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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 11-01-2006
 Abuso de confiança Bem jurídico protegido Apropriação Coisa móvel Coisa alheia Consumação Dolo Contradição insanável Reenvio do processo
I - O crime de abuso de confiança visa proteger o direito de propriedade, sobre coisas móveis alheias, recebidas por título que produza a obrigação de restituir, contra os comportamentos ilícitos apropriativos das mesmas coisas.
II - Trata-se de um crime semelhante ao de furto, já que ambos têm por fim a apropriação de uma coisa móvel alheia, contra a vontade do respectivo dono e sem a cooperação deste, porém, enquanto no furto a coisa encontra-se ainda na mão de outra pessoa e, por isso, o crime consiste em subtrair, aqui a coisa acha-se já na mão do agente, consubstanciando-se o crime na apropriação.
III - O objecto do crime de abuso de confiança, como expressamente decorre do texto legal, é sempre coisa móvel, pelo que a apropriação de coisa imóvel não pode, em caso algum, consubstanciar este ilícito.
IV - Por coisa, ter-se-á de entender, genericamente, tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas (art. 202.°, n.º 1, do CC), mesmo que fora do comércio por disposição legal.
V - Por móvel ter-se-á de considerar tudo o que, como tal, é considerado por disposição expressa da lei, pelo que aqui se abrange tudo o que não seja imóvel, conforme preceito do n.º 1 do art. 205.°, do referido diploma.
VI - Sendo elemento material do crime a apropriação, certo é que o seu objecto (coisa móvel) terá necessariamente de ser alheio, ou pelo menos de, no momento da apropriação, não se encontrar na efectiva disponibilidade do agente (ressalvam-se os casos de depositário judicial que não apresente os bens quando judicialmente notificado para o efeito).
VII - Por outro lado, não é necessário um prévio acto material de entrega da coisa, bastando que o agente se encontre investido num poder sobre o mesmo que lhe dê a possibilidade de o desencaminhar ou dissipar, podendo tratar-se de uma entrega, quer directa, quer indirecta, cabendo aqui a entrega jurídica da coisa.
VIII - E relativamente ao título de entrega, a lei refere expressamente que a entrega da coisa há-de ser feita por título não translativo da propriedade, a significar que aquela terá de ser feita mediante título que importe a obrigação de restituição ou de apresentar a coisa recebida ou valor equivalente.
IX - Por título deve entender-se qualquer fonte de que deriva a obrigação de restituir ou de dar à coisa um certo destino, sendo, porém, indispensável que o título seja lícito, pelo que a coisa não deve passar para o poder do agente por efeito de fraude deste, pois em tal caso o crime seria o de burla.
X - Quanto ao momento da consumação do crime, dir-se-á que o mesmo ocorre quando se verifica a apropriação da coisa, isto é, quando há lugar à inversão do título de posse, passando o agente a dispor da coisa animo domini.
XI - Como refere Figueiredo Dias, a apropriação (ilegítima) verifica-se quando o agente que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, uti dominus.
XII - Quanto ao elemento de índole subjectiva, consabido que o crime de abuso de confiança é um delito de realização continuada, na medida em que um dos seus elementos constitutivos é a intenção de apropriação de coisa alheia, consumando-se quando se dá a inversão do título de posse, dir-se-á que o dolo consiste na vontade do agente em inverter aquele título, por se querer transformar de possuidor alieno domine em possuidor uti dominus, com a consciência de agir contra o direito, quer não restituindo a coisa, quer não lhe dando o destino devido.
XIII - Em suma, o dolo, neste particular, consubstancia-se na vontade consciente de apropriação da coisa móvel alheia. Não basta, assim, toda e qualquer atitude do debitor, torna-se necessário que, com ela, tenha pretendido integrar a coisa ou o equivalente no seu património ou no de terceiro.
XIV - Vindo provado que a assistente entregou três cheques pós-datados à arguida, titulando a quantia global de PTE 5.400.000$00, a fim de que esta com eles obtivesse, para a assistente, um adiantamento daquela importância, e que a arguida usou o adiantamento que, com os cheques e a subscrição de três livranças, conseguiu, naquele referido montante, para pagamento de dívidas de uma sociedade de que era gerente, importância pelos mesmos titulada, parece claro mostrar-se preenchido o elemento material ou objectivo do crime de abuso de confiança - a arguida apropriou-se ilegitimamente da coisa que da assistente recebera.
XV - Por outro lado, vindo também provado que a arguida usou o adiantamento recebido pela entrega dos cheques para pagamento de dívidas de sociedade de que era gerente sem que disso tivesse dado conhecimento à assistente e que, várias vezes questionada pela assistente sobre os cheques que lhe haviam sido entregues, sempre respondeu que estava à espera de resposta do banco, dever-se-á concluir que, pelo menos, se comportou com a consciência de agir contra o direito, não dando o destino devido à importância que lhe foi adiantada - elemento subjectivo do crime.
XVI - É inequívoca a ocorrência de contradição insanável da fundamentação, concretamente entre os factos provados e os não provados, logo do vício previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, se o tribunal recorrido deu como provados os factos acima assinalados, dos quais resulta que o comportamento da arguida integra os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla e considerou não provado que, na posse do montante dos cheques, a arguida se tivesse apoderado de tal quantia, gastando-a em proveito próprio, como se fosse sua, tendo também dado por não provado que a arguida tivesse agido com o propósito de se apoderar dos montantes dos cheques.
XVII - O vício em causa torna impossível a decisão da causa, pelo que o processo terá de ser reenviado para novo julgamento, a incidir sobre os factos em contradição - art. 426.º, n.º 1, do CPP.
Proc. n.º 2407/03 - 3.ª Secção Oliveira Mendes (relator) João Bernardo Pires Salpico Henriques Gaspar
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