ACSTJ de 12-04-2007
Burla Crime de execução vinculada Erro Engano Causalidade adequada Astúcia Prejuízo patrimonial Autoria mediata Autoria imediata Cheque Falsificação
I - São elementos do crime de burla:- a intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;- por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;- determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outro, prejuízo patrimonial. II - O tipo legal de crime de burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência da utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. III - Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva do erro em que se encontra o indivíduo. IV - Tal erro – do sujeito passivo – tem de ser provocado astuciosamente. V - E, afastada a mise-en-scéne como elemento do crime de burla, haverá que reconduzir a “astúcia” do citado artigo, à verificação de uma mentira qualificada, enquanto reportada, exclusivamente, à maior perigosidade da conduta em relação à ofensa do bem jurídico. VI - No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. VII - A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado. VIII - A posição adoptada ganha, contudo, em clareza, quando perspectivada do ângulo da qualificação da burla como um “crime com participação da vítima”. IX - Na verdade, uma vez que é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição patrimonial, a burla integra, em último termo, uma hipótese de “auto-lesão”, estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio-do-facto do “homem de trás” deriva do estado de erro do executor (=autor imediato) acerca do circunstancialismo em que actua. X - À luz de uma ponderação material, o paralelismo dos dois casos aponta para que, também no âmbito em apreço, se exija a verificação de um genuíno domínio-do-erro como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado. XI - Melhor dizendo, no quadro da compreensão da burla como um delito contra o património, num tal “domínio-do-erro” terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta – cf. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Torno II, págs. 293 e ss., que se tem seguido no essencial. XII - In casu, consta da matéria da facto provada que o arguido, na posse dos cheques, por ele preenchidos sem que para tal tivesse legitimidade, não sendo, assim, seu legítimo portador e beneficiário, recebeu as quantias neles inscritas, seja depositando-os em conta, seja apresentando-os a pagamento em “diversas” [sic] agências bancárias de Lisboa e Odivelas. XIII - Ora, esta limitada factualidade não autoriza o enquadramento jurídico-criminal da correspondente actuação do arguido no âmbito do crime de burla. XIV - Com efeito, se a indução em erro ou engano está naturalmente afastada quanto aos titulares dos cheques (os autênticos e directos lesados deste processo), também por inverificado se tem de ter aquele requisito no concernente às entidades bancárias [ou melhor, ao(s) funcionário(s) desta(s)], que aceitaram/creditaram os cheques “falsificados” pelo arguido, ausente o mínimo dado indicativo ou inculcador de que o procedimento houvesse sido determinado por qualquer actuação enganadora desenvolvida pelo dito arguido e conducente àquela aceitação/creditação. E uma eventual passividade ou falta de cuidado da entidade bancária (ou do funcionário seu), na confirmação da autenticidade da assinatura aposta nos títulos não é sinónimo de aquiescência motivada por acção daquele tipo.
Proc. n.º 650/07 - 5.ª Secção
Costa Mortágua (relator)
Rodrigues da Costa
Arménio Sottomayor
Reino Pires
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