Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Sumários do STJ (Boletim) -
Procurar: Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
ACSTJ de 25-09-2008
 Concurso de infracções Conhecimento superveniente Cúmulo jurídico Pena única Fundamentação Culpa Ilicitude Pluriocasionalidade Prevenção geral Prevenção especial Princípio da proporcionalidade Princípio da proibição da dupla valoração Inimputa
I -O sistema de punição do concurso de crimes consagrado no art. 77.º do CP, aplicável ao caso de conhecimento superveniente do concurso, adoptando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente». Por isso, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.
II - Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que esteve na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido. Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso. A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação. Afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o CP.
III - Tal concepção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso…só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo – da «arte» do juiz – …ou puramente mecânico e portanto arbitrário», embora se aceite que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor nem a extensão pressupostos pelo art. 71.º do referido diploma legal.
IV - Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
V - Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.
VI - Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado.
VII - Relativamente à prevenção importa verificar, no âmbito da prevenção geral, o significado do conjunto de actos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delin-quente, para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos.
VIII - Mas a avaliação da personalidade em função dos factos não se pode reconduzir a um apelo a repetidas fórmulas de natureza genérica (que induzem a elaboração de um cúmulo jurídico à revelia dos concretos factores a ponderar), sem qualquer significado ou valor para a situação concreta, antes deve traduzir, e ponderar, as concretas circunstâncias que rodearam e motivaram o agente na prática da pluralidade de crimes.
IX - Assim, é destituída de fundamento a alusão, na decisão recorrida, a especiais razões de prevenção geral, positivas ou negativas, sem qualquer concretização, perante um burlão que fez dessa actividade a sua profissão [diz-se no acórdão recorrido que o percurso criminoso remonta ao ano de 1978], mas sem que as quantias alcançadas tenham atingido um valor muito elevado, ficando a dúvida sobre o motivo pelo qual o crime de burla ou de falsificação passou a exigir do intérprete uma especial atenção. É que a frequência dos actos ilícitos praticados carece de fundamento legal se perspectivada unicamente em termos de prevenção geral intimidatória.
X - E não se vislumbra, na mesma decisão, um sopesar das finalidades das penas, nomeadamente numa perspectiva de prevenção especial, de ressocialização, quando, pela prática de crimes de burla e falsificação com a dimensão exposta, é aplicada uma pena de 17 anos de prisão. Tal sanção encontra-se desligada do princípio da proporcionalidade das penas.
XI - Na verdade, as penas têm de ser proporcionadas à transcendência social – mais que ao dano social – que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido, porquanto a sua garantia é o principal fundamento daquela intervenção.
XII - E é exactamente essa proporcionalidade, em função de ponto de vista preventivo geral e especial, avaliada em função do bem jurídico protegido e violado, que está em causa com a aplicação de uma pena de 17 anos de prisão, sendo certo que, em abstracto, em termos parcelares, o crime a que corresponde o limite máximo de moldura penal se situa nos 8 anos de prisão.
XIII - Por outro lado, a forma como foram valorados os antecedentes criminais (que constituem, aliás, o único factor concreto que é indicado em termos relevantes na definição da pena conjunta) – repetida, pois, para além de terem sido devidamente ponderados na determinação de cada uma das penas parcelares, são referidos quando a decisão recorrida aprecia a personalidade do arguido e ainda quando equaciona as necessidades de prevenção geral – traduz a violação do princípio da proibição da dupla valoração.
XIV - Finalmente, a decisão recorrida, ao ignorar a questão fundamental dos presentes autos, relevante em termos de culpa e de prevenção, qual seja a de o relatório pericial considerar que o arguido é portador de uma entorse caracterial que transporta e que lhe rouba a margem de manobra no governo de si, autorizando a proposta de uma imputabilidade diminuída – pois, não manifestando qualquer discordância face ao teor das conclusões do relatório pericial, não lhes atribuiu qualquer relevância e, consequentemente, não as aferiu, e valorou, em função da globalidade da actuação criminosa –, incorreu em omissão de pronúncia sobre questão que tinha de apreciar e decidir, o que determina a nulidade prevista no art. 379.º do CPP.
XV - O art. 20.°, n.º 1, do CP impõe que a anomalia psíquica, como substrato biopsicológico do juízo de inimputabilidade, se verifique no momento da prática do facto.
XVI - E é em relação a cada um dos concretos actos praticados que deve ser aferido o juízo sobre a imputabilidade do arguido.
XVII - Um dos factores que pode afectar a capacidade de culpa são as perturbações psíquicas que o CP contempla no referido art. 20.º, fazendo apelo a dois pressupostos: o biológico e o psicológico. O primeiro consubstancia-se na existência de uma qualquer anomalia psíquica e o segundo na circunstância de terem ficado afectadas faculdades decisivas para a formação da vontade do homem.
XVIII - É exactamente aqui que entronca a questão suscitada pelo caso vertente, trazendo à colação o facto de a anomalia psíquica de que o arguido é portador ter como efeito norma-tivo, não a sua incapacidade para avaliar a ilicitude do facto, mas a sua capacidade de determinação de acordo com essa avaliação, ou seja, uma capacidade ainda subsistente mas em grau sensivelmente diminuído.
XIX - Nessa compreensão normativa se situa o Prof. Figueiredo Dias quando refere que a questão da imputabilidade diminuída não necessita de um tratamento legislativo próprio, devendo ser resolvida à luz da culpa e da inimputabilidade, sustentando: «Se, nos casos de imputabilidade diminuída, as conexões objectivas de sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e aquele deve, por isso, ser considerado imputável, então as qualidades especiais do seu carácter entram no objecto do juízo de culpa e por ela tem o agente de responder. Se essas qualidades forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante, elas fundamentarão – ao contrário do que sucederia numa perspectiva tradicional – uma agravação da culpa e um (eventual) aumento de pena; se, pelo contrário, elas fizerem com que o facto se revele mais digno de tolerância e de aceitação jurídico-penal, poderá justificar-se uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena.»
Proc. n.º 2288/08 -3.ª Secção Santos Cabral (relator) Oliveira Mendes
   Contactos      Índice      Links      Direitos      Privacidade  Copyright© 2001-2024 Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa