Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Sumários do STJ (Boletim) -
Procurar: Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
ACSTJ de 25-09-2008
 Furto qualificado Passagem de moeda falsa Bem jurídico protegido Crime de resultado Burla Concurso de infracções Concurso aparente Medida concreta da pena Fins das penas Culpa Prevenção especial Prevenção geral Princípio da proibição do excess
I -Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. f), do CP, ou seja, a de 1 a 5 anos de prisão, e tendo em atenção que: -o crime é qualificado pela circunstância inerente à introdução, de madrugada, iludindo a vigilância do recepcionista, na Estalagem C…, e no apartamento …, ocupado pelo ofendido DW e mulher, que nele passavam férias, pela ousadia que representa aquela intromissão, trazendo um acréscimo de censura pelo maior grau de culpa, de dolo, de vontade criminosa, e de ilicitude sob o aspecto da modalidade de execução; -o valor subtraído não está amplamente distanciado do que seria o valor diminuto (a quantia em dinheiro subtraída ascende a € 70, montante, que adicionado aos demais objectos de que o arguido ilegitimamente se apoderou – carteiras, caneta Novopen e documentos –, em pouco excede € 100 e a UC à data dos factos), raiando, pois, por força do n.º 3 do art. 204.º do CP, o furto desqualificado; -interfere favoravelmente na punição concreta do crime a circunstância de o dinheiro ter sido recuperado por acção da GNR, como, e mais relevantemente, por indicação do arguido a elementos daquela força, os demais objectos: documentos e bens; -não ocorreu confissão dos factos e sua interiorização, e o arguido tem antecedentes criminais, entre os quais a prática de roubo, por que cumpre pena de prisão; a pena cominada ao arguido, de 4 anos de prisão, próxima do máximo da moldura, é de reputar manifestamente excessiva.
II - Uma pena excessiva não cumpre as finalidades de prevenção geral, porque intolerável comunitariamente; não realiza as funções de prevenção especial, porque o agente não a aceita e tem-na por injusta, não exercendo uma função de emenda cívica, tornando-se um puro desperdício.
III - O bem jurídico protegido nos crimes de moeda falsa tem sido colocado, entre nós, quer na “confiança ou fé pública na moeda”(cf. Beleza dos Santos, in RLJ, 64.º, págs. 275-276, 290-291 e 305-307), quer na “segurança e funcionalidade (operacionalidade) do tráfego monetário ou em ambos”(cf. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, pág. 739), falando-se também na “pureza ou autenticidade do sistema monetário” ou, mais explicitamente, na “integridade ou intangibilidade do sistema monetário em si mesmo considerado” (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, II, pág. 749), no interesse público da genuinidade respectiva de que é garante e nele encabeça o banco emissor.
IV - Para outros, os interesses económico-financeiros do Estado representam o bem jurídico a acautelar – cf. BMJ 460.º/570 –, porém o interesse a proteger com a incriminação é o daquela intangibilidade do sistema monetário, enquanto instrumento indispensável para a subsistência e desenvolvimento das sociedades modernas.
V - O crime de passagem de moeda falsa configura um crime material ou de resultado, que se consuma quando a moeda falsa penetra na esfera de disponibilidade do destinatário, sendo um delito de execução livre ou não vinculada; pode verificar-se por qualquer modo que, de uma perspectiva ex ante, se mostre idóneo para produzir o evento da entrada das peças contrafeitas na esfera de disposição do destinatário (cf. Comentário cit., pág. 775).
VI - Este Supremo Tribunal já se pronunciou no sentido de que a protecção do património dos receptores, de boa fé, da moeda falsa, que resulta da punição da colocação da moeda falsa em circulação, é sempre subsidiária em relação ao bem protegido em primeira linha pela incriminação e, por isso, constitui um único tipo de crime, não se cumulando, em concurso real, com o crime de burla.
VII - Mas também o fez no sentido de que o crime de passagem de moeda falsa previsto se acumula, sob a forma de concurso real, com o crime de burla – cf. Ac. de 11-1983, BMJ 330.º/385 –, atenta a diversidade de bens jurídicos protegidos. Isto mercê de jurisprudência para o lugar paralelo do concurso entre a falsificação e a burla, em que este Tribunal decidiu, em acórdão uniformizador de jurisprudência, que “no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes”, e tendo em conta que a moeda falsa não é mais do que um falsum específico, pelo que lhe é aplicável esta mesma doutrina, devendo concluir-se pelo concurso real.
VIII - Ponderando-se que: -não é na mera coexistência de segmentos comuns aos ilícitos em presença que se deve radicar a adopção do concurso real ou do aparente, mas antes na importância relativa que neles assuma a tutela que visam assegurar, que é o que constitui e integra a base justificativa determinante e decisiva da censura ético-jurídica a emitir; -é na integridade ou fiabilidade de um sistema monetário, em si e per se relevante, que reside a tónica incriminatória, a essência do bem jurídico a proteger, só em via secundária se apresentando o interesse do destinatário, devendo procurar-se no recurso à norma do art. 265.º do CP a punição do arguido, sendo o interesse do ofendido absorvido pelo tipo legal de crime em causa, devendo o de burla (simples) recuar, de resto menos gravemente punido – art. 217.º, n.º 1, do CP;-a actividade enganosa, enquanto elemento da burla, é elemento intrínseco do crime de passagem de moeda falsa, crime público que fragiliza o sistema de pagamentos, tornado incerto, pouco credível, gerando a desconfiança nas relações comerciais e patrimoniais; é de excluir o concurso real de infracções, como se decidiu no Ac. deste STJ de 15-03-1989 (CJ, XIV, Tomo 2, pág. 5). No crime previsto no art. 265.º do CP já se prevê, ao eleger-se como elemento do tipo legal de crime a passagem de moeda falsa, o prejuízo indirecto para quem a recebe, pois a sua utilização como meio de pagamento é uma forma de a passar – cf. Ac. deste STJ de 28-07-1948, BMJ 8.º/148.
IX - E, mais recentemente, este STJ, por apelo ao critério teleológico previsto no art. 30.º, n.º 1, do CP, repousando nos interesses a proteger, ponderou que a incriminação da passagem de moeda falsa esgota o conteúdo da tutela referentemente a todos os valores a acautelar, sitos a jusante, designadamente os patrimoniais, em função da missão de guarda avançada, de protecção de largo espectro, apontando para um concurso legal aparente de infracções por consumpção da de burla pela de passagem de moeda falsa – cf. Ac. de 13-10-2004, Proc. n.º 3210/04, desta 3.ª Secção.
X - A pena a aplicar há-de responder, por um lado, no mínimo, às exigências comunitárias de contenção do crime, por forma a que a sociedade acredite na força da norma punitiva, na sua validade e eficácia, assegurando a sua convivência em tranquilidade – esta a finalidade pública que se lhe associa; por outro, no âmbito da sua finalidade privada, há-de concorrer para a emenda cívica do cidadão, prevenindo a sucumbência na sua reincidência, ressocializando-o, em nome de um mínimo ético de todos exigível, de conformação ao dever-ser ético-existencial, salvo se se mostrarem inexistentes as necessidades, caso em que a pena deverá vocacionar-se para as necessidades de intimidação ou de segurança individuais.
XI - À culpa, nos termos dos arts. 40.º e 71.º do CP, não cabe fornecer a medida da pena, mas o limite máximo que em caso algum pode exceder, funcionando como antagonista da prevenção, pois que quaisquer que sejam as necessidades de prevenção, jamais estas poderão superar a medida da culpa.
XII - A culpa fornece, pois, a moldura punitiva de topo, dentro dela actuando as submolduras da prevenção geral e especial, e bem assim todas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depõem a favor ou contra o agente.
XIII - A este STJ cabem, na medida da individualização concreta da pena, funções de conformação do princípio da proporcionalidade, actuando a proibição de excesso, em face das necessidades dos interesses a proteger, numa intervenção prospectiva, em caso de violação das regras da experiência ou de a pena fixada se revelar desproporcionada, atenta a sua teleologia – cf. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 197, e Acs. deste STJ de 20-02-2008, Proc. n.º 4639/07, e de 17-04-2008, Proc. n.º 1013/08, ambos desta Secção.
XIV - Tendo em consideração que: -o arguido agiu com dolo directo, vontade consciente de apropriação indevida de coisa alheia e de fazer passar ilegitimamente a nota falsa, ao pagar um abastecimento de valor diminuto de gasolina (€ 5) e recuperar de troco € 45, não desconhecendo o carácter proibido de todo o seu procedimento; -ao nível patrimonial o grau de desvalor da acção é muito reduzido, pois os bens e valores de que se apropriou, pertença do cidadão inglês, foram recuperados por inteiro; o valor de (€ 5) de combustível adquirido a partir da apresentação da nota falsa de € 50, naturalmente que recebendo o diferencial em moeda legalmente cursiva, também nada tem de chocante, ficando a pairar mais a ousadia e a inconsideração por regras fundamentais de convivência comunitária do que propriamente o desfalque patrimonial; -de maior relevo, no entanto, no plano da ilicitude, de contrariedade à lei, avultam o modo de execução do crime de furto, a coberto da noite, iludindo a vigilância do estabelecimento de hotelaria onde estava hospedado com a esposa o inglês DW, entrando no apartamento que ocupavam; da apresentação da nota falsa para pagamento releva mais a ousadia a que antes se aludiu e uma nota de marginalismo à lei, com começo de enraizamento; -o arguido não confessou os factos, antes os negou, possui antecedentes criminais por crime de condução ilegal de viatura e de roubo, por que cumpre, presentemente, pena de (7 anos de) prisão; -revela dificuldades de integração social, tendo trabalhado esporadicamente como empregado de mesa, e recebe visitas dos irmãos e da mãe – não dos pais, como por lapso se escreveu no acórdão recorrido, pois o pai já faleceu, tendo sido assassinado, o que funcionou como factor de perturbação pessoal; apesar de serem prementes as necessidades de prevenção do crime de furto, atenta a sua reiteração e alguma gravidade da passagem de moeda falsa, sendo preocupantes as de prevenção especial do arguido, que evidencia alguma dificuldade em manter conduta lícita, face ao seu passado criminal já assente, no âmbito do crime contra o património e também contra as pessoas, eventualmente ainda de agudizar face ao facto de ter processos pendentes contra si, as medidas concretas das penas não podem manter-se, afigurando-se mais justo e equitativo condenar o arguido, pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 1, al. f), do CP, em 20 meses de prisão, e pela prática do crime de passagem de moeda falsa, p. e p. pelo art. 265.º, n.º 1, al. a), do CP, em 20 meses de prisão; e, em cúmulo, vista a sua personalidade e o conjunto global dos factos praticados, na pena unitária de 3 anos de prisão.
XV - Constitui jurisprudência deste STJ (neste sentido merecendo referência os seus Acs. de 2905-2007, Proc. n.º 1598 /07, e de 10-10-2007, Proc. n.º 3407/07, CJSTJ, tomo 3, pág. 218) ter o tribunal de fundamentar especificamente a concessão ou denegação da suspensão da execução da pena, sob pena de nulidade, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, de conhecimento oficioso, jurisprudência essa caucionada pelo TC, que já se pronunciou no seu Ac. n.º 61/06, de 18-01, decidindo que são inconstitucionais as normas dos arts. 50.º do CP e 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do CPP, quando interpretadas no sentido de não imporem a fundamentação quer da concessão quer da denegação.
XVI - Essa medida de carácter reeducativo e pedagógico, de eleição para o combate à pequena e média criminalidade, vantajosa por evitar a fractura com o meio sócio-familiar, profissional e económico, conservando o arguido a sua liberdade, é de rejeitar neste caso, mercê de o arguido não ter enraizados hábitos de trabalho nem quem lhe proporcione meios de subsistência, ter sido já condenado em pena de prisão, que cumpre, e revelar uma «personalidade imatura e falta de estabilidade familiar» (segundo o relatório social constante dos autos), não sendo previsível que, em liberdade, acate, de futuro, a lei, ou seja, que quanto a ele se formulem esperanças fundadas de ressocialização, mostrando-se, em presença dos elementos disponibilizados nos autos, ajustada a pena de prisão, em detrimento da medida substitutiva de suspensão da sua execução.
Proc. n.º 2487/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral
   Contactos      Índice      Links      Direitos      Privacidade  Copyright© 2001-2024 Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa