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    Sumários do STJ (Boletim) -
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ACSTJ de 25-09-2008
 Abuso sexual de crianças Agravante Bem jurídico protegido Direitos de personalidade Indemnização Danos não patrimoniais
I -O legislador do nosso CP consagra no domínio da sexualidade uma ampla concepção, despida de todo e qualquer propósito moralista, só sendo proibida a manifestação sexual que não for consentida, fazendo excepção relativamente a crianças, por presumir, juris et de jure, que, atenta a sua idade, não têm capacidade para se autodeterminarem sexualmente, perceberem o significado do acto sexual, estando a sua liberdade sexual, naturalmente, afectada.
II - O que se intenta com a punição do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP é o desenvolvimento imperturbado da sexualidade, de modo a que decorra sem sobressaltos, por forma a que, ultrapassada a fase da inocência, a pessoa possa exercê-la sadia e responsavelmente.
III - A lei penal sobrepõe-se, pois, para proteger o bem jurídico em causa, que é a liberdade sexual, a liberdade de crescer na inocência, até a criança atingir maturidade física e psíquica, bem como capacidade, com presciência e autenticidade, para avaliar a entrega sexual.
IV - A relevância do acto sexual não pode abstrair das realidades sociais, das concepções sociais reinantes, da própria evolução dos costumes, só autorizando a concluir que o é quando ofenda o normal sentimento de pudor da vítima, se e na medida em que é sustentada naquelas envolventes. Ele tem que comportar um peso de censura, extraído do sentimento comunitariamente reinante, para ser havido como grave e relevante; se a censura for epidémica e não bulir com sentimentos de feição dominante não atingirá patamar de reprovação penal, possa embora atingir outros de menor dignidade e reprovação. Esta a orientação do STJ expressa em numerosas decisões – cf. Acs. de 31-10-1995, Proc. n.º 48119, de 30-11-2000, Proc. n.º 2761/00 -5.ª, e de 15-06-2000, CJ, Ano VIII, tomo II, pág. 226.
V - Dentro da margem de indeterminação do conceito, atingem sobejamente o sentido e alcance de actos sexuais de relevo, tipicizando o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, os seguintes actos praticados pelo arguido e vertidos na factualidade assente – por este confessos, mas aos quais atribui uma função educativo-sexual da menor, sem carga malévola, sem intenção libidinosa: -em data indeterminada da semana que antecedeu o Natal de 2001, encostou o seu corpo nu ao da filha menor quando esta se achava deitada, a pretexto de ficarem “mais quentinhos”, e introduziu, pelo interior das cuecas, os dedos, a fim de medir o espaço internádegas, tocando a vagina da menor, então com 10 anos de idade; -repetiu estes actos quando a filha tinha 11 anos, por vários dias dos meses de Julho/Agosto de 2002, depois de, previamente, lhe passar as mãos pelo corpo, particularmente pelos seios, abraçando-a pelas costas; no mesmo período, numa praia fluvial, sita próxima da casa onde viviam, completamente nu, nadou por sobre a filha, abraçando-a, passando-lhe os braços sobre a barriga; -no período de férias de 2003 repetiu a aproximação, nu, à filha, bem como a medição do espaço internádegas; numa noite, em que passou as mãos pela vagina, disse-lhe estar a verificar se já tinha líquido lubrificante, explicando-lhe que permitia cópula sem dor; numa única vez, estando ela com as cuecas vestidas, roçou o pénis pela vagina; numa outra vez pediu-lhe que filmasse o seu pénis, o que a menor fez; e na última semana de Agosto de 2003, munindo-se de uma fita métrica, e num quarto adjacente à garagem da casa onde se acolheram, mediu o pénis à frente da filha, indicando-lhe o comprimento; VI -O CC protege a pessoa humana nas suas mais diversas manifestações, e muito particularmente da ofensa ou ameaça à sua personalidade física ou moral (art. 70.º, n.º s 1 e 2) – assim como a CRP (arts. 25.º e 26.º) –, embora sem definir o que sejam direitos de personalidade.
VII - Estes são “direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extrapatrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da vida humana, visando tutelar a integridade do desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”, na definição de Rabindranath Capelo de Sousa, A Constituição e os Direitos de Personalidade, in Estudos sobre a Constituição, vol. 2.º, Lisboa, 1978, pág. 93.
VIII - Incumbindo aos pais, nos termos do art. 1878.º, n.º 1, do CC, o dever de velar pela segurança, educação, desenvolvimento harmónico e sustento de seus filhos menores, é de pri-meira evidência que o arguido, ao praticar contra a sua filha três crimes de abuso sexual de criança agravados, dois deles sob a forma continuada, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. a), e 30.º do CP, dando-se como provado que tinha perfeito conhecimento da perturbação que as actuações provocavam na formação e estruturação da personalidade da menor, infringiu esse dever.
IX - E mais visível essa infracção se torna quando se dá como assente que a menor, sua filha, era uma rapariga “alegre”, desinibida e brincalhona” e que, a partir do final da sua 4.ª classe e durante a frequência dos 5.º e 6.º anos de escolaridade, ao longo dos anos 2001 a 2003, se revelou uma jovem triste, isolando-se dos colegas “e deixou de usar certo tipo de roupas próprias da sua idade, preferindo andar vestida com roupas largas e golas altas”, tendo reprovado no final do ano lectivo de 2003/2004, quando frequentava o 7.º ano.
X - Esses efeitos perniciosos assumem-se em nexo causal com a conduta ilícita do arguido, seu pai, agressiva da personalidade da menor, no âmbito da sua sexualidade.
XI - A indemnização por facto ilícito decorrente de crime – considerada por alguns autores como a terceira sanção penal, para além da prisão e multa, na medida em que manda atender, escreve Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, pág. 488), no caso de dano não patrimonial, não só à culpa, como também à condição económica do lesante e do lesado, por força da remissão para o art. 494.º, ex vi art. 496.º, n.º 3, ambos do CC –, reveste-se de uma natureza acentuadamente mista, qual seja a de compensar, mais do que indemnizar, não lhe sendo estranha a função de reprovar ou de castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, por certo incorporados no enxerto cível em processo penal, nos termos do art. 129.º do CP, a conduta do agente. XII-Mostra-se adequada a fixação da indemnização por dano não patrimonial a atribuir à menor no montante de € 15 000 (determinado pela 1.ª instância) – e não € 40 000, como se decidiu no Tribunal da Relação – se, para além dos factos já enunciados, se deu como provado: -no que respeita à definição da condição económica do arguido, que, sendo este médico, trabalha em regime de exclusividade, como director de um Centro de Saúde [abstiveram-se as instâncias de quantificar o seu vencimento, mas este nunca será inferior a € 2500 mensais líquidos], vivendo com a mulher e uma outra filha de ambos; -relativamente à menor, que a mesma frequenta, actualmente, o 9.º ano de escolaridade e está perfeitamente integrada, quer ao nível escolar quer ao nível do convívio social [sendo, pois, excessivo, extrapolando a matéria de facto provada em 1.ª instância, escrever-se, como se fez no acórdão recorrido, que a conduta do arguido “deixou marcas que acompanharão a menor para toda a vida”, sem com isto se desvirtuar, minimizando, a repulsiva e repugnante conduta do arguido, com a agravante de ser pai, que não deixou, tal como se deixou provado, de aquela perturbar].
Proc. n.º 2846/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral
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