TEXTOS DIVERSOS

          Despacho n.º 21/004-IH      João Dias Borges   08-03-2004
      
Despacho sobre recurso hierárquico interposto para o Procurador-Geral Distrital
      
A Exm.ª Procuradora da República do DIAP de Lisboa, com o seu ofício n.º GF/786/04 de 26.2.004, remeteu ao PGD de Lisboa os originais dos documentos de fls. 202 a 215 do inquérito 46/03.7JDLSB, disquete de fls. 216 e certidão extraída do dito inquérito.

Identificando, de modo sintético, o que foi remetido, consigna-se:

§ Documentos originais de fls. 202 a 215 – São um requerimento subscrito pela Exm.ª Advogada, dirigido ao Procurador-Adjunto no DIAP, no qual expressa a não conformação com despacho do magistrado do M.ºP.º constante de fls. 183 dos autos, dele interpondo recurso hierárquico para o Procurador-Geral Distrital (é o documento de fls. 202).

O documento de fls. 203 a 215 consubstancia a motivação do recurso hierárquico, o qual vem endereçado ao Procurador-Geral Distrital.

§ A disquete de fls. 216 – está em envelope fechado, que se não abriu, anotando-se nele que a disquete conterá motivações de recurso.

§ A certidão – integra fotocópias de fls. 111, 117, 147, 174, 179 e 180, 183, 228, 245 e 272 e o despacho que mandou extrair a certidão (fls. 280).

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Fazendo o necessário resumo, na perspectiva de delimitar o que efectivamente está em causa, a carecer de apreço e decisão, em termos de tornar inteligível o presente despacho, mas considerando a economia deste, consignar-se-á:

1. A…, representado pela Exm.ª Advogada B…, esta com escritório em C…, interpõe recurso hierárquico (apresentando a respectiva motivação) que dirige ao Procurador-Geral Distrital de Lisboa.

2. O despacho que se pretende impugnar, pelo meio procedimental escolhido é o constante de fls. 183 dos autos de inquérito n.º 46/03.7JDLSB.

3. Esse questionado despacho indefere um requerimento (referenciado a outro de fls. 174), subscrito pela referida Exm.ª Advogada em representação de A…, por via do qual pedia a passagem de certidão, consignando-se que esta se destinava a preparar a defesa e instruir recurso da decisão que decretou a prisão preventiva do requerente.

4. Não obstante o(s) requerimento(s) vir(em) endereçado(s) ao Mm.º Juiz de Instrução, por força de despacho deste a consignar que sua apreciação cabia ao Ministério Público, foi o magistrado do M.ºP.º a apreciá-lo(s) e decidi-lo(s), indeferindo-o(s), através do despacho ora em causa e que está documentado a fls. 183 dos autos e consta da certidão remetida.

5. O autor do despacho posto em crise é Procurador-Adjunto no DIAP de Lisboa, como se teve oportunidade de confirmar.

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Mesmo com o pecado de ir além do necessário, dentro da economia do presente despacho, dir-se-á aqui o seguinte:

O procedimento escolhido pelo requerente foi o do “recurso hierárquico”, a inculcar a ideia de que se socorreu do previsto no Código do Procedimento Administrativo, nomeadamente daquele regulado nos artigos 166.º a 175.º (subsecção titulada de “do recurso hierárquico”).

Mas, a ter sido assim, mau uso é feito do procedimento, pois que o recurso hierárquico contemplado no dito Código de Procedimento Administrativo sempre tem por objecto acto administrativo e, manifestamente, sem que saibamos de alguém que fundadamente contrarie esta asserção, as decisões do magistrado do Ministério Público, em processo de inquérito penal, não revestem tal natureza.

A admitir-se que o procedimento, utilizado pelo requerente, não padece de erro, seguindo as correspondentes regras, outra decisão não poderia ser tomada que não fosse a sua rejeição, sem mais, com duplo fundamento, segundo a previsão do artigo 173.º alínea a) e b) do Código de Procedimento Administrativo.

As decisões dos magistrados do M.ºP.º em inquérito penal são decisões de autoridade judiciária (vide art. 1.º n.º 1 alínea b) do C. P. Penal) e, por força do princípio da legalidade do processo (art. 2.º do CPP), hão-de ser as respectivas disposições processuais a reger a matéria relativa à sua eventual impugnação.

O Código de Processo Penal não cuidou de estabelecer um procedimento próprio para pôr em causa todas as decisões do Ministério Público, antes adoptando modos diversos para as questionar, consoante a sua natureza.

Na verdade, a decisão que poderemos apelidar de mais importante, no âmbito do inquérito penal (procedimento com finalidade, âmbito e direcção com assento na lei – artigos 262.º e 263.º do CPP - ) consubstancia-se nos despachos contemporâneos com o seu encerramento e que mais usualmente podem ser de arquivamento (art. 277.º do CPP) e de acusação (art. 283.º), uns e outros a poderem ter comprovação judicial (art. 286.º do C P Penal).

Quer isto dizer que os despachos de arquivamento e/ou de acusação proferidos pelo M.ºP.º têm especial procedimento, consistindo no requerimento de instrução, para judicialmente serem comprovados.

Mas o despacho de arquivamento também é susceptível de ter intervenção hierárquica, nos precisos termos previstos no artigo 278.º do C. P. Penal.

Já o artigo 279.º do CPP prevê reclamação do despacho que deferir ou recusar a reabertura do inquérito.

Para além destas duas situações (“intervenção hierárquica” nos termos do artigo 278.º do CPP e “reclamação hierárquica” nos termos do artigo 279.º do mesmo Código), outros casos se prevêem, na lei processual penal, susceptíveis de serem vistos como intervenções hierárquicas. São eles:

1. A previsão do artigo 54.º n.º 2, que rege sobre impedimentos e escusas, estabelecendo a intervenção do “superior hierárquico do magistrado em causa”.

2. A previsão do artigo 89.º n.º 4, a regular a comunicação da ocorrência (falta de restituição do processo dentro do prazo) ao “superior hierárquico”.

3. O disposto no art. 116.º n.º 3 do CPP, que se reporta ao conhecimento que deve ser dado quando da falta de magistrado se trata, “ ao superior hierárquico”.

4. O artigo 162.º n.º 3, em que se prevê a “reclamação hierárquica”, no caso de fixação de remuneração a perito.

5. A previsão do artigo 266.º n.º 3, em que se estipula que, em caso de conflito sobre competência, decide “o superior hierárquico que imediatamente superintende” nos magistrados em conflito.

6. Nos artigos 108.º n.º 2 alínea a) e 276.º n.º 4, em que se prevê intervenção hierárquica, expressamente conferida ao Procurador-Geral da República, sendo um caso respeitante à aceleração processual e outro à avocação de processo.

Nas mencionadas situações, verifica-se que umas vezes se refere “a reclamação hierárquica”, outras “ao imediato superior hierárquico”, outras ainda “ao superior hierárquico”, e por fim nas mencionadas no ponto 6 (previstas nos artigos 108.º n.º 2 alínea a) e 276.º n.º 4), a referência é ao Procurador-Geral da República.

Quando a lei expressamente atribui a competência para intervir hierarquicamente ao Procurador-Geral da República, nenhuma razoável dúvida se gera; cabem elas a este magistrado.

Quando na lei se prevê “a reclamação hierárquica”, “a intervenção do superior hierárquico” ou a “intervenção do imediato superior hierárquico” a boa interpretação é no sentido de a competência repousar no imediato superior hierárquico.

Na verdade, razões de economia procedimental apoiam essa solução, sem que se vejam razões para intervenção “per saltum”.

É certo que, em procedimento administrativo, encontramos situações em que se reserva a intervenção não para o imediato superior hierárquico, mas sim para o grau hierárquico mais elevado.

Também nos recursos judiciais surgem hipóteses da sua interposição “per saltum”, mas em casos expressamente previstos.

Numa organização hierárquica, como lógica decorrência do próprio conceito organizativo, sempre deverá ser o imediato superior hierárquico a intervir, desde que o âmbito de intervenção se contenha nos limites da sua competência própria.

Temos assim de convir que, sem aqui se encarar a questão de saber quando é consentida intervenção hierárquica, esta, a ocorrer, caberá ao imediato superior, sem prejuízo de especial previsão, como supra se referiu, que atribua competência a outro grau da cadeia hierárquica.

O acabado de dizer não impede, por princípio, intervenções de outros graus da cadeia hierárquica. Só que não é ela imposta, antes e tão só pode ser querida (se for o caso).

A Constituição da República modela o Ministério Público como gozando de autonomia e estatuto próprio, com os seus magistrados a serem responsáveis e hierarquicamente subordinados.

O Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 60/98 de 27 de Agosto), no seu artigo 7.º, prevê os órgãos (a Procuradoria-Geral da República, as Procuradorias-Gerais Distritais e as Procuradorias da República) e, no 8.º, reporta-se aos agentes (o Procurador-Geral da República, o Vice-Procurador-Geral da República, os procuradores-gerais-adjuntos, os procuradores da República e os procuradores-adjuntos).

A hierarquia relativa aos órgãos está perfeitamente estabelecida; a hierarquia dos agentes aponta para a referência a categoria profissional mais do que para a funcional. Um agente de categoria profissional superior não é necessariamente superior hierárquico daquele de categoria profissional inferior.

O que define um superior hierárquico é deter este poder de direcção sobre outrem, o que se traduz na possibilidade de emitir ordens e instruções. Será, pois, na organização em concreto que se há-de detectar se há ou não hierarquia entre determinados agentes do Ministério Público.

Em termos de órgãos, a Procuradoria-Geral Distrital tem poderes de direcção sobre o Ministério Público do distrito judicial (art. 56.º alínea b) do EMP); o Procurador-Geral Distrital detém igualmente poderes de direcção, desde logo por dirigir o órgão (art. 57.º n.º 1 do EMP), depois por a lei lhe conferir esses poderes relativamente ao Ministério Público no distrito judicial (art. 58.º n.º 1 alínea a) do EMP).

Os DIAPs (Departamentos de Investigação e Acção Penal) são uma estrutura organizativa do Ministério Público, aqueles de comarca sede de distrito judicial (como o de Lisboa) logo criados com o Estatuto do Ministério Público (art. 70.º) aqueloutros em comarcas de grande movimento a poderem ser criados por portaria do Ministro da Justiça (art. 71.º).

Ao definir a estrutura dos DIAPs, a lei prevê que os das comarcas sede dos distritos judiciais sejam dirigidos por procuradores-gerais-adjuntos ou por procuradores da República (art. 72.º n.º 2), enquanto para os das comarcas prevê a sua direcção por procuradores da República (art. 72.º n.º 3).

Ainda na estrutura se estipula que quando os DIAPs se organizarem em secções, estas são dirigidas por procuradores da República (art. 72.º n.º 4).

O magistrado que seja designado para dirigir um DIAP (até pela especial forma de nomeação – do Conselho Superior do Ministério Público) fica detentor de poder de direcção, materializado especialmente na possibilidade de emitir ordens e instruções, o que lhe confere a natureza jurídica de superior hierárquico de todos os magistrados que estejam colocados no DIAP. O director do DIAP não é um mero coordenador deste. Está investido num grau hierárquico intermédio, relativamente à cadeia hierárquica do Ministério Público.

Os procuradores da República que dirigem as secções são também superiores hierárquicos dos procuradores-adjuntos colocados nelas.

Do que se vem expondo já se deixa antever o sentido da decisão, pois que o apreço do que vem configurado como recurso hierárquico há-de caber ao imediato superior hierárquico, no caso ao procurador da República que dirige a respectiva secção.

Assim e antes de mais, convém consignar aqui as seguintes CONCLUSÕES:

1. O “recurso hierárquico”, regulado nos artigos 166.º a 175 do Código de Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91 de 15 de Novembro), não é procedimento próprio para suscitar a intervenção hierárquica em despacho proferido pelo Ministério Público em inquérito penal.

2. Não o é, desde logo, na medida em que esses despachos não são actos administrativos, mas decisões de autoridade judiciária que revestem natureza diversa.

3. O princípio da legalidade do processo (artigo 2.º do Código de Processo Penal) impõe que hão-de ser as disposições processuais penais a regularem as intervenções hierárquicas.

4. Sendo várias as normas processuais penais a preverem intervenções hierárquicas (os artigos 54.º n.º 2, 89.º n.º4, 116.º n.º 3, 266.º n.º 3, 278.º, 279.º, 108.º n.º 2 alínea a) e 276.º n.º 4, todos do C. P. Penal), quando elas não conferem competência a determinado agente (acontece conferirem-na ao PGR os artigos 108.º n.º 2 alínea a e 276.º n.º 4), ela rep0ousa no imediato superior hierárquico.

5. O DIAP de Lisboa, estruturado em secções dirigidas por procuradores da República e todo ele dirigido por um procurador-geral-adjunto, tem cadeia hierárquica sucessiva própria que, em cada secção, parte do procurador-adjunto, passa pelo procurador da República e culmina no seu director.

6. O procurador-geral distrital destinatário de um pedido de intervenção hierárquica, eventualmente documentado em procedimento impróprio, não tem o dever legal de apreciar a solicitação, pelo que pode encaminhar o procedimento para o superior hierárquico imediato.

Pelo que vem exposto, profere-se a seguinte DECISÃO:

Sem valorar se o despacho questionado pode ter intervenção hierárquica e consequentemente sem dar qualquer indicação de sentido de decisão, não se faz intervenção hierárquica do âmbito que vem pedido; determina-se, por outro lado, que o expediente recebido, juntamente com este despacho, seja remetido à Exm.ª Procuradora da República que o endereçara, para apreço e decisão.

Ficará fotocópia de tudo a constituir processo administrativo que será registado e autuado.
Já nele se procederá à notificação da Exm.ª Advogada que subscreveu a petição.
Depois de tudo cumprido, arquive-se.

O Procurador-Geral Distrital
(João Dias Borges)