III - A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

E) As fundações.

A fundação apresenta-se como uma pessoa colectiva de natureza privada e utilidade social, dotada de património próprio, específica e autonomamente afectado por um ou vários instituidores, pessoas singulares ou colectivas[62]visando a realização de uma ou várias finalidades de interesse social (caridade, educação, desenvolvimento científico, das artes ou letras) possuindo, para tanto uma direcção ou administração própria.[63]

A fundação integra dois elementos constitutivos, o substrato e o reconhecimento:

1 - O substrato.

a) O elemento patrimonial.

Consiste no conjunto de bens que o fundador afectou ao prosseguimento do fim da fundação. Essa massa de bens designa-se habitualmente por dotação.[64] De facto, nos termos do art. 186º nº 1 do C.Civil, deve o instituidor no acto de instituição, além de indicar o fim da fundação “... especificar os bens que lhe são destinados”, sendo mesmo indispensável para que se constitua como pessoa jurídica.[65]

b) O elemento teleológico.

O fim prosseguido pela fundação deve satisfazer dois requisitos:

1 - Ser determinável, física ou legalmente possível, não contrário à lei e ordem pública, nem ofensivo dos bons costumes (art. 280º do C.Civil).

2 - Ser comum ou colectivo.

Do teor dos art. 157º e 188º do C.Civil resulta a necessidade do escopo da fundação ser de interesse social, já que, “Não será reconhecida a fundação cujo fim não for considerado de interesse social pela entidade competente”, constituindo causa da sua extinção o esgotamento do seu fim (art. 192º nº 2 al. a) do C.Civil). Estão afastadas, assim, as fundações que visem fins privados dos fundadores, por outro, a actividade da fundação estará limitada pelo princípio da especialidade[66] previsto no art. 160º do C.Civil.

c) O elemento intencional.

A intenção de constituir uma nova pessoa jurídica autónoma e distinta do fundador e dos beneficiários. Esta exigência relaciona-se com o facto da constituição da fundação (art. 186º C.Civil), já que, os efeitos dos negócios jurídicos determinados pela lei dependem da existência e de um conteúdo duma vontade correspondente.

d) O elemento organizatório.

A fundação integra uma organização destinada a gerir as pessoas e bens que a integram. Essa organização traduz-se na definição de uma lei interna (estatuto) e na existência de órgãos para que a fundação possa funcionar como entidade jurídica autónoma.
O art. 162º do C.Civil impõe como obrigatório um órgão colegial de administração e um conselho fiscal, ambos constituídos por um número impar de titulares, dos quais um será o presidente, uma vez que não existe substrato pessoal, inexiste qualquer assembleia geral. A expressão “entre os quais” indicia que podem existir outros órgãos além do conselho de administração e conselho fiscal, sendo que estes são obrigatórios.[67]
De acordo com o art. 186º nº 2 do C.Civil o instituidor pode providenciar sobre “... a sede, organização e funcionamento da fundação...”, assim, a elaboração dos estatutos[68] pertence em primeiro lugar ao fundador. Caso os não tenha criado e a instituição for por acto entre vivos, a sua elaboração pertence à autoridade competente para o reconhecimento (art. 187º nº 2 do C.Civil), a qual deverá ter “... em conta, na medida do possível, a vontade real ou presumível do fundador” (art. 187º nº 3 C.Civil).
Constando a instituição de testamento, é aos executores deste que compete elaborá-los ou completá-los (art. 187º nº 1 C.Civil).
A alteração dos estatutos pertence, a todo o tempo, exclusivamente à autoridade competente, contando que não haja alteração essencial do fim da instituição e não se contrarie a vontade do fundador (art. 189º C.Civil).

A lei não estabeleceu limites quanto aos termos em que serão designados os titulares dos órgãos sociais, resultará da vontade do fundador ou de quem elabore os estatutos, com respeito pela vontade real ou presumível daquele, às regras da boa fé, ordem pública e bons costumes, não se mostrem contrários à lei, nem ser de objecto indeterminável ou legalmente impossível. Também quanto à instituição de cargos vitalícios a lei não estabelece restrições. [69]

O estatuto está sempre sujeito aos formalismos de publicidade exigidos para o acto constitutivo (art. 185º nº 5 C.Civil).

São aplicáveis as regras gerais relativas à composição e funções da administração contidas no art. 162º do C.Civil, sendo válidas as considerações efectuadas a propósito das associações.

No que respeita à convocação e modo de funcionamento, no silêncio da lei e dos estatutos, é aplicável por analogia o regime do art. 171º do C.Civil, com excepção do voto de desempate do presidente.[70]

Relativamente ao conselho fiscal, são válidas as considerações atrás referidas.

2 - O reconhecimento.

Trata-se do elemento formal através do qual a personalidade é concedida ao substrato já unificado pelo negócio da fundação. O art. 158º nº 2 do C.Civil dispõe que as fundações “... adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa”.
Nas fundações vigora no direito português o reconhecimento por concessão, através de acto discricionário[71] da autoridade competente (nos termos do art. 17º do DL 215/87 de 29/5, compete ao Ministro da Administração Interna o reconhecimento de fundações) que, face a um substrato específico decide da atribuição da personalidade jurídica.

De acordo com o art. 188º nº 1 e 2 C.Civil existem dois fundamentos pelos quais o reconhecimento pode ser negado, apesar de verificados os restantes pressupostos:

- A fundação não ser de interesse social.
- Os bens não serem suficientes.

Modificação em fundações: É à autoridade competente para o reconhecimento que cabe a decisão (art. 189º e 190º C.Civil). As alterações estatutárias não relativas ao fim dependem de proposta da administração da fundação e estão condicionadas por dois limites (art. 189º C.Civil).

A extinção de fundações: para além da norma geral do art. 166º do C.Civil, consagra-se dois tipos de causas de extinção:

- Por força da lei (art. 192º nº 1 C.Civil).
- Por decisão da autoridade competente para o reconhecimento (art. 192º nº 2 e 190º C.Civil).

Uma questão prática que se coloca consiste em saber se o PA aberto pelo Ministério Público para análise do acto de constituição e estatutos deve aguardar a decisão ministerial relativa ao reconhecimento da fundação.
A “Fundação” constitui no momento em que aguarda reconhecimento um agrupamento sem personalidade jurídica. Mas, apesar de não constituir um ente jurídico autónomo ou uma pessoa colectiva, dada a falta de personalidade, a sua existência não pode deixar de ter repercussões em termos do direito, pelo que, se devem aplicar as normas dos art. 195º e seg. do C.Civil.<7div>
Efectivamente, aqueles preceitos ocupam-se das associações sem personalidade e comissões especiais, tratando de “... substratos pessoais ou patrimoniais mas sem reconhecimento, com certa correspondência com as associações e fundações .... ao primeiro caso correspondem as associações sem personalidade e ao segundo as comissões especiais....As comissões especiais, também chamados patrimónios de subscrição correspondem fundamentalmente, no plano da vida real , a casos de prossecução de fins de natureza transitória, como os enumerados no art. 199.... Embora esse preceito coloque no mesmo plano os casos em que o reconhecimento nem sequer é pedido e aqueles em que é negado, na grande maioria das comissões especiais não haverá por parte dos membros a intenção de a personificar....Como antes referimos, o regime legal destas comissões sugere uma certa proximidade com as fundações...”.[72]
Neste sentido, parece poder concluir-se que, ao caso em análise se deverão aplicar as disposições legais relativas às comissões especiais – as regras dos art. 199º a 201º do C.Civil.
Assim, apesar da falta de personalidade jurídica da “Fundação”, sendo admissível pelo legislador a sua existência jurídica nos termos expostos e estando previstas regras da sua responsabilização para garantia dos que com ela contratam, afigura-se-nos destituída de sentido prático qualquer actuação que contrarie a sua existência em conformidade com o exposto, não se justificando a pendência do presente processo administrativo.
Por outro lado, não colidindo a sua existência e as regras estatutárias com nenhuma norma imperativa do Código Civil, princípios fundamentais subjacentes ao sistema jurídico que o Estado e a sociedade estão interessados que prevaleçam (ordem pública) ou com o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé (bons costumes), outra solução não resta que o arquivamento do PA.


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[62]Ascensão, José de Oliveira, ob. cit, pág. 294.

[63]Cfr Parecer 11/88 da PGR.

[64]Pinto, Carlos Alberto da Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., pág. 269.

[65]Correia, A. Ferrer e Sá, Almeno de, Algumas Notas sobre as Fundações, RDE, Ano XV (1989), pág. 331/332.

[66]Cfr Parecer 13/95 da PGR.

[67]A titulo de exemplo, a Fundação Aga Khan, criada pelo DL 27/96 de 30/3 prevê os seguintes órgãos: presidente, conselho de administração, conselho nacional e conselho fiscal.

[68]Exemplo de cláusula nula: Cláusula estatutária pela qual o fundador se reserva o direito de dispor dos bens que afecta à fundação – Ac. STJ de 24/10/96, RLJ 130-111 e seg.

[69]Cfr Parecer 13/01 da PGR.

[70]Cfr Fernandes, Luís A. Carvalho, ob. cit., pág. 538.

[71]Cfr Fernandes, Luís A. Carvalho, ob. cit., pág. 471.

[72] Cfr Fernandes, Luís A. Carvalho, ob. cit., pág. 447 e seg.