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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 18-04-2007
 Especulação Recusa de passagem de recibo da renda Crime continuado
I - O art. 60.º da Lei 6/2006, norma que revogou o RAU de 1990 e aprovou o novo RAU (NRAU), suscita a dúvida sobre se a revogação ali prevista apenas abrange o RAU de 1990 ou também as disposições previstas no próprio diploma que o aprovou, o DL 321-B/90, de 15-10, concretamente o art. 14.º, que tipifica como crime de especulação a conduta dos senhorios que, para além do mais, recusem recibo de renda.
II - Em favor desta última tese apresentam-se três argumentos: primeiro, que existiu uma “revogação do sistema”, que determinaria a revogação de todas as normas do sistema anterior; segundo, que em qualquer caso as normas preambulares seguem necessariamente o destino do regime principal; e, por fim, que se verifica uma “desnecessidade” de tutela penal do inquilino nas situações anteriormente incriminadas no art. 14.° do DL 321-B/90, protecção essa que ofenderia o princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal.
III - Em defesa de posição contrária, e rebatendo aquela argumentação, pode dizer-se:- a “revogação do sistema” ocorreu, mas apenas em relação ao próprio contrato de arrendamento urbano, ou seja, à disciplina civilística do arrendamento urbano. O art. 14.º do DL 321-B/90 não integra, nem formalmente nem teleologicamente, o RAU, pois uma coisa é o contrato de arrendamento urbano e outra é a protecção penal dos bens jurídicos, conceito que extravasa os interesses privados que à disciplina jurídica do contrato cumpre reger. A revogação da lei civil nunca terá repercussão na lei penal, a não ser que intervenha na definição de algum dos elementos do tipo de crime (v.g., se o NRAU deixasse de estipular a passagem de recibo é óbvio que a infracção penal seria automaticamente revogada);- a arrumação sistemática das normas é muitas vezes circunstancial ou contingente, por isso a inclusão de uma norma no preâmbulo de um diploma não lhe retira qualquer dignidade que ela não revista intrinsecamente, como é o caso das normas penais: as normas penais dispersas ou extravagantes são muitas, mas essa dispersão formal e sistemática não significa que elas não tenham dignidade penal igual à das codificadas, ou que estejam submetidas a um destino mais precário. É, por isso, de rejeitar o argumento de que a norma penal inserida num diploma preambular que aprova uma lei civil siga necessariamente o destino desse diploma civil;- o princípio da intervenção mínima é de facto um princípio estrutural do direito penal e tem assento constitucional (art. 18.°, n.º 2, da CRP). Contudo, para que se possa dizer violado pela vigência/permanência do art. 14.° do DL 321-B/90, no segmento que aqui importa (criminalização da recusa pelo senhorio da passagem de recibo da renda), seria necessário concluir que ele estabelece uma protecção desmesurada do inquilino, em prejuízo do senhorio, o que não é verdade. A carência de habitação continua a ser uma mazela profunda e evidente que afecta sectores muito largos da sociedade portuguesa. Os carenciados são muitas vezes tentados a aceitar práticas ilegais por parte dos proprietários para terem acesso à habitação. A recusa de passagem de recibo é uma das mais correntes práticas ilegais neste âmbito, que prejudica os inquilinos e também o Estado (fisco). A passagem do recibo é, por um lado, uma garantia da prova do contrato, para o inquilino (e consequentemente da garantia da habitação) e, por outro, da salvaguarda dos interesses públicos, na vertente das receitas fiscais. Como tal, não vê que se mostre desproporcionada, ou violadora do princípio da intervenção mínima do direito penal, uma incriminação que visa proteger bens jurídicos de natureza vincadamente social e pública.
IV - Conclui-se, assim, que o art. 14.° do DL 321-B/90, de 15-10, não foi revogado pelo art. 60.º da Lei 6/2006, de 27-02.
V - No caso de prática de vários (três) crimes de especulação por recusa de entrega de recibo de renda, a celebração de um primeiro contrato de arrendamento sem passagem de recibo não configura, obviamente, uma situação externa à arguida, que permita eventualmente imputar-lhe a prática daquele crime sob a forma continuada. Com efeito, tendo sido a própria arguida a criar a situação, de que posteriormente se quer aproveitar como mitigadora da culpa, não há dúvida de que a sua actuação não integra atenuação da culpa, antes uma maior pertinácia na repetição de uma conduta ilícita.
VI - E também não tem sentido invocar, como “regra da experiência comum”, o “desinteresse” dos inquilinos pela passagem de recibo, uma vez que não só é por demais questionável que tal regra exista, como porque, no caso, se provou que os três inquilinos exigiram por diversas vezes a entrega do recibo contra o pagamento da renda, o que sempre a recorrente recusou. Consequentemente, as circunstâncias do caso não constituem nenhuma “situação externa” favorável à repetição criminosa em termos de atenuação da culpa, sendo de afastar a possibilidade de unificação das infracções imputadas à arguida num crime continuado.
Proc. n.º 793/07 - 3.ª Secção Maia Costa (relator) Pires da Graça Henriques Gaspar Soreto de Barros
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