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    Sumários do STJ (Boletim) -
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ACSTJ de 23-01-2008
 Crime continuado Pressupostos Culpa Concurso de infracções Abuso sexual de crianças agravado Crime de trato sucessivo Prevenção especial Prevenção geral Medida concreta da pena
I -O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.
II - Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.
III - Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou.
IV - Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efectiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.
V - Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.
VI - Conclui-se, assim, que são imputáveis ao arguido dois crimes – um, constituído pelos factos descritos inicialmente na matéria de facto do acórdão recorrido, segundo os quais o arguido levou a ofendida para a sua cama e aí a acariciou e apalpou, ejaculando encostado à zona genital dela; o outro consistente nas diversas acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes e consistentes em acariciar e chupar os seios da ofendida – qualquer deles enquadrável no tipo legal dos arts. 172.º, n.º 1 (agora art. 171.º, n.º 1, após a publicação da Lei 59/2007), e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, embora a ilicitude do primeiro seja sem dúvida mais acentuada.
VII - Tendo em conta que a moldura penal em causa é de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, considera-se adequado, face à ilicitude dos factos e às necessidades de prevenção geral, especialmente fortes neste domínio, mas também de prevenção especial, e atendendo ainda a que o arguido nem sequer confessou os factos, não beneficiando de qualquer atenuante que não seja a da ausência de antecedentes criminais, condenar o arguido pelos factos descritos inicialmente na acusação em 4 anos de prisão e pelos restantes em 2 anos e 6 meses de prisão, sendo a pena unitária fixada em 5 anos e 9 meses de prisão.
Proc. n.º 4830/07 -3.ª Secção Maia Costa (relator) Pires da Graça
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