III - A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Em virtude da organização e funcionamento das associações revestir aspectos de interesse público, ao Ministério Público (MP) foi conferida legitimidade para promover a observância da legalidade:

1 - Da constituição da pessoa colectiva (art. 168º e 185º do C.Civil).
2 - Dos estatutos e suas alterações (art. 168º e 185º do C.Civil).
3 - A extinção da pessoa colectiva (art. 182º nº 2 e 183º nº 2 C.Civil).

A legitimidade do MP decorre igualmente das funções que lhe são atribuídas no âmbito da defesa da legalidade e da prossecução do interesse público (art. 3º nº 1 al. l) e 5º nº 1 al. g) da Lei 47/86 de 15/10, podendo o controlo das diversas situações resultar do conhecimento oficioso do MP ou em resultado da comunicação do notário da constituição, estatutos ou alterações (art. 168º nº 2 C.Civil).[2]

A aquisição da personalidade jurídica da grande maioria das associações é obtida através da celebração da escritura pública de constituição (art. 158º nº 1 e 168º nº 1 do C.Civil), sob pena de nulidade, invocável pelo MP e de conhecimento oficioso pelo tribunal (art. 158º-A, 220º, 280º e 294 C.Civil).
Uma primeira apreciação da legalidade da constituição e estatutos da pessoa colectiva deve ser efectuada pelo notário:

- Se a escritura pública solicitada for nula, o notário deve recusar a prática do acto (art. 173º nº 1 al. a) do Código do Notariado e art. 11º nº 2 al. a) do DL 26/04 de 4/2).
- O notário deve apreciar a viabilidade de todos os actos cuja prática lhe é requerida, em face das disposições legais aplicáveis verificando especialmente a legalidade substancial do acto solicitado (art. 11º nº 1 do DL 26/04).

Após a recepção do expediente e o seu registo e autuação como Processo Administrativo (PA), qual o prazo para a apreciação do acto de constituição, estatutos ou alterações?

1 - Regra geral: 10 ou 2 dias para os despachos ou promoções de mero expediente e urgentes (aplicação analógica do art. 160º do CPC aos despachos nos PA).
2 - Excepções:
- Associações juvenis; 30 dias, sob pena de presunção da legalidade do acto constitutivo[3] (art. 4º nº 2 da Lei 6/02).
- Associações de empregadores; 15 dias, sob pena de caducidade[4] [5] (art. 513º nº 4 do Código do Trabalho).
- Associações sindicais; 15 dias, sob pena de caducidade[6] (art. 483º nº 4 do Código do Trabalho).

Na análise do acto de constituição e estatutos[7] da associação o magistrado do MP tem que seguir um critério de estrita legalidade (a actuação do MP só pode ter lugar em conformidade com a lei) e objectividade,[8] emitindo um parecer jurídico relativo à conformidade[9] ou desconformidade face às normas jurídicas de carácter imperativo[10] e aplicáveis ao caso.
No caso o MP constatar a existência de nulidades, em regra, notificam-se os associados para, querendo, voluntariamente procederem à alteração dos estatutos em causa, fixando-se um prazo razoável para o efeito.[11] Com a notificação o MP limita-se a apresentar a sua posição sobre os estatutos, pretende-se evitar que, a propor-se de imediato a acção, a associação viesse posteriormente afirmar que, se lhe tivesse sido dada a oportunidade, teria preferido a alteração voluntária dos estatutos.
Por vezes, as associações contestam as posições jurídicas assumidas pelo MP mas, não se deve entrar em discussão ou polémica, a acção judicial com o respectivo contraditório é o local apropriado para o efeito.
Em virtude da consagração do princípio da legalidade nas disposições acima referidas entendo que, aceitando os outorgantes o convite do MP para procederem à alteração dos estatutos da associação através de escritura pública, com vista a remover as cláusulas nulas, tal acto será gratuito (art. 12º nº 1 al. a) do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado),[12] abrangendo o imposto de selo devido, o qual será suportado pelo cartório em virtude de se tratar de rectificação de erro imputável ao notário.
Porém, se os associados não pretenderem alterar os estatutos ou, apesar de notificados para o efeito nada digam, ou esgotem sucessivas prorrogações do prazo para proceder à alteração, o MP intentará acção declarativa de simples apreciação para:

1 - Requerer a declaração judicial de extinção da associação ou,
2 - Requerer a declaração de nulidade da(s) cláusula(s) estatutária(s) que padece(em) de nulidade.

No que respeita ao tribunal competente, o art. 168º nº 2 do C.Civil apenas menciona a remessa “ao Ministério Público”, assim, na ausência de norma que atribua ou defina qual o MP competente para o envio da escritura pública (e eventual propositura da acção), importa recorrer às normas do Código de Processo Civil. No caso, ao art. 86º nº 2 do CPC, pelo que, o notário deverá remeter a escritura pública à Procuradoria junto do tribunal da sede da pessoa colectiva, tribunal também competente no caso do MP intentar a acção.
O valor da acção é de € 14.963,95 (art. 312º CPC), determinando a competência do tribunal e a relação da causa com a alçada do tribunal (art. 305º nº 2 CPC).
Uma vez que, no caso, o MP age em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, está isento de custas (art. 2º nº 1 al. a) do Código das Custas Judiciais).[13]

A nulidade de uma [14] cláusula dos estatutos não implica necessariamente a nulidade de todo [15] o pacto associativo, importa apurar se o vício afecta de forma essencial a constituição ou funcionamento da associação “... por forma que esta não possa sobreviver ou funcionar perante a sua verificação e permanência[16], recorrendo-se ao princípio do aproveitamento do negócio jurídico (art. 292º C.Civil)[17], segundo o qual a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade do todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.

No caso de estar a correr termos uma acção intentada nos termos supra referidos, se a associação comprovar no processo através da junção da respectiva escritura pública que alterou as normas estatutárias nulas, a instância deverá ser extinta por inutilidade superveniente da lide (art. 287º al. e) CPC).[18]
No que respeita a cooperativas, não compete ao MP a análise do acto de constituição, estatutos e alterações (cfr art. 87º e 88º do Código Cooperativo – Lei 51/86 de 7/9, com alterações).
Os art. 89º e 91º n° 3 do C. Cooperativo atribuem ao Ministério Público legitimidade para propor acções  de dissolução das cooperativas que não respeitem no seu funcionamento, os princípios cooperativos, cuja actividade não coincida com o objecto expresso nos estatutos, que utilizem sistematicamente meios ilícitos para a prossecução do seu objecto ou recorram à forma cooperativa  para alcançar indevidamente benefícios legais e, ainda, das cooperativas que não procedam à actualização do capital para o mínimo legal  (€ 2500,00 – art. 18º do C. Cooperativo ou € 250 nos casos previstos no art. 91º nº 4).
No primeiro caso, a intervenção do Ministério Público está dependente da iniciativa do INSCOOP, que tem conhecimento dos estatutos por força do art. 88º nº 1 do Código Cooperativo, enquanto na segunda hipótese o Ministério Público age oficiosamente.

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[2]Apesar de se tratar de Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais e não associações, o art. 5º nº 2 da Lei 58/98 de 18/8 impõe ao notário a comunicação ao MP da constituição, estatutos e alterações.

[3]Cfr Circular 4/2004 da PGR:

O Instituto Português da Juventude veio representar divergências de entendimento por parte dos Magistrados do Ministério Público, quanto à natureza do prazo previsto no artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2002, de 23 de Janeiro.

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 12.º, n.º 2, alínea b), do Estatuto do Ministério Público e tendo em vista a uniformização de procedimentos, determino que os Senhores Magistrados do Ministério Público, tenham em conta o seguinte:

1. A Lei n.º 6/2002, de 23 de Janeiro, estabelece no seu artigo 4.º, n.º 2, o prazo de 30 dias para que o Ministério Público se pronuncie sobre a legalidade da constituição das associações estudantis e respectivos estatutos, findo o qual aquela se presume;

2. Este prazo tem natureza ordenadora ou disciplinar da acção do Ministério Público e o seu decurso é elemento operativo da presunção de legalidade, com efeitos ao nível da Administração;

3. O referido prazo é contínuo e não se suspende nas férias judiciais;

Não obstante o controlo normativo poder ocorrer em data posterior ao referido prazo, o Ministério Público deve conferir efectividade aos princípios de celeridade e de eficiência, providenciando para que o controlo da legalidade dos referidos actos ocorra naquele prazo.

[4]No sentido de que se trata de um prazo de caducidade, vide o Parecer 15/79 da PGR, BMJ 290-196, em que se conclui que o art. 10º nº 4 do DL 215-B/75 (o Código de Trabalho possui uma redacção semelhante para as associações sindicais e de empregadores) tem natureza, regime e efeitos dos prazos de caducidade.

[5] No sentido de que não se trata de um prazo de caducidade vide, Ribeiro, António da Costa Neves, O Estado nos Tribunais, Coimbra Editora, 1985, pág. 159 – “Promover no prazo de 15 dias a declaração judicial, não significa, necessariamente, instaurar a acção, sob pena de caducidade, designadamente se estão em causa situações daquele tipo”.

[6]Cfr notas nº 4 e 5.

[7]O art. 167º do C.Civil distingue o acto de constituição e os estatutos. Trata-se de dois actos jurídicos diferentes, a criação da pessoa colectiva e a sua organização (estatutos), que normalmente coincidem no tempo e no mesmo instrumento (escritura pública). O acto de constituição fornece os elementos fundamentais caracterizadores da associação, enquanto os estatutos respeitam mais ao seu regime de funcionamento.

[8] “... não há que operar aí com um declaratário colocado nas condições reais dos efectivos outorgantes, como teria de ser se ao citado art. 236º nº 1, coubesse, nestas hipóteses, aplicação integral: a protecção dos terceiros que hão-de entrar em relações com a sociedade e dos que nela virão futuramente a ingressar exigirá, em princípio, que a interpretação da escritura social se faça do ponto de vista de quem não teve acesso a todas as circunstâncias da elaboração da escritura ... mas unicamente às circunstâncias conhecidas da generalidade, ou de que qualquer pessoa poderia aperceber-se” (Xavier, Vasco Lobo, RLJ 121º - 113).

[9] Cfr peça processual nº 1.

[10]Normas imperativas são as que visam directa e imediatamente impor aos particulares a observância de certo comportamento. São preceptivas se o comportamento é a realização de determinada acção; são proibitivas se proíbem a realização de certos actos, impondo, assim, certas omissões ou abstenções (Lima, Pires, e Varela, Antunes, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª ed., 1º-75).

[11]Cfr peça processual nº 3.

[12]É o seguinte o teor do art. 12º nº 1al. a) do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado:

Actos gratuitos

1-       São gratuitos os seguintes actos:

a) Rectificação resultante de erro imputável ao notário ou de inexactidão proveniente de deficiência de título emitido pelos serviços dos registos e notariado.

[13]Cfr quanto ao novo regime de sujeição ao pagamento de custas judiciais das pessoas e entidades representadas pelo MP, as Circulares da PGR nº 2/2004 e 10/2004, acessíveis em www.pgr.pt.

[14]Cfr peça processual nº 5.

[15]Cfr peça processual nº 4.

[16]Ribeiro, António da Costa Neves, ob. cit., pág. 159.

[17]Neste sentido, cfr o Ac.  STJ de 21/2/78, BMJ 274-188 e Ac. RL de 11/7/89, BMJ 389-631.

[18]Cfr Ac. da RP de 17/9/91, BMJ 409-871.