AG- nº 3951/04[1]
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça em plenário da secção social:
I - Em acção emergente de acidente de trabalho, movida por A ... , residente no M … , por si e como legal representante de seus filhos, B ... e C ... na altura menores, contra D ... , com sede em E … , … , no concelho do …, foi esta condenada a pagar, em duodécimos, as seguintes pensões anuais, vitalícias e actualizáveis:
- à autora A ..., a pensão de Esc. 442.512$00;
- aos menores B … e C …, a de Esc. 590.016$00, pensões devidas desde 26.04.96 e acrescidas de valor igual ao montante do duodécimo de tais pensões, a pagar no mês de Dezembro de cada ano.
Uma vez que a ré, entidade patronal, foi declarada em estado de falência, o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) passou a assegurar, a partir de 26.04.96, o pagamento das pensões devidas aos beneficiários.
Informando o FAT, por ofício datado de 2.01.04, que, nessa data, o valor da pensão anual devida à beneficiária A ..., da sua inteira responsabilidade, era de € 2.553,61, o Exm° Magistrado do MP promoveu que se procedesse ao cálculo do capital de remição dessa pensão, com fundamento em que a mesma se tornara obrigatoriamente remível a partir de 1.01.04.
Por despacho, proferido em 19.01.2004, foi admitida tal remição.
Inconformado, o Fundo de Acidentes de Trabalho agravou deste despacho, mas sem sucesso, pois o Tribunal da Relação negou-lhe provimento.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso.
Eis as conclusões do agravante FAT:
a) A remição de pensões fixadas na vigência da Lei n° 2127, de 03.08.1965, beneficiam, nos termos do art° 41°, n° 2, alínea a), da Lei n° 100/97, de um regime transitório, quando digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e as remições previstas no art° 33°-2 (remições parciais);
b) Tratando-se de incapacidades permanentes superiores a 30% ou pensões por morte, como é o caso dos autos, há que aferir em primeiro lugar se a pensão é de reduzido montante, ou seja, inferior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão, para depois escalonar a sua remição no tempo, conforme os escalões previstos no art° 74° do DL n° 143/99, de 30.04;
c) A pensão anual fixada à beneficiária A ... , viúva do sinistrado de morte F … no valor de € 2.207,24 (Esc. 442.512$00), com início em 26.04.96, não é de reduzido montante e como tal não é remível, por ser superior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão;
d) Vencendo o entendimento do acórdão recorrido, isso teria efeitos devastadores, já que seriam remíveis em massa todas as pensões emergentes de acidentes de trabalho, ocorridos antes de 1.01.2000;
e) Restariam, apenas, as pensões já fixadas ao abrigo da nova LAT (Lei n° 100/97, de 13.09), quando resultantes de incapacidades superiores a 30 % e não fossem de reduzido montante;
f) Não foi certamente esse o entendimento do legislador ao estabelecer os escalões previstos no art° 74° do DL n° 143/99, nem será, com certeza, aquele que atenderá aos interesses dos sinistrados/beneficiários, em particular os que possuem incapacidades que não permitam auferir outro rendimento;
g) Deve, por isso, ser revogado o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que declare a pensão em causa não remível.
Nas contra-alegações, o MP defendendo que a remição das pensões vitalícias fixadas ao abrigo da Lei n° 2127, de 3 de Agosto de 1965, está apenas sujeita ao regime transitório de remição previsto no art° 74° do DL n° 143/99, de 30.04 - posição assumida no acórdão recorrido - termina sugerindo que nos termos e para os efeitos do art° 732°-A, n°s l e 2, do CPC, na actual redacção (aqui aplicável - art°s 17° e 25°, ambos do DL nº 329-A/95, de 12.12), o presente recurso seja julgado corri intervenção do plenário da secção social do Supremo Tribunal de Justiça, fixando-se a seguinte jurisprudência:
«A remição das pensões vitalícias fixadas ao abrigo da Lei n° 2127, de 3 de Agosto de 1965, está apenas condicionada pelo regime transitório de remição previsto no art° 74° do DL n° 143/99, de 30.04.»
Fundamenta-se no facto de haver um grande número de decisões já proferidas, que identifica, e existir uma diversidade de posições tomadas sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação.
Concordando com o parecer da relatora, a fls 242 e sgs, o Exm° Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o julgamento se fizesse com intervenção do plenário da secção social.
A Exma. Magistrada do Ministério Público, depois de fazer uma resenha histórica do acidentado percurso das questões suscitadas no âmbito do regime de remição de pensões, pronuncia-se no sentido de que a jurisprudência seja uniformizada relativamente ao critério a atender para saber se uma pensão fixada ao abrigo da Lei n° 2127 é ou não remível, propondo a seguinte formulação ou outra equivalente:
«1. O critério a atender para se saber se uma pensão fixada ao abrigo da Lei n° 2127, de 03.08.1965, é ou não remível deverá fundamentar-se nos dois pressupostos estabelecidos no art° 56°, n° l, ai. a) do DL 143/99, de 30.04, reportando-se ambos os pressupostos à data da fixação da pensão.
2. A pensão considera-se fixada no dia seguinte àquele em que foi declarada terminada a incapacidade do sinistrado ou, em caso de morte deste, no dia seguinte ao do óbito.
3. O disposto no art° 74° do referido DL 143/99, com a redacção que lhe foi dada pelo DL 382-A/99, de 22.09, apenas impõe o quadro em que deve ser efectuada a concretização gradual das pensões a remir nos termos do art° 56° atrás referido, relevando para o efeito, o valor actualizado da pensão.»
No estrito âmbito do recurso de agravo, emite parecer no sentido de o mesmo obter provimento, considerando-se que a pensão em causa não é remível.
II - Como refere Amâncio Ferreira,[2]
"a uniformização da jurisprudência, no caso da nossa lei processual civil, comum e laboral,
faz-se presentemente por meio da revista e do agravo interpostos na 2ª instância, que para o efeito se ampliam, em
plena tramitação, com intervenção no seu
julgamento do plenário ou das secções cíveis ou da secção social do STJ, como resulta dos art°s 732°-A e 762°, n° 3,2a
parte, do CPC e do art° 87° do CPT".
Assim, impõe-se decidir o objecto do presente agravo ou seja se a pensão devida à beneficiária A ... é ou não remível e, ao mesmo tempo, uniformizar a jurisprudência quanto à questão que lhe está subjacente - o critério a atender para esse efeito.
III - Factos considerados provados:
1. O sinistrado F … sofreu um acidente de trabalho mortal no dia 25.04.1996.
2. Deixou como beneficiária legal a viúva A ... a quem, com início no dia 26.04.1996, foi fixada a pensão anual e vitalícia de Esc. 442.512$00.
3. Tal pensão é paga pelo FAT, a qual se encontra actualizada para o montante anual de €2.553,61.
4. Por despacho de fls 157 foi ordenada a remição de tal pensão com efeitos reportados a l de Janeiro de 2004.
IV - Apreciando
Na 1a instância, entendeu-se que, sendo o montante actualizado da pensão não superior a € 2.992,79, a mesma tornara-se obrigatoriamente remível desde 1.01.2004, em consonância com o disposto no art° 74° do DL n° 143/99, de 30.04, este na redacção que lhe foi dada pelo art° 2° do DL n° 382-A/99, de 22.09.
O acórdão recorrido confirmou o decidido.
Eis, em síntese, a sua fundamentação:
- o disposto no art° 56°-l-a) do DL n° 143/99, de 30 de Abril, porque não diz respeito a qualquer regime transitório, só poderá ser aplicado a acidentes ocorridos depois da sua entrada em vigor;
- a prevalecer o entendimento da recorrente, ficaria sempre a questão de saber a que valor atender (como termo de comparação) no caso de a pensão ter sido fixada em anos anteriores à instituição do salário mínimo nacional (só instituído em 1974 pelo DL n° 217/74, de 27 de Maio);
- logo, relativamente aos acidentes ocorridos antes de l de Janeiro de 2000, portanto na vigência da Lei n° 2127, de 3 de Agosto de 1965, e do Decreto n° 360/71, de 21 de Agosto, e para efeitos de saber se a pensão é ou não remível há que atender apenas aos valores que constam do art° 74° (com a epígrafe: "regime transitório de remição de pensões") do DL n° 143/99, de 30 de Abril.
O agravante discorda deste entendimento.
Vejamos se tem razão.[3]
À data do acidente de trabalho e da fixação da pensão estava em vigor a Lei 2127, de 3.08.65, e o respectivo Regulamento (Decreto n° 360/71, de 21.08).
Este o teor da Base XXXIX daquela Lei:
«Salvo tratando-se de doenças profissionais, serão obrigatoriamente remidas as pensões de reduzido montante, e poderá ser autorizada a remição quando deva considerar-se economicamente mais útil o emprego judicioso do capital.»
No Regulamento (Decreto 360/71), a remição de pensões estava contemplada no seu capítulo VII (art°s 64° e segs, na redacção introduzida pelo DL n° 459/79, de 23.11).
A remição podia ser obrigatória e autorizada pelo tribunal, atendendo-se, nesta graduação, não só ao quantitativo das pensões, mas também ao grau de desvalorização dos sinistrados.
Nos termos daqueles diplomas, seriam obrigatoriamente remidas as pensões devidas a sinistrados (...) que, cumulativamente, correspondessem a desvalorizações não superiores a 10% e não excedessem o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de 10% sobre o salário mínimo nacional.
Eram facultativamente remidas, com autorização do tribunal, as pensões correspondentes a desvalorizações superiores a 10% e inferiores a 20% desde que não excedessem o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de 20% sobre o salário mínimo nacional e se considerasse economicamente mais útil o emprego judicioso do capital (art° 64° do citado Decreto n° 360/71).
Em suma, na vigência da Lei n° 2127, as pensões por morte ou resultantes de incapacidade permanente igual ou superior a 20% não eram remíveis.
A Lei n° 100/97 e o seu decreto regulamentar vieram alterar profundamente este regime: as pensões resultantes de incapacidades permanentes inferiores a 30% passaram a ser obrigatoriamente remidas (art° 17°-l-d) da Lei 100/97 e art° 56°-l-b) do DL 143/99), o mesmo acontecendo com as pensões vitalícias devidas por morte ou por incapacidade permanente igual ou superior a 30% desde que de reduzido montante (art° 33° da citada Lei e 56 o -1-a) do decreto regulamentar).
O novo regime também veio permitir a remição parcial destas pensões (pensões vitalícias devidas por morte ou por incapacidade permanente igual ou superior a 30%), desde que respeitados os seguintes limites: a pensão sobrante não podia ser inferior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada; o capital de remição não podia ser superior ao que resultaria de uma pensão calculada com base numa incapacidade de 30% (citado art° 56°-2).
A pensão devida à beneficiária A ... não era obrigatoriamente remível à face da Lei n° 2127 e do seu Regulamento.
Acontece que o novo regime de remição de
pensões (introduzido pela Lei n° 100/97, de 13.09 (LAT), e DL n° 143/99, de 30.04 (RLAT)
também se aplica às "pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor".[4]
É o que resulta do art° 41°-2-a), em articulação com o art° 33o-1, ambos daquela Lei.
E a questão que se coloca é saber se a pensão vitalícia fixada nestes autos é obrigatoriamente remível, face ao novo regime.
Para o acórdão recorrido, a resposta encontra-se no art° 74° do DL n° 143/99, na redacção que lhe foi dada pelo DL n° 382-A/99, de 22.09; para o recorrente resultará da articulação desse preceito com o disposto na alínea a) do n° l do citado art° 56°. Por outras palavras, para saber se a pensão em causa nestes autos - pensão vitalícia por morte - é, ou não, obrigatoriamente remível deve atender-se apenas às datas e valores que constam do quadro referido naquele artigo (74°) ou deve atender-se também à noção de reduzido montante dada neste preceito [art° 56o-1-a)]?
Estamos, assim, perante uma questão de interpretação e de articulação de normas.
Concretamente:
- do art° 41°-2-a) da Lei 100/97, onde se dispõe que o diploma regulamentar estabelecerá o regime transitório a aplicar à remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, e que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no art° 33°, n° 2;
- do art° 74° onde se estabelece que as remições das pensões previstas na alínea d) do n° l do art° 17° e no art° 33° da lei, serão concretizadas gradualmente, nos termos do quadro seguinte: até Dezembro de 2000......< 80 (€ 399,04); até Dezembro de 2001...... < 120 contos (€ 598,56); até Dezembro de 2002 ......< 160 contos (798,08); até Dezembro de 2003 ......< 400 contos (€ 1995,19); até Dezembro de 2004 ......< 600 contos (€ 2992,79) ; até Dezembro de 2005 ......>600 contos (€ 2992,79);
- do art° 33°-l da Lei 100/97, onde se preceitua que, sem prejuízo do disposto na alínea d) do n° l do art° 17°, são obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados;
- e do art° 56°-l-a) do DL 143/99, onde se dispõe que são obrigatoriamente remidas as pensões anuais devidas a sinistrados e a beneficiários legais de pensões vitalícias que não sejam superiores a seis vezes a remuneração mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão.
Interpretar, em matéria de leis, significa não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão literal, como também eleger, dentre as várias significações cobertas pela expressão, a verdadeira e decisiva.
O art° 9° do CC consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete.
"A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade o sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada" (n° l da citada disposição).
Com este limite: não pode "ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".
Além disso, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (n°s 2 e 3 da mesma disposição).
O facto de o art° 9° afirmar que “a reconstituição
do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete
não possa ou não deva socorrer-se de
outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei ….”[5]
A ratio legis é, justamente, o elemento
da interpretação que estabelece o contacto entre a lei e a vida real, conferindo-lhe uma
plasticidade que lhe permite não só disciplinar novas situações como carregar-se de sentidos
novos, com que se vai acomodando a novas necessidades práticas e a novos ideais de justiça[6].
Porém, se a lei a interpretar é actual, a sua razão (fim
determinante) há-de coincidir "com a
vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente
demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios
trabalhos preparatórios."[7],[8]
Olhando, antes de mais, à letra da lei, constata-se que o citado art° 41°-2-a) embora remeta para o decreto regulamentar a definição do regime transitório da remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, não deixa de indicar as pensões (anteriores) que ficam sujeitas a esse regime transitório: as pensões que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no art° 33°, n° 2 (sublinhado nosso).
Por seu turno, o n° l deste art° 33°, ao consagrar a remição obrigatória de pensões, refere expressamente que são obrigatoriamente remíveis as pensões vitalícias de reduzido montante, acrescentando "nos termos que vierem a ser regulamentados".
É o art° 56o-1-a) que nos dá a noção às pensões vitalícias de reduzido montante (as que não sejam superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão).
Finalmente, o art° 74° refere expressamente que ficam abrangidas pelo regime transitório "as remições das pensões previstas na alínea d) do n° l do art° 17° e no art° 33° da lei". Logo, (também) as de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados.
Daqui resulta que não se mostra conforme à letra da lei a interpretação do acórdão recorrido (na linha da orientação que defende que relativamente às pensões em pagamento em l de Janeiro de 2000, o reduzido montante se define apenas pelos valores referidos no quadro constante do art° 74°), na medida em que faz letra morta da referência expressa feita no corpo deste artigo aos citados preceitos.
Por outro lado, refere-se expressamente no preâmbulo do DL 143/99 que o regime transitório estabelecido no citado art° 74° (vontade real do legislador) visa permitir a "... progressiva adaptação das empresas de seguros, que assim não se confrontarão com um pedido generalizado de remições com a inerente instabilidade que lhe estaria associada."
Fica assim clara a "intenção do legislador", ao inserir naquele artigo um quadro com datas e valores: permitir uma concretização gradual das remições de pensão do regime transitório, sem grande perturbação para as entidades pagadoras.
Por outro lado, não é crível que com aquele regime transitório o legislador pretendesse consagrar um regime mais amplo - e substancialmente mais gravoso, no que toca à obrigatoriedade de remição - do que o que decorre da Lei 100/97 e seu Regulamento, o que, além de atentar contra o princípio da igualdade, seria discrepante se tivermos presente que o regime de remição da Lei 2127 era muito mais restritivo que o actual. Seguindo a interpretação do acórdão recorrido chegaríamos a este resultado: a partir de 1.01.2005, todas as pensões (em pagamento) de valor superior a € 2992,79/ Esc. 600.000SOO seriam remíveis (quer fossem pensões por morte, quer resultantes de incapacidade permanente igual ou superior a 30%).
Acresce que admitir a consagração duma dualidade de critérios - às novas pensões aplicava-se o critério do reduzido valor que decorre do art° 56°-l-a), enquanto às anteriores o que resulta do art° 74° - seria reconhecer, sem explicação plausível, uma desarmonia dentro do próprio sistema, o que não se coaduna com a ideia de um legislador razoável, nem com o espírito da lei. Como ensina Inocêncio Galvão Telles (in Introdução ao Estudo do Direito, reimpressão, com notas actualizadas, 1990, pg 169), a interpretação tem de se fazer, "teleologicamente, em vista do fim prático a que a lei se destina, de maneira a esta poder satisfazer convenientemente esse fim e ser coerentemente e correctamente aplicada".
Não pesa o argumento invocado no acórdão recorrido de que, a aplicar-se o critério consagrado no citado art° 56o-1-a), as pensões fixadas antes de 1974 (ano em que foi instituído o salário mínimo nacional - DL n° 271/74) nunca poderiam ser remidas. Como sabemos, a lei prevê mecanismos para fazer face a tais situações.
Assim e como vem sendo decidido unanimemente
por este Supremo Tribunal, entende-se
que para saber se uma pensão vitalícia resultante de acidente ocorrido antes de
1.01.2000 é de reduzido montante atende-se ao
critério que resulta do citado art° 56°-l-a); para
efeitos de concretização gradual das remições de pensão, releva o quadro
estabelecido no citado art° 74°.[9]
Logo, contrariamente ao defendido no acórdão recorrido, a solução não está apenas neste preceito, mas passa pela sua articulação com o preceituado naquele art° 56°. E segundo esta disposição, a remição obrigatória está dependente de dois factores: o valor da pensão vitalícia e o valor da remuneração mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão.
Recentemente, o Tribunal Constitucional decidiu "julgar inconstitucional, por violação do art° 59°, n° l, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, o art° 74° do Decretq-Lei n° 143/99, de 30 de Abril, na redacção do Decreto-Lei n° 382-A/99, de 22 de Setembro), interpretado no sentido de impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por incapacidades parciais permanentes nos casos em que estas excedam 30%" (ac. n° 56/2005, publicado no DR - H Série, de 3.03.2005).
Esta tomada de posição, vinculada à formulação da questão concretamente suscitada perante o Tribunal Constitucional, representa um contributo importante para a resolução do caso em apreço, na medida em que repudia o entendimento defendido no acórdão recorrido de que, relativamente aos acidentes ocorridos antes de l de Janeiro de 2000, portanto na vigência da Lei n° 2127, de 3 de Agosto de 1965, e do Decreto n° 360/71, de 21 de Agosto, e para efeitos de saber se a pensão é ou não remível, haverá apenas que atender aos valores que constam do art° 74°.
Assente que ao caso dos autos se aplica o critério consagrado no citado art° 56o-1-a), impõe-se, agora, interpretar a expressão "à data da fixação da pensão".
Antes de mais, ela não pode ser entendida como a data da decisão judicial que a fixou, mas antes a data a partir da qual a pensão é devida: em caso de morte, o dia seguinte ao falecimento do sinistrado - cfr. art° 49°-7 do DL 143/99 - em caso de incapacidade permanente, o dia seguinte ao da alta - cfr art° 17°-4 da LAT -, sendo certo que já assim era na lei anterior - art° 56° do DL n° 360/71 e Base XVI, n° 4, da Lei n° 2127, de 3.08.65.
Isto porque, a ser de outro modo, estaríamos a introduzir na solução do problema um factor tão aleatório como a celeridade da tramitação processual, permitindo que as pensões com o mesmo valor e a mesma data de início fossem ou não obrigatoriamente remíveis consoante a data em que, pelas mais variadas vicissitudes, tivesse sido proferida a decisão judicial a reconhecer o direito (neste sentido, Carlos Alegre, em anotação ao art° 56° do DL n° 143/99 - Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico Anotado, 2a ed.,pg 239).
O que significa que, no caso dos autos, à data de tal fixação (26.04.96, momento a partir do qual a pensão passou a ser devida), a remuneração mínima mensal garantida mais elevada era de Esc. 54.600$00 (DL,n° 21/96, de 19 de Março), correspondendo Esc. 327.600$00/€ 1.634,06 ao sêxtuplo dessa quantia.
Mas outra questão se suscita: que é a de saber se, como termo de comparação, se deve atender ao valor da pensão à data da sua fixação (no caso concreto Abril de 1996) ou ao valor actualizado (a 2004).
Há que reconhecer que a letra da lei não é clara e inequívoca, pois, em tese, a expressão "à data da fixação da pensão" tanto poderá referir-se a ambos os factores (valor da pensão e do valor da remuneração mínima mensal garantida), como apenas a um deles (o último).
Contudo, se é verdade que a letra da lei não
é clara, também é certo que não repudia que se
atribua àquela expressão o sentido mais abrangente. O que permite dizer que, se
for este o pensamento legislativo, ele tem
correspondência verbal na letra da lei (art° 9°-2 do CC).
No caso dos autos, trata-se de aplicar um
regime transitório.
Como resulta claramente do preâmbulo do DL n° 143/99, de 30.04,
foi intenção do legislador alargar o regime
da remição das pensões fixadas no domínio da anterior LAT (vontade real
do legislador).
Sendo este o fim do regime
transitório, contraria-o uma interpretação que reporte os dois mencionados elementos - valor da pensão
vitalícia e valor da RMMG - a momentos temporais
bem diferenciados (o valor do RMMG referido à data da fixação da pensão vitalícia e o valor desta, à actualidade, já
depois de verificadas, sucessivas actualizações),
na medida em que seria difícil encontrar uma pensão vitalícia que fosse remível, com fundamento no seu reduzido valor (art°
41°-2-a), 2a parte, da Lei 100/97).
Por outro lado, a seguir tal critério também aqui se criaria uma
desarmonia dentro do sistema. Com efeito,
ocorrendo o acidente de trabalho na vigência do novo regime,o valor da pensão vitalícia e o valor da
remuneração mínima garantida a ter em conta para efeitos de remição obrigatória, nos termos do art° 56o-1-a),
seriam reportados, temporalmente, à data
da fixação da pensão, isto é, ao mesmo momento; já, numa situação como a
dos autos, os valores atendíveis
decorreriam de momentos distintos e muitos distanciados no tempo (2004 e 1993). E, tudo, no âmbito de aplicação do
mesmo preceito.
Além disso, a utilização deste critério
conduziria a uma flagrante desigualdade de tratamento entre os
sinistrados/beneficiários de pensões fixadas ao abrigo da LAT anterior e os beneficiários de pensões fixadas ao
abrigo da LAT actual, na medida em que seriam obrigatoriamente remíveis pensões
novas de valor significativamente mais elevado do que legislador
razoável, nem com o espírito da lei.
De sublinhar, ainda, que aquela desigualdade
de tratamento seria tanto mais gravosa
quanto mais antiga fosse a pensão, sabido que o valor da RMMG se torna progressivamente mais baixo à medida que se
recua no tempo.
Igualmente, não vale esgrimir com o estatuído no art° 74o-1 da RLAT.
Desde logo, porque se o mesmo impusesse que,
no âmbito do art° 56o-1-a), se jogasse com o valor actualizado da pensão fixada, no
pressuposto de que os valores actualizados
mais não são do que os estabelecidos inicialmente, corrigidos de acordo com a
inflação verificada ao longo dos tempos, isso não podia deixar de arrastar a
correspondente actualização do valor da RMMG.
Depois, porque uma
coisa são os requisitos exigidos para a remição obrigatória das pensões (de
reduzido montante), por via do art° 56o-1-a) da RLAT, outra é o
faseamento estabelecido para a
remição de tais pensões.
No caso dos autos e
seguindo este entendimento, verifica-se que a pensão inicialmente fixada
(no montante de Esc. 442.512$00), porque superior ao sêxtuplo do salário mínimo nacional,
vigente na altura (Esc. 327.600$00/ € 1.634,06 = Esc. 54.600S00 x 6), não é de reduzido montante e por isso não é
obrigatoriamente remível.
V - Decidindo
Nestes termos, concedendo provimento ao agravo, acordam em revogar o acórdão recorrido, considerando não remível a pensão devida à beneficiária A ... .
Mais se acorda em uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos:
«I. Para determinar se uma pensão vitalícia anual resultante de acidente de trabalho ocorrido antes de 1.01.2000 é de reduzido montante para efeitos de remição, atende-se ao critério que resulta do art° 56°-l-a) do DL n° 143/99, de 30.04, devendo os dois elementos - valor da pensão e remuneração mínima mensal garantida mais elevada - reportar-se à data da fixação da pensão.
II. Para efeitos de concretização gradual da remição dessas pensões, atende-se à calendarização e aos montantes estabelecidos no art° 74° do mesmo diploma, na redacção introduzida pelo DL n° 382-A/99, de 22.09, relevando, neste âmbito, o valor actualizado da pensão».
Sem custas.
Lisboa, 16 de Março de 2005
[1] N°
33/04 - Relatora: Maria Laura C. S. Maia T. Leonardo.
[2] Manual dos Recursos em Processo
Civil, 5ª ed., pg 272 e sgs.
[3] Vamos seguir de perto os acórdãos de 13 de Julho de 2004,
de 14.12.04 e de 27.01.05, da mesma relatora, proferidos, respectivamente, nos recursos 1015/04,
3680/04 e 3685/04, da 4a secção.
[4] Concretamente, às pensões devidas por acidentes ocorridos
antes de l de Janeiro de 2000 - acórdão de uniformização de jurisprudência n° 7/2002, publicado na
l" Série-A do DR de 18.12.2002.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, in
CCA, em anotação ao art.º 9º.
[6] Manuel A. Domingues de Andrade, "Ensaio sobre a
Teoria da Interpretação das Leis", pg 22.
[7] Ob. citada em 2.
[8] J. Baptista Machado, in "Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador" desvaloriza a "vontade do
legislador", 1996, pp.
217 e 218, sustentando que a descoberta desta vontade só faz algum sentido
quando
estamos perante leis-medidas
ou leis-providência, de natureza administrativa.
[9] No mesmo sentido, entre outros, os acs do STJ,
proferidos nos processos n°s 2850/04 e 3958/04, da 4ª secção, relatados
respectivamente pelos Exm°s Juizes Conselheiros Sousa Peixoto e Paiva
Gonçalves.