemente, n.º 1186/96,
Diário da República, II Série, de 12 de Fevereiro de 1997, e n.º 1188/96, Diário
da República, II Série, de 13 de Fevereiro de 1997.] Não é arbitrário, nem
manifestamente injustificado atribuir efeitos extra‑processuais a uma sentença
anulatória com fundamento na identidade das situações jurídicas em causa. O
princípio da igualdade, interpretado em termos materiais, não é violado, antes
pelo contrário, é densificado em todos os casos em que a ordem jurídica dê
tratamento materialmente igual àqueles que, como se diz no artigo 161.º do CPTA,
se encontram «na mesma situação jurídica».
É assim, a nosso ver, manifesto que não se verifica a violação do
princípio da igualdade.
2.2.2. Requisitos de aplicação do artigo 161.º, n.º 1, do CPTA.
No recurso, a recorrente insurge‑se contra o acórdão na parte em que se entende
que o artigo 161.º, n.º 1, do CPTA é aplicável a situações como a dos presentes
autos. A requerida já sustentara a mesma tese na Subsecção, pretendendo que o
preceito em causa tem como um dos seus pressupostos de aplicação a existência
de um acto administrativo plural.
A sua tese foi refutada por não se ver qualquer elemento interpretativo
permitindo a interpretação restritiva do preceito. «Aliás – argumenta o acórdão
– a própria alusão que é feita no mencionado n.º 2 aos processos ‘no domínio do
funcionalismo público e no âmbito dos concursos’ é manifestamente
exemplificativa, só assim se justificando o uso do termo ‘nomeadamente’, que
antecede tal alusão, o que não pode deixar de significar que se possa
equacionar extensão dos efeitos de sentença, ainda que fora de tal tipo de
processos».
A recorrente limita‑se a discordar, reassumindo a tese de que é pressuposto
deste preceito e, portanto, da extensão de efeitos da sentença que se trate de
actos administrativos plurais, invocando a seu favor Colaço Antunes, Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 43, pág. 18. Este autor, efectivamente, entende que
«…na situação em apreço hão‑de tratar‑se de actos com destinatário plural ou
indeterminado, pois, de outra forma, estar‑se‑ia a alargar os referidos efeitos
não só subjectivamente – o que foi pensado pelo legislador – mas também
objectivamente, o que permitiria a anulação de outros actos que não o que
constitui objecto da acção impugnatória».
A nosso ver, é de sufragar inteiramente a tese do acórdão.
Desde logo, pelo argumento literal denunciando que as situações aí
referidas são meramente exemplificativas. Tal significa que o pressuposto de
aplicação do artigo é o facto de os interessados se encontrarem na «mesma
situação jurídica». A pluralidade de destinatários num acto plural é, sem
dúvida, um caso onde os interessados podem estar em situação jurídica idêntica
(desde que a anulação se não funde em motivos subjectivos), mas não se
vislumbram razões para ser a única hipótese legalmente prevista no artigo 161.º,
n.º 1, do CPTA. Na verdade, o que determinou a opção do legislador foi a
possibilidade da extensão dos benefícios decorrentes da reposição da legalidade
a todos os prejudicados com a prática de um acto ilegal. Não se compreenderia,
assim, sem uma indicação clara nesse sentido (como argumentou e bem o acórdão)
que ficassem fora do âmbito da extensão situações materialmente idênticas, só
porque não estávamos perante um acto plural… Como um acto plural se pode
decompor em tantos actos singulares quantos os seus destinatários, a
aplicabilidade do artigo 161.º, n.º 1, do CPTA dependeria, afinal, da opção do
autor do acto em emitir um ou vários actos iguais.
Depois, o artigo permite também a extensão de efeitos de uma
sentença que «reconheça uma situação jurídica favorável», onde pode não existir
qualquer acto administrativo, o que inviabiliza a tese restritiva defendida
pela recorrente.
Finalmente, um dos pressupostos da extensão de efeitos do julgado é
a existência de três sentenças proferidas em processos seleccionados segundo o
disposto no artigo 48.º do CPTA – cf. artigo 161.º, n.º 2, do CPTA. Ora, nos
termos do artigo 48.º do CPTA, podem ser seleccionados casos que «digam respeito
à mesma relação jurídica material, ou ainda que respeitantes a diferentes
relações jurídicas coexistentes em paralelo, sejam susceptíveis de ser decididas
com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto». Podem,
como decorre do preceito, agrupar‑se processos que não tenham por objecto o
mesmo acto plural. Se a sentença proferida nos termos do artigo 48.º do CPTA, em
processos seleccionados, pode ver os seus efeitos estendidos, não teria grande
sentido proibir a extensão dos efeitos dessa decisão a casos idênticos aos que
constavam dos processos seleccionados (onde poderiam estar, como vimos,
processos que não tenham como objecto o mesmo acto plural).
A melhor solução é, assim, a acolhida no acórdão.”
Ainda inconformada, a recorrente interpôs recurso deste
acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos princípios do Estado de
Direito, na sua vertente de protecção da segurança jurídica e de protecção da
confiança, e da igualdade, consagrados nos artigos 2.º e 13.º da CRP, da norma
do artigo 161.º do CPTA, na interpretação dada pelo tribunal recorrido.
Convidada a identificar, com precisão, qual a interpretação do artigo 161.º do
CPTA que teria sido aplicada no acórdão recorrido, a recorrente veio referir
que “o Supremo Tribunal Administrativo aplicou uma interpretação
inconstitucional do normativo citado ao acordar que o mesmo não viola o
princípio da segurança e da protecção jurídica inerente ao Estado de Direito,
admitindo a possibilidade de a validade e a eficácia de um acto administrativo
que não foi impugnado, nem administrativa nem jurisdicionalmente, em tempo
oportuno, possa, ainda assim, vir a ser posto em causa por efeito da
extensibilidade dos efeitos das sentenças, previsto no artigo 161.º do CPTA,
considerando o Supremo Tribunal Administrativo que esta interpretação não veio
introduzir qualquer perturbação inaceitável na estabilidade dos actos
administrativos inimpugnáveis; e o princípio da igualdade, por, no entender do
acórdão recorrido, ser possível que alguém, que não utilizou os meios
processuais legais ao seu dispor, possa aproveitar uma sentença favorável a um
terceiro que utilizou, muitas vezes à exaustão, essas vias processuais, entende
o Supremo Tribunal Administrativo que ambos os particulares se encontrariam na
mesma situação jurídica exigida pelo artigo 161.º do CPTA”.
A recorrente apresentou alegações, concluindo que a
norma questionada é desconforme à Constituição, por violação dos princípios da
segurança jurídica e da igualdade, aduzindo, nesse sentido, em suma, o seguinte:
– “no que toca aos actos da Administração, o princípio
da segurança jurídica «aponta para a ideia de caso decidido dos actos
administrativos»”;
– “isto é, os actos administrativos que não padeçam de
invalidades mais graves (às quais a sanção correspondente seja a nulidade ou a
inexistência), não sendo impugnados judicialmente dentro de um prazo razoável,
adquirem estabilidade na ordem jurídica, ganhando força de caso decidido”;
– “aliás, é justamente o princípio da segurança jurídica
que está presente no artigo 56.º do CPTA, que estabelece que a «aceitação do
acto» impede o particular de impugnar esse acto, consagrando o princípio da
inimpugnabilidade do acto consentido”;
– “ora, a norma em crise vem precisamente pôr em causa o
princípio da segurança jurídica e da certeza do direito, abalando a
estabilidade de que os actos administrativos, ainda que anuláveis, gozam na
ordem jurídica portuguesa, pois permite, com alguma irracionalidade, que os
particulares que não impugnaram judicialmente um acto administrativo que lhes
fora desfavorável, dentro do prazo legalmente previsto para o efeito, possam vir
depois a beneficiar dos efeitos de uma sentença emitida noutro processo
judicial, a favor de um particular que não se conformou com o sentido do acto
que lhe dizia respeito e mobilizou os instrumentos que a ordem jurídica põe ao
seu serviço para reagir contra esse acto”;
– “além da violação do princípio da segurança e da
estabilidade jurídica, a norma em análise é, assim, e noutra perspectiva, também
violadora do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da Constituição”;
– “pois do que se trata, ao fim e ao cabo, é de
beneficiar os cidadãos que, por qualquer razão, se quedaram passivos face a um
acto administrativo desfavorável, face àqueles que, perante um acto de sentido
semelhante, não se conformaram com o mesmo e mobilizaram os meios processuais
que tinham ao seu dispor, com o que tiveram naturalmente custos e incómodos”.
Os recorridos não contra‑alegaram.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Sob a epígrafe Extensão dos efeitos da sentença,
dispõe o artigo 161.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, na redacção dada pela
Lei n.º 4‑A/2003, de 19 de Fevereiro:
“1 – Os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha
anulado um acto administrativo desfavorável ou reconhecido uma situação
jurídica favorável a uma ou várias pessoas podem ser estendidos a outras que se
encontrem na mesma situação jurídica, quer tenham recorrido ou não à via
judicial, desde que, quanto a estas, não exista sentença transitada em julgado.
2 – O disposto no número anterior vale apenas para situações em que
existam vários casos perfeitamente idênticos, nomeadamente no domínio do
funcionalismo público e no âmbito de concursos, e só quando, no mesmo sentido,
tenham sido proferidas cinco sentenças transitadas em julgado ou, existindo
situações de processos em massa, nesse sentido tenham sido decididos em três
casos os processos seleccionados segundo o disposto no artigo 48.º [Redacção da
Lei n.º 4‑A/2003; na redacção originária constava: “…e só quando, no mesmo
sentido, tenham sido proferidas três sentenças transitadas em julgado ou,
existindo uma situação de processos em massa, nesse sentido tenha sido decidido
o processo seleccionado segundo o disposto no artigo 48.º”]
3 – Para o efeito do disposto no n.º 1, o interessado deve apresentar, no prazo
de um ano, contado da data da última notificação de quem tenha sido parte no
processo em que a sentença foi proferida, um requerimento dirigido à entidade
administrativa que, nesse processo, tenha sido demandada.
4 – Indeferida a pretensão ou decorridos três meses sem decisão da
Administração, o interessado pode requerer, no prazo de dois meses, ao tribunal
que tenha proferido a sentença, a extensão dos respectivos efeitos e a sua
execução em seu favor, sendo aplicáveis, com as devidas adaptações, os trâmites
previstos no presente título para a execução das sentenças de anulação de actos
administrativos.
5 – A extensão dos efeitos da sentença, no caso de existirem
contra‑interessados que não tenham tomado parte no processo em que ela foi
proferida, só pode ser requerida se o interessado tiver lançado mão, no momento
próprio, da via judicial adequada, encontrando‑se pendente o correspondente
processo.
6 – Quando, na pendência de processo impugnatório, o acto impugnado seja anulado
por sentença proferida noutro processo, pode o autor fazer uso do disposto nos
n.ºs 3 e 4 do presente artigo para obter a execução da sentença de anulação.”
Apesar de a recorrente aludir globalmente ao artigo
161.º do CPTA, o certo é que, atentos os contornos do caso concreto em litígio,
a arguição de inconstitucionalidade respeita essencialmente ao seu n.º 1,
enquanto prevê – nas condições e termos dos n.ºs 2 a 5 – a extensão dos efeitos
de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto administrativo
desfavorável a uma ou várias pessoas a outras que se encontrem na mesma
situação jurídica, mas que não recorreram à via judicial, sendo inaplicável ao
caso o disposto no n.º 6, uma vez que não estava pendente qualquer processo
impugnatório instaurado pelos requerentes quando foi proferido o acórdão cujos
efeitos pretendem lhes sejam extensíveis.
2.2. Como assinalam Diogo Freitas do Amaral e Mário
Aroso de Almeida (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª
edição, Coimbra, 2004, pp. 108‑114), “o facto de, em muitos domínios da actuação
administrativa, haver lugar à produção de actos administrativos em massa, que
envolvem a aplicação, por vezes automática ou quase automática, do mesmo
dispositivo normativo a um amplo conjunto de pessoas, faz com que, quando nesses
domínios a Administração incorre em ilegalidade, se multiplicam os litígios,
dando origem a um fenómeno de processos idênticos em grande número que tendem a
assoberbar os tribunais administrativos”. Para enfrentar esse fenómeno, na
reforma do contencioso administrativo de 2002, foram introduzidas várias
soluções inovatórias com o objectivo de agilizar o contencioso administrativo. A
primeira traduziu‑se na possibilidade de o juiz ou relator decidir por decisão
sumária (que pode consistir na simples remissão para decisão anterior) questões
já apreciadas pelo tribunal, de modo uniforme e reiterado (artigo 94.º, n.º 3).
Depois, quanto aos “processos em massa”, o artigo 48.º prevê que “quando sejam
intentados mais de 20 processos que, embora reportados a diferentes pronúncias
da mesma entidade administrativa, digam respeito à mesma relação jurídica
material ou, ainda que respeitantes a diferentes relações jurídicas
coexistentes em paralelo, sejam susceptíveis de ser decididos com base na
aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto, o presidente do
tribunal pode determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um
ou alguns deles, que neste último caso são apensados num único processo, e se
suspenda a tramitação dos demais” (n.º 1), intervindo no julgamento do processo
seleccionado todos os juízes do tribunal ou da secção (n.º 4), e que, uma vez
decidido com trânsito em julgado o processo seleccionado, as partes nos
processos suspensos podem, designadamente, requerer ao tribunal a extensão ao
seu caso dos efeitos da sentença proferida (n.º 5, alínea b)), seguindo‑se a
tramitação do processo de execução das sentenças anulatórias (n.º 6). Uma
terceira solução, assumidamente inspirada no regime do artigo 110.º da
espanhola Ley de la Jurisdicción Contencioso‑Administrativa (Lei n.º 29/1998, de
13 de Julho), consistiu no inovatório regime consagrado no transcrito artigo
161.º, regime que, como tem sido salientado pela doutrina (Mário Aroso de
Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, 2.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 918‑925; e Rodrigo
Esteves de Oliveira, “Processo executivo: algumas questões”, em A Reforma da
Justiça Administrativa, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, n.º
86, Coimbra, 2005, pp. 239‑267, em especial pp. 260‑263), apesar da sua inserção
sistemática no título do CPTA dedicado ao processo executivo, tem natureza
essencialmente substantiva, dizendo respeito, em primeira linha, “a relações
que, no plano extrajudicial, se desenvolvem entre Administração e particulares,
quando estes pretendam que ela proceda, em seu favor, à extensão dos efeitos de
sentenças proferidas em benefício de outrem”, só assumindo alcance processual os
n.ºs 4 e 6.
Esta nova possibilidade vale mesmo que a situação em
causa tenha sido objecto de acto administrativo (como resulta da primeira parte
do n.º 1, que refere a anulação de acto administrativo desfavorável),
permitindo‑se “que um interessado que foi objecto de um acto administrativo e
não intentou contra ele um processo impugnatório ou, em todo o caso, ainda não
obteve decisão nesse processo, peça a anulação desse acto com fundamento nas
anulações que, em relação a outros actos precisamente iguais, foram proferidas
num conjunto de processos impugnatórios já transitados em julgado. Nisto se
concretiza, na verdade, a extensão dos efeitos nesse caso: trata‑se,
efectivamente, de estender o efeito constitutivo (anulatório) que foi
judicialmente decretado, em relação aos actos impugnados nesses processos, pelas
sentenças proferidas nos processos impugnatórios que foram precedentemente
decididos com trânsito em julgado, ao caso do interessado na extensão de efeitos
e, portanto, ao acto que o afecta e que não foi impugnado naqueles processos”
(Comentário citado, p. 921).
Daqui resulta que, de acordo com esse entendimento, a
aplicabilidade do instituto não está circunscrita aos actos administrativos
plurais, como sustenta a recorrente, abonando‑se na opinião de Luís Filipe
Colaço Antunes (“O artigo 161.º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos: uma complexa simplificação”, in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 43, págs. 16‑24). Criticando esta opinião, aduzem os
referidos comentadores (nota 899, a pp. 921‑922), que “o preceito em causa não
visa assegurar a eficácia erga omnes da sentença anulatória, que, no plano
substantivo, se impõe, pela própria natureza do efeito constitutivo da sentença,
em relação a todos os que pelo acto sejam afectados. O preceito não visa,
portanto, aplicar‑se às situações de actos administrativos com destinatário
plural ou indeterminado, mas a quaisquer actos administrativos que tenham
colocado o interessado em situação jurídica idêntica à dos destinatários de
outros actos que já foram contenciosamente anulados. Não se afigura, por outro
lado, compreensível a objecção deduzida pelo Autor de que a aplicação nos termos
aqui propostos do mecanismo do artigo 161.º a quaisquer actos administrativos
(que não apenas os actos plurais ou gerais) implicaria a anulação de actos que
não constituíram objecto de acção anulatória. Na verdade, é no pedido de
extensão de efeitos que o interessado vai agir contra o acto que o lesou e é a
decisão de extensão de efeitos que vai anular o acto em causa, com base no
prévio reconhecimento da identidade das situações em presença e do
preenchimento dos demais pressupostos da extensão de efeitos. A anulação
decorre, portanto, não de um alargamento do objecto do processo impugnatório
originário, mas do processo de extensão de efeitos que é intentado pelo
interessado, com sujeição ao contraditório da Administração (sem que se coloque
a questão do contraditório dos contra‑interessados, visto que, como se refere no
texto, a existência de contra‑interessados que não tenham intervindo no
processo em que foi proferida a sentença anulatória constitui, nos termos do n.º
5, um requisito negativo da extensão de efeitos)”.
De qualquer forma, não competindo ao Tribunal
Constitucional, nesta sede, tomar partido sobre a interpretação tida por mais
correcta da norma em causa, há que considerar, como um dado da questão de
inconstitucionalidade que cumpre apreciar, que o entendimento sufragado pelo
acórdão recorrido foi o de que o instituto em causa não se circunscreve aos
“actos plurais”, sendo aplicável face a actos administrativos individuais, desde
que, porém, se verifiquem os demais requisitos elencados no preceito.
O primeiro requisito é o do trânsito em julgado da
sentença que tenha anulado um acto administrativo desfavorável ou reconhecido
uma situação jurídica favorável a uma ou várias pessoas. O segundo é que, se o
requerente da extensão de efeitos tiver recorrido à via judicial, no respectivo
processo ainda não exista sentença transitada em julgado. Depois, é necessário
que, na decisão judicial cuja extensão de efeitos se pretende, o tribunal
tenha julgado procedente uma pretensão perfeitamente idêntica àquela que
o interessado accionou ou teria podido accionar contra a mesma entidade
administrativa (isto é: que se trate “de um litígio contra a mesma entidade
administrativa e que surja na sequência da mesma questão de direito, cuja
resolução convoque a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras
jurídicas ou, se se preferir, de um caso idêntico, quanto ao pedido (igual
providência pretendida) e à causa de pedir (procede de idêntico facto
jurídico), àquele sobre que recaiu a sentença” – Rodrigo Esteves de Oliveira,
estudo citado, p. 261). Em seguida, exige‑se que, no mesmo sentido, tenham sido
proferidas cinco sentenças transitadas em julgado ou três sentenças proferidas
em processos seleccionados nos termos do artigo 48.º do CPTA (processos em
massa). Finalmente, excluem‑se da aplicabilidade do instituto as situações em
que existam contra‑interessados que não tomaram parte no processo em que foi
proferida a sentença cujos efeitos se pretendem estender ao caso dos
requerentes, excepto se estes tiverem lançado mão, no momento próprio, da via
judicial adequada, encontrando‑se pendente o correspondente processo. Apenas se
acrescente que tem sido doutrinalmente entendido que a extensão dos efeitos da
sentença, sendo admissível apesar do decurso do prazo de impugnação do acto
administrativo desfavorável (isto é: apesar da caducidade do correspondente
direito de acção), já não é possível se dela resultar afectação das situações de
prescrição substantiva (neste sentido: José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça
Administrativa (Lições), 9.ª edição, Coimbra, 2007, p. 391 e nota 897), pois o
artigo 161.º “não constitui causa de desaplicação dos prazos de prescrição que
eventualmente haja para o exercício dos direitos substantivos que se pretendem
fazer valer” (Rodrigo Esteves de Oliveira, estudo citado, p. 263).
É dentro destes rigorosos requisitos que o legislador
admite que seja reconhecida a pretensão dos requerentes a um tratamento
idêntico ao concedido, em “casos perfeitamente idênticos”, por jurisprudência
reiterada, mesmo que aqueles não tenham lançado mão, oportunamente, dos meios
processuais de impugnação do acto que lhes foi desfavorável, e que, por isso, se
teria convertido em “caso decidido” ou “caso resolvido”.
2.3. Este “desrespeito do caso decidido”, com
“afastamento das consequências típicas associadas ao decurso do prazos de
caducidade (do direito de acção)”, violará, como pretende a recorrente, os
princípios constitucionais da segurança jurídica e da igualdade?
Como a jurisprudência deste Tribunal (na esteira, aliás,
de entendimento já defendido pela Comissão Constitucional) tem reiteradamente
afirmado (cf., por último, as sínteses constantes dos n.ºs 11 e 12 do Acórdão
n.º 86/2004 e do n.º 2.3. do Acórdão n.º 310/2005, e Isabel Alexandre, “O Caso
Julgado na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, em Estudos em Homenagem
ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 11‑77), nem
sequer o caso julgado (judicial) beneficia de protecção constitucional
absoluta, apesar da possibilidade de convocação, em seu apoio, não apenas do
princípio da segurança jurídica inerente ao princípio do Estado de direito
(artigo 2.º), mas também da especial força vinculativa das decisões dos
tribunais (artigo 205.º, n.º 2) e do princípio da separação de poderes (artigos
2.º e 111.º, n.º 1, todos da CRP). Da desenvolvida análise da jurisprudência do
Tribunal feita no citado estudo conclui a respectiva autora que o caso julgado
(material ou formal) não é concebido como um valor absoluto, embora,
considerando‑se naturalmente imanente à função jurisdicional a definitividade da
decisão proferida a final num processo, a modificabilidade ou revogabilidade
dessa decisão só deva ser permitida em casos excepcionais, cabendo, porém, uma
“vasta margem de liberdade do legislador na escolha das decisões que, dentro do
processo, são aptas a constituírem caso julgado, na determinação dos limites do
caso julgado e, bem assim, no estabelecimento dos requisitos do trânsito em
julgado de uma decisão”; por outro lado, da analisada jurisprudência extrai‑se
ainda que “o caso julgado deve poder ser impugnado em certos casos”, sendo
configurável a revisão de sentenças (mesmo fora do campo criminal – em que o
direito à revisão das sentenças condenatórias injustas está expressamente
consagrado no artigo 29.º, n.º 6, da CRP) como uma decorrência do direito de
acção, não podendo o legislador abolir, pura e simplesmente, os recursos
extraordinários (caracterizados por terem por objecto decisões transitadas em
julgado) em processo civil (estudo citado, pp. 61‑62). Como, a este propósito,
se referiu no n.º 2.4. do Acórdão n.º 310/2005, “o caso julgado, configurando‑se
como um valor constitucionalmente relevante, deverá dispor de algum grau de
protecção (de intangibilidade), em termos de a sua ultrapassagem só ser
aceitável dentro de um lógica de balanceamento ou ponderação com outros
interesses dotados, também eles, de tutela constitucional. E, seguindo este
entendimento, se é certo que a existência de um meio processual de ultrapassagem
do caso julgado, v. g. com as características que o nosso ordenamento adjectivo
confere ao recurso de revisão (e ao recurso de oposição de terceiro), cumpre
igualmente um objectivo dotado de relevância constitucional (que decorre do
artigo 20.º da CRP), não é menos certo que, descontada a supressão pura e
simples da existência desse (de um qualquer) meio de ultrapassagem do caso
julgado – supressão esta constitucionalmente ilegítima – ao legislador
ordinário sempre assistirá um apreciável grau de liberdade na configuração
concreta desse meio processual”.
Ora, o denominado “caso decidido” (administrativo)
seguramente não merece protecção constitucional mais intensa que o “caso
julgado” (judicial). A propósito da norma do artigo 282.º, n.º 3, da CRP, que
ressalva os “casos julgados” dos típicos efeitos ex tunc da declaração de
inconstitucionalidade, tem sido discutida a extensão dessa ressalva aos “casos
decididos” (e a outras situações juridicamente consolidadas), sendo prevalecente
a ideia de que, embora similares razões de segurança jurídica possam justificar
essa extensão (que o Tribunal Constitucional tem cautelarmente feito, em
diversas situações, através do uso da faculdade de limitação de efeitos que o
n.º 4 desse artigo 282.º lhe confere), ela não é imperiosa nem assenta
directamente numa equiparação, constitucionalmente imposta, entre caso julgado e
caso decidido (cf., por último, uma referência desenvolvida ao “estado da
questão”, dos pontos de vista doutrinal e jurisprudencial, em Jorge Miranda e
Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, 2007, pp.
842‑845, nota VIII ao artigo 282.º). Por isso, seguramente que não pode ser
atribuído um valor absoluto à “intangibilidade” do “caso decidido”, sendo
admissíveis quebras à tendencial estabilidade das relações jurídicas definidas
por actos administrativos “consolidados”, desde que outros valores
constitucionais relevantes tal justifiquem.
Acresce que, contrariamente ao que a recorrente parece
supor, da não impugnação de um acto administrativo desfavorável, que padeça de
vício gerador de anulabilidade, no prazo de que legalmente dispunha um
determinado interessado, nem se segue imediatamente a formação de “caso
decidido”, nem, muito menos, mesmo quando esta consolidação venha a ocorrer,
dela decorre a sanação do vício ou a convalidação do acto.
Antes de prosseguirmos com a demonstração destas
afirmações, importa, desde já, desfazer o equívoco, em que a recorrente parecer
incorrer, consistente no tratamento da falta de impugnação tempestiva de acto
inválido desfavorável como se representasse a “aceitação do acto”, expressa ou
tácita (derivando esta da “prática, espontânea e sem reserva, de facto
incompatível com a vontade de impugnar”), que priva o interessado da faculdade
de impugnar o acto. Esta “aceitação do acto” tem sido tradicionalmente tratada,
designadamente pelo legislador (cf. artigos 827.º do Código Administrativo,
47.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, 53.º, n.º 4, e 160.º,
n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo e 56.º do CPTA), a propósito da
legitimidade contenciosa e procedimental, o que conduziu a que fosse concebida
como um requisito negativo desse pressuposto processual (cf. Rui Chancerelle de
Machete, “Sanação (do acto administrativo inválido)”, em Dicionário Jurídico da
Administração Pública, vol. VII, 1996, pp. 327‑343, em especial n.º 10, a pp.
339‑341), tendo mais recentemente J. C. Vieira de Andrade (“A aceitação do acto
administrativo”, Boletim da Faculdade de Direito, Volume Comemorativo do 75.º
Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2003, pp. 907‑934) defendido a
sua concepção como um “pressuposto processual autónomo” (p. 926), concebido como
“um mero acto jurídico do particular, que revele a sua conformação voluntária
com o conteúdo da decisão de autoridade, (…) e que produz, por determinação
legal, a perda da faculdade de impugnação desse acto” (p. 919).
Independentemente da concepção que se perfilhe, duas constatações merecem a
concordância dos dois autores citados: por um lado, são figuras diferentes o
decurso do prazo de impugnação e a aceitação do acto [segundo J. C. Vieira de
Andrade, local citado, p. 915, “nunca o decurso do tempo poderia ser entendido
como uma manifestação de vontade (que a aceitação sempre pressupõe), nem o facto
do não exercício do direito nesse tempo poderia significar uma conformação com
os efeitos do acto – para além de não constituir uma aceitação expressa nem, em
rigor, configurar a prática de um facto, o não exercício pode ter sido
determinado pelas mais diversas razões”; para Rui Chancerelle de Machete, local
citado, pp. 337‑338, a aceitação do acto, a renúncia ao recurso contencioso e o
decurso do prazo para recorrer, apesar de ser frequente na doutrina e na
jurisprudência uma certa indistinção terminológica e também conceptual, “são,
porém, figuras estruturalmente diferentes que importa não confundir”, tendo “a
preclusão do direito de impugnação por decurso do prazo processual previsto
para o exercitar” como causa “um facto e não um acto jurídico (…) das partes”];
por outro lado, a aceitação do acto – tal como a seguir veremos acontecer quanto
ao decurso do prazo de impugnação – não tem qualquer efeito de sanação do vício
de que o acto padeça: “a aceitação da disciplina desfavorável de acto
administrativo traduz‑se em [o particular] abdicar do seu interesse à disciplina
favorável, isto é, em renunciar ao interesse legítimo”, mas “não pode
entender‑se como adesão ou reconhecimento da legalidade do acto, pelo carácter
indisponível de interesse público prosseguido pela Administração” (Rui
Chancerelle de Machete, local citado, p. 341).
Encerrado este parêntesis, destinado a afastar a
confusão entre aceitação do acto e decurso do prazo de impugnação do acto, e
retomando a demonstração encetada, sublinhe‑se que a não impugnação de
determinado acto administrativo anulável, no prazo legalmente concedido a
determinado interessado, apenas produz a relativa estabilização do acto quanto a
esse interessado, sendo bem possível que tal estabilização só venha a ocorrer
posteriormente quanto a outros interessados, bastando para tal que o início dos
respectivos prazos de impugnação se tenha iniciado mais tarde (por ter ocorrido
posteriormente o facto – notificação, publicação, conhecimento do acto ou da
sua execução – que marca o início da respectiva contagem) ou que esses prazos
tenham duração superior (como geralmente ocorre com o prazo de impugnação de que
dispõe o Ministério Público, que é de um ano, em contraste com o prazo de três
meses dos restantes interessados, prazo este que, aliás, pode ser excedido, até
ao limite de um ano, se se demonstrar que, no caso concreto, a tempestiva
apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente por:
(i) a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro; (ii) o
atraso dever ser considerado desculpável, atendendo à ambiguidade do quadro
normativo aplicável ou às dificuldades que, no caso concreto, se colocavam
quanto à identificação do acto impugnável ou à sua qualificação como acto
administrativo ou como norma; ou (iii) se ter verificado uma situação de justo
impedimento – artigo 58.º do CPTA).
Da expiração do prazo de impugnação de acto anulável por
parte do particular seu destinatário também não se segue a sua imediata
“consolidação” por outra razão: é que a própria Administração mantém o poder de
revogação do acto inválido, com fundamento na sua invalidade, dentro do prazo do
recurso que terminar em último lugar (artigo 141.º do Código do Procedimento
Administrativo).
Mas mesmo que venham a expirar todos os prazos, quer de
impugnação, quer de revogação (e/ou anulação), do acto administrativo inválido,
e quando, assim, finalmente, se puder falar com rigor em “caso decidido” ou
“caso resolvido”, daí não se segue a convalidação do acto ou sanação do vício,
não sendo lícito afirmar que, por esses factos, o acto ilegal se transformou num
acto legal, o que é bem demonstrado pela possibilidade de a ilegalidade (e
inerente ilicitude) do acto “consolidado” ser apreciada incidentalmente em acção
de responsabilidade. Como refere Margarida Cortez (A Responsabilidade Civil da
Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa
do Lesado, Coimbra, 2000, pp. 82‑85), a inimpugnabilidade, sendo “uma
qualificação dos actos administrativos que já não se encontram ao alcance do
poder de reacção directa dos particulares”, “não é uma qualificação intrínseca
dos actos administrativos e (…), portanto, não tem quaisquer conexões com a
validade”, e, por isso, “não determina a convalidação do acto inválido, pois é
apenas uma modalidade de conservação e não de convalescença dos actos
administrativos inválidos em geral”: “o acto permanece tal qual era antes de
expirado o prazo de recurso, conservando os vícios com que nasceu”. E prossegue
esta autora: “Contrariamente à sentença que, uma vez transitada em julgado,
adquire força de «verdade legal», não podendo mais ser posta em causa, ainda que
indirectamente, o acto administrativo pode ver a sua legalidade contestada por
via de incidente ou por via de excepção. Daí a possibilidade de apreciar a
(i)legalidade de um acto administrativo, que entretanto se tornou inopugnável,
numa acção sobre responsabilidade, tendo em vista o apuramento da ilicitude.
(…) Quer isto dizer que o esgotamento do prazo de recurso não produz efeitos
substanciais: não incide sobre a situação jurídica substantiva, eventualmente
subjacente, não impedindo, portanto, a sua tutela por outras vias. Daí que não
se possa atribuir ao acto administrativo uma autoridade material análogo à do
caso julgado material da sentença, especialmente no que se refere à sua
incontestabilidade por via judicial” (obra citada, pp. 84‑85).
O não reconhecimento ao decurso do prazo de impugnação
de acto administrativo anulável de efeito sanatório do vício de que padecesse
e, consequentemente, a aceitação da persistência da ilicitude derivada da
ilegalidade do acto acabou por ser jurisprudencialmente reconhecida,
designadamente no acórdão do Pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo, de 27 de Fevereiro de 1996, proc. n.º 23 058 (publicado, como
anotação de Margarida Cortez, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 1,
Janeiro/Fevereiro de 1997, pp. 8‑18), que abandonou a concepção tradicional da
segunda parte do artigo 7.º do Decreto‑Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de
1967, como o estabelecimento de um regime de caducidade do direito de
ressarcimento ou de uma excepção peremptória fundada no caso decidido ou caso
resolvido por falta de oportuna impugnação contenciosa, para ver nessa previsão
legal apenas o estabelecimento de um regime de exclusão ou diminuição da
indemnização quando a negligência processual do lesado, por omissão ou
deficiência na impugnação contenciosa do acto administrativo ilegal ou na
utilização dos meios processuais acessórios, tenha contribuído para a produção
ou agravamento dos danos.
Foi este entendimento que veio a ser legislativamente
consagrado, de forma inequívoca, primeiro no artigo 38.º, n.º 1, do CPTA, que
permite que o tribunal, designadamente no domínio da responsabilidade civil da
Administração por actos administrativos ilegais, possa “conhecer, a título
incidental, da ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser
impugnado”, e, por último, no novo Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º
67/2007, de 31 de Dezembro, cujo artigo 4.º dispõe que “quando o comportamento
culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos
causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à
eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na
gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham
resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo
excluída”.
Por último, refira‑se que, para além de – como acabou de
se demonstrar – o decurso do prazo de impugnação de acto inválido não ter efeito
sanatório do vício que o afecta, não convertendo, assim, um acto ilegal em acto
legal, a “estabilidade” do “caso decidido”, agora numa perspectiva substantiva,
já havia sido relativizada pela disposição do artigo 9.º, n.º 2, do Código do
Procedimento Administrativo, que, a contrario, permite a renovação de
pretensões, mesmo sem invocação de novos fundamentos, decorridos dois anos sobre
a apresentação de requerimento entretanto objecto de acto administrativo
desfavorável. Como refere Mário Aroso de Almeida (“Considerações em torno do
conceito de acto administrativo impugnável”, em Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento, Coimbra,
2006, p. 276): “Por força do disposto no artigo 9.º, n.º 2, do CPA, ainda que o
interessado não reaja e deixe consolidar na ordem jurídica um acto de conteúdo
negativo, ele não fica impedido, no plano substantivo, de deduzir de novo a
mesma pretensão, constituindo de novo a autoridade competente no dever de
decidir, desde que aguarde o decurso do prazo de dois anos. Embora não lhe
retire a força de caso decidido formal (…), esta solução tem o alcance de
retirar ao acto negativo a força de caso decidido material, impedindo que a
solução por ele determinada se possa vir a consolidar em termos definitivos na
ordem jurídica”.
Demonstrada a relatividade que o ordenamento jurídico
vigente confere à “estabilidade” das situações jurídicas definidas por acto
administrativo não oportunamente impugnado pelo interessado, é neste domínio
mais patente – em comparação com as situações cobertas por caso julgado judicial
– a admissibilidade constitucional, sem quebra intolerável do princípio da
protecção da segurança jurídica, de soluções legais que admitam o desrespeito de
“casos decididos”, desde que tal seja reclamado por outros valores, também eles,
constitucionalmente tutelados. Ainda recentemente, no Acórdão n.º 164/2008
(cuja doutrina foi reiterada no Acórdão n.º 265/2008), o Tribunal
Constitucional, ao julgar não inconstitucional a norma constante do artigo
371.º‑A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de
audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas
concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa
da liberdade, reconheceu que a intangibilidade do caso julgado (no caso,
penal), apesar da sua relevância no âmbito da protecção constitucional da
segurança jurídica, não assumia valor absoluto, não prevalecendo sobre os
valores constitucionais (tidos por superiores) da aplicação retroactiva do
regime penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
Com efeito, como recentemente se recordou no Acórdão n.º
335/2008 desta 2.ª Secção, com desenvolvidas referências doutrinais e
jurisprudenciais, o princípio da protecção da confiança, que proscreve a
afectação intolerável, inadmissível e arbitrária de direitos e expectativas
legítimas – em regra visto na perspectiva da defesa dos direitos dos cidadãos,
mas que nada impede seja também encarado do ponto de vista da Administração (ou
de associações profissionais para que foram transmitidos poderes de autoridade
na definição do acesso a determinadas profissões, como no presente caso ocorre)
– assenta numa “ideia geral de inadmissibilidade [que] poderá ser aferida,
nomeadamente, pelos dois seguintes critérios: a) a afectação de expectativas, em
sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem
jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes
não possam contar; e, ainda, b) quando não for ditada pela necessidade de
salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam
considerar‑se prevalecentes (deve recorrer‑se, aqui, ao princípio da
proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos,
liberdades e garantias, no n.º 2 do art. 18.º da Constituição, desde a 1.ª
Revisão). Pelo primeiro critério, a afectação das expectativas será
extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa
onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque
injustificada ou arbitrária”.
Ora, como se viu, “a determinação em concreto das
situações consolidadas não é uma questão resolvida pelo texto constitucional”
(Jorge Miranda e Rui Medeiros, obra e tomo citados, pp. 844‑845), cabendo neste
domínio uma ampla margem de conformação ao legislador ordinário, designadamente
quanto à definição das condições de constituição de “caso decidido”, aos seus
efeitos e aos requisitos da sua modificabilidade. Por outro lado, a
possibilidade de, apesar do decurso do prazo de impugnação do acto desfavorável
de que o interessado dispôs (gerando a inimpugnabilidade, que não a
convalidação, do acto), vir a ser‑lhe reconhecido – pelo mecanismo da extensão
dos efeitos das sentenças proferidas em situações perfeitamente iguais, de
acordo com jurisprudência consistentemente reiterada, e sem possibilidade de
afectação de direitos de contra‑interessados – o direito por aquele acto negado,
é ditada por preocupações, constitucionalmente relevantes, de justiça material e
de tratamento igual de situações substancialmente iguais.
Esta última consideração serve também para dar por não
verificada a alegada violação do princípio da igualdade. Como no recente Acórdão
(do Plenário) n.º 313/2008 se recordou, citando o Acórdão n.º 522/2006:
“2.2.2.1. Constitui jurisprudência assente e reiterada deste
Tribunal a caracterização do princípio da igualdade, decorrente do artigo 13.º
da CRP, como proibição do arbítrio (cf. o Acórdão n.º 232/2003, publicado no
Diário da República, I Série‑A, de 17 de Junho de 2003, pp. 3514/3531). Com tal
sentido, nas palavras do Tribunal Constitucional, «[o] princípio [da igualdade]
não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se
possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, ‘razoável, racional
e objectivamente fundadas’, sob pena de, assim não sucedendo, ‘estar o
legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções
objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes’ […].
Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e
afaste a discriminação infundada […]» (Acórdão n.º 319/2000, publicado no Diário
da República, II Série, de 18 de Outubro de 2000, pp. 16 785/16 786).
Na sugestiva formulação do Tribunal Constitucional alemão (citado
por Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, p. 370), o carácter
arbitrário de uma diferenciação legal decorre da circunstância de «[...] não
ser possível encontrar […] um motivo razoável, que surja da própria natureza das
coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível […]». Daí que
«[n]ão exista razão suficiente para a permissão de uma diferenciação [legal] se
todos os motivos passíveis de ser tomados em conta tiverem de ser considerados
insuficientes. É justamente o que sucede, quando não se logra atingir uma
fundamentação justificativa da diferenciação […]. A máxima de igualdade implica,
assim, um ónus de argumentação justificativa para tratamentos desiguais»
(Robert Alexy, ob. cit., p. 371).”
O regime legal questionado, implicando, “no contexto dos
processos em massa, uma redefinição do «caso decidido», que aqui se entendeu
dever vergar ao maior peso do direito a igual tratamento” (Rodrigo Esteves de
Oliveira, estudo citado, p. 263), não surge como arbitrário, nem desrazoável ou
injustificado, antes busca, dentro de apertados requisitos, alcançar um
tratamento substancialmente idêntico para situações substancialmente idênticas,
com sacrifício – que o legislador considerou justificado, em juízo que não
assume irrazoabilidade tal que leve o Tribunal Constitucional a fulminá‑lo como
inconstitucional – da relativa estabilidade de que, em regra, beneficiam os
actos administrativos cujo prazo de impugnação já decorreu.
Termos em que se consideram improcedentes os vícios de
inconstitucionalidade assacados pela recorrente à norma questionada.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do
artigo 161.º, n.ºs 1 a 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º
4‑A/2003, de 19 de Fevereiro; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão
recorrido, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Julho de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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