Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 07-11-2018   Busca a veículo Automóvel. Nulidade. Iregularidade. Competência.
I. O arguido só pode estar habilitado a arguir uma irregularidade quando conhecer o que foi feito e não quando conhecer o resultado do que foi feito.
II. O facto do veículo estar apreendido não confere ao apreensor senão o direito de negar o acesso ao bem ao detentor ou proprietário (ou titular de direito real menor sobre o bem) e a obrigação de acautelar a segurança e não deterioração do bem.
III. Se o bem apreendido fica à guarda do funcionário ou de um depositário sendo que os deveres do depositário são os que constam do disposto no arte 1187° do Código Civil e ali não consta o de fazer buscas ao bem recebido em depósito.
IV. Assim, para que a busca possa ter lugar haveria (não havendo urgência na realização da mesma nos termos do arte 251e C.P.P. como não havia) que ordenar a busca (o que foi feito) e comunicar a mesma ao arguido para que ele exercesse os seus direitos de defesa, querendo, o que não foi feito.
V. No caso em concreto, de uma busca a veículo automóvel que foi levada a cabo por um órgão de policia criminal com competência delegada pelo Ministério Público, a melhor interpretação e aquela que se conforma com a Constituição é a de que são apeláveis para o Juiz de Instrução (e subsequentemente recorríveis se disso for o caso) os actos desencadeados em inquérito e sobre os quais se argua qualquer nulidade ou irregularidade.
Proc. 1959/17.4T9LSB-A.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Rui Teixeira - Teresa Féria - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Acordam na 3a secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1- Relatório
Inconformado com a decisão proferida em 09.08.2018, no âmbito do NUIPC 1959/17.4T9LSB, pelo Sr° Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal veio da mesma recorrer o arguido J com os sinais nos autos alegando, em sede de conclusões recursais que:
1. Quando o arguido já se encontrava em prisão preventiva, foi realizada uma nova busca ao seu veículo automóvel a fls. 2709/2710;
a. No momento em que esta 2a busca foi realizada, porque a la foi considerada incompleta, o arguido, visado, estava preso e na disponibilidade destes autos;
b. O veículo automóvel é um espaço reservado, devendo por isso a intromissão no mesmo para efeito de investigação criminal estar dependente das regras do artigo 174° n° 2 do CPP, o que aconteceu por via de despacho proferido pelo MP a fls. 2705/2706;
c. As formalidades previstas no artigo 176 CPP nº 2 não foram cumpridas, nomeadamente:
d. Foi violado o direito do arguido, visado, a ser notificado do despacho que determinou a busca:
i. Assim como foi violado o seu direito de assistir à busca:
ii. O arguido também viu violado o direito a lhe ser entregue cópia do auto de diligência.
d. Visam as formalidades previstas no artigo 176° do CPP possibilitar a presença ou a representação da pessoa cuja intimidade está em causa, de forma a permitir a menor afectação possível da dignidade pessoal inerente a essa intimidade, o possível imediato contraditório relativo ao objecto da diligência e a transparência da diligência na actividade do estado de prossecução da justiça penal;
e. A apreensão do veículo automóvel, com a consequência indisponibilidade do veículo para o arguido, não o transforma em lugar não reservado ao público, o que o MP aceitou quando teve a necessidade de emitir mandado de busca a fls. 2705;
f. O que implica uma invalidade da diligência de prova de busca, com o efeito de não poder ser valorado o resultado da diligência de busca ao veículo de matrícula ... no dia 21 de Fevereiro de 2018 e descrita a fls. 2709/2710;
2. De todo o modo, ainda que se considere uma irregularidade, o arguido consultou os autos no dia 30.7 e logo no dia seguinte apresentou o seu requerimento;
a. Desde logo, tendo sido notificado da acusação no dia 16.7, o arguido consultou os autos dentro do prazo legal de abertura de instrução;
b. Além do mais, só com a consulta dos autos, e não com a acusação, é que o arguido podia saber em que condições legais e logísticas é que foi realizada a 2ª busca;
3. Em todo o caso, estando em causa direitos fundamentais como a intimidade e o contraditório, a violação das formalidades apontadas implica uma proibição de prova nos termos do n.° 3 do artigo 126° e artigos 18°, 32° e 34° da CRP.
Violaram-se as seguintes disposições legais:
• Artigos 1232, 1262, 174P e 1762 do CPP;
• Artigos 18P, 32 e 34 da CRP.
Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento com todas as consequências e farão V. Exas Justiça.
Admitido o recurso, o qual foi interposto em tempo, com o efeito devido, foi notificado o Ministério Público veio o mesmo responder alegando em conclusões que:
la O recorrente invocou a (suposta) irregularidade da busca junto do TCIC, quando o devia ter feito ao Ministério Público.
2a Isto porque a competência para a determinação de tal busca cabia exclusivamente ao MP (art. 174.°, n.°s 2, 3 e 4 e 177.°, n.° 1, a contrario sensu, do CPP).
3a À data da realização da busca o veículo encontrava-se apreendido à ordem deste processo e á guarda da PSP e o recorrente já estava em prisão preventiva.
4a O recorrente não tinha qualquer disponibilidade de facto ou de direito sobre o automóvel em causa (art. 176.°, n.° 1, do CPP).
5a Não se verifica a irregularidade invocada pelo recorrente (art. 123.°, n.° 1, do citado diploma legal).
6ª O ora recorrente apenas invocou a pretensa irregularidade no dia 31.07.2018, ou seja, mais de três dias depois da notificação do despacho de acusação.
7ª Na acusação refere-se expressamente a existência de um compartimento oculto no automóvel e de produto estupefaciente e outros objectos contidos no seu interior (art. 29.°, desse despacho).
8a A invocação da irregularidade é extemporânea (art. 123.°, n.° 1, do CPP).
9ª Mesmo que se verificasse a alegada irregularidade, já este vício estaria sanado.
10ª A busca em apreço não enferma de qualquer vicio, pelo que o recurso não deve obter provimento.
Já nesta Relação o Sr° Procurador-Geral Adjunto lavrou parecer consignado que, na sua opinião, assistia razão ao seu colega da lº instância. A tal respondeu o recorrente mantendo como no seu recurso e salientando, além do mais, que a questão da tempestividade da arguição do vício não se prende com uma irregularidade mas sim com uma nulidade de prova.
II — Do fundamento do recurso, do despacho recorrido e da fundamentação de facto
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que os recorrentes extraem das motivações apresentadas, em que sintetizam as razões do pedido (art° 412° n° 1 do Código do Processo Penal), que se delimita o objecto dos recursos e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Da leitura da peça recursal depreende-se que as questões a tratar neste recurso são:
- a violação do direito do arguido de estar presente de se fazer representar na busca efectuada.
- a tempestividade da arguição da irregularidade
Para que se compreenda a dinâmica dos autos convém relatar a sucessão de factos e decisões que relavam para a decisão sendo de salientar que mal andou o Sr° Juiz ao não fazer constar do despacho recorrido, ainda que em súmula, a base factual em que estribou a sua decisão.
Assim é de considerar:
1- No dia 21.02.2018, no âmbito dos autos principais c cm sede de inquérito a que se procedia nos autos principais foi proferido despacho pelo Sr° Procurador Adjunto com o seguinte teor: Atenta a informação da PSP que antecede, resultam fortíssimas suspeitas que no veículo automóvel, de marca Citroen, modelo C5, com a matrícula 36…, se encontram dissimulados produtos estupefacientes e outros objectos relacionados com a prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado (...).
Assim, por se revelar essencial para a descoberta da verdade, determino que se proceda a uma busca no veículo acima referido e à apreensão de todos os produtos, objectos e quantias nela contidas que se relacionem com a prática de ilícitos criminais.
Emitam-se para o efeito os competentes mandados, com o prazo de validade de 30 dias - art° 174° n° 2, 3 e 4, 176°, 263°, 267°, 270° n° 2 al. d) e 178°, todos do Código do Processo Penal.
Entregue imediatamente os mandados à PSP para cumprimento (...)
2 - Na sequência deste despacho foram emitidos os mandados com a refa citius 3... de 21.02.2018;
3 - O cumprimento dos mesmos vem a ocorrer na mesma data pelas 11 horas com o resultado constante de fls. 2709… dos autos principais, 32 deste apenso nele não constando que o arguido ou alguém que o representasse tivesse estado presente;
4 - Dos autos principais não consta que o despacho referido em 1. haja sido notificado ao arguido ou que o mesmo haja sido informado, por qualquer forma, da realização da diligência ou da possibilidade de estar presente na mesma ou de nela se fazer representar (refa citius 3... de 21.02.2018 e seguintes dos autos principais consultados nesta Relação);
4 - Por requerimento remetido a 31.07.18 (e recepcionado a 01.08.), o arguido veio arguir a irregularidade da busca alegando, precisamente, da mesma não ter conhecimento, a ela não ter assistido, não lhe ter sido dada a oportunidade de se fazer representar e não lhe ter sido dada cópia do auto.
5 - A tal requerimento o Ministério Público respondeu considerando que nenhuma irregularidade foi cometida e que ainda que assim não fosse o requerimento era intempestivo tendo sido arguido por quem não tinha competência para dele conhecer. Com tal promoção foram os autos remetidos ao Sr° Juiz (refa citius 37... de 07.08.2018);
6 - Na sequéncia deste despacho foi proferido pelo MmQ Juiz de Instrução Criminal o despacho recorrido (refa citius 33...) cujo teor é o seguinte na parte que releva: Efectivamente a busca á viatura automóvel de matrícula ..., cuja irregularidade o arguido J invoca, ocorreu quando essa mesma viatura já se encontrava apreendida á ordem do tribunal, pelo que não é de aplicar o disposto no art, 176.° do CPPenal, visto que o arguido, á data, não tinha a disponibilidade daquela viatura automóvel (fls. 2444 a 2446, 4166, 4221 e 4231),
Nesta conformidade, não existe qualquer irregularidade na busca efectuada a fls. 2... dos autos.
De qualquer modo, sempre se acrescentará que estando em causa uma mera irregularidade, tendo o arguido tido conhecimento dos factos a que imputa essa irregularidade no dia 16.07-2018, o prazo previsto no art. 123 °, n.° 1, do CPPenal, no dia em que a invocou (31-07-2008), já tinha passado há muito.
Pelo exposto, por falta de base legal, indefere-se a invocada irregularidade_ Notifique e devolva
6 - O arguido foi ouvido em sede de primeiro interrogatório judicial em 20.02.2018 tendo ficado preso preventivamente então (refa citius 31...);
III - Do mérito do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos artº 368 CPP e 369º ex-vi artº 424º n° 2 , todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art° 410° nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelos recorrentes.
Não estão em causa as apreensões concretamente ditas nem as datas em que as mesmas ocorreram.
A primeira questão que se coloca, então é a da tempestividade da arguição do vicio.
Aceitando — porque parece pacifico que, a existir vício, esse será o da irregularidade nos termos do art° 123° do C.P.P. — o Sr° Juiz veio a considerar que a arguição da irregularidade foi intempestiva.
Sem razão, contudo.
Quando o Sr° Juiz refere no despacho que o arguido teve conhecimento da irregularidade em 16.07.18 mas os autos não o demonstram. A data de 16.07.18 é a data em que o Mm° Juiz mantém a prisão preventiva e este é o único acto documentado no citius nesse dia.
O Ministério Público na la instância, esse, defende a intempestividade da arguição alegando que na acusação constam como meios de prova aqueles obtidos na 2º busca ao veiculo pelo que desde essa data o arguido tinha conhecimento da busca.
Ora, com o devido respeito, o arguido só pode estar habilitado a arguir uma irregularidade quando conhecer o que foi feito e não quando conhecer o resultado do que foi feito.
Confrontado com o resultado de uma diligência probatória que desconhece o arguido não tem de presumir a prática de um acto viciado.
Assim, assiste razão ao recorrente ao dizer que só com a consulta dos autos, e não com a acusação, é que o arguido podia saber em que condições legais e logísticas é que foi realizada a 2º busca.
E a prova de que o arguido poderia ter acesso aos autos não está feita e esta cabe, pela positiva, ao Ministério Público sendo que pela análise do processo electrónico este andou entre as instalações do DIAP e do TCIC nos dias subsequentes à dedução da acusação (refa 378... de remessa dos autos ao TCIC em 13.07.; refa 336... de devolução ao DIAP em 18.07.2018; refa 3785… de 19.07. com conclusão ao Sr° magistrado do MP).
Assim, temos por tempestiva a arguição da irregularidade pois o prazo para a dita arguição apenas começa a ser considerado quando o arguente está em condições de, abstractamente, ter conhecimento da mesma.
A questão que se coloca é, então, a de se saber se o juiz de instrução poderia conhecer, ele, da irregularidade.
Não deixa de ser curioso que o Ministério Público que sustenta tal posição na promoção que fez ao JIC não haja, quando o Sr° Juiz decidiu a questão e nada disse sobre a sua competência para tal, recorrido. De igual sorte mal se compreende porque o Ministério Público submeteu ao JIC a apreciação da questão quando entende que a competência era sua.
Seja como for a questão da competência do JIC é cognoscível ex-officio pelo que iremos da mesma conhecer.
Durante o inquérito a competência do JIC para intervir no inquérito só está definida em termos de reserva de jurisdição (arts. 17.°, 268.° e 269.° do CPP), não havendo qualquer norma que defina a competência do JIC no inquérito, sendo que a norma do art. 288.°, n.° 2, do CPP, referente à competência do JIC para a instrução, apenas refere que as regras de competência relativas ao Tribunal são correspondentemente aplicáveis ao juiz de instrução».
A competência material do juiz de instrução consubstancia-se na sua intervenção em fases processuais perfeitamente determinadas e, nomeadamente, o inquérito e a instrução. No inquérito, são as competências definidas nos artigos 268° e 269°: do C.P.P. em actos a praticar pelo juiz de instrução e autorização prévia do juiz de instrução para outros actos do inquérito; na instrução, o juiz de instrução preside e dirige a respectiva fase processual, nos termos dos artigos 286° a 308°, preside ao debate instrutório e profere decisão de pronúncia ou de não pronúncia.
Assim sendo, temos para nós que na fase de inquérito o Juiz de Instrução só intervém em actos pontuais.
No caso destes autos parece-nos claro que competiria ao Ministério Público ordenar as buscas ao veículo do arguido e isto porque o art° 174° n° 3 do C.P.P. dispõe que as buscas são ordenadas pela autoridade judiciária competente a qual, na fase de inquérito é o Ministério Público.
Questão diferente é a de se saber quem é a autoridade judiciária competente para conhecer da arguição de vícios desses actos.
Se o acto tivesse sido praticado por um juiz dúvidas não restariam que do mesmo haveria recurso para um Tribunal Superior.
No caso concreto, o acto foi levado a cabo por um órgão de policia criminal com competência delegada pelo Ministério Público, mais propriamente pelo Sr° Procurador Adjunto a quem o inquérito foi distribuído.
Ora, embora o Ministério Público seja uma estrutura hierarquizada, o superior hierárquico do Sr° Procurador Adjunto apenas pode intervir no desenrolar do inquérito através da figura da avocação do processo ou da intervenção hierárquica.
Respiga-se do Parecer da Procuradoria Geral da República de 16.10.2010 acessível em www.dgsí (pareceres da PGR; parecer n° PGRP00003067) «O ministério público surge entre nós como um órgão de administração da justiça com a particular função de, nas palavras do artigo 53.° [do CPP] colaborar com o juiz na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade. Dada esta incondicional intenção de verdade e de justiça que preside à intervenção do ministério público no processo penal — tão tradicional que é obrigado a investigar à charge e à décharge e pode interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa [artigo 53. CPP n. 2, alínea d)] -, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade...». E a hierarquia configurada no seu Estatuto não constitui uma hierarquia administrativa e, por isso, não participa de todas as suas características. É uma hierarquia com um conteúdo específico quando comparada com outras estruturas hierárquicas, pois o carácter subordinado da magistratura do Ministério Público, traduzindo-se numa hierarquização dos seus agentes, sujeitos mais a critérios funcionais do que em relação a categorias profissionais, impõe-se que se respeite a estruturas da cadeia hierárquica, como resulta dos artigos 8., e 76. n. 3 do estatuto.
(—)
Com efeito, «o Ministério Público é um órgão de administração da justiça, autónomo, organizado hierarquicamente para representar o Estado, exercer a acção penal, participar na execução da política criminal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar».
«Mas a hierarquia do Ministério Público corresponde também a necessidades impostas pela natureza das funções e por um objectivo de democratização da administração da justiça.
Exercendo funções de iniciativa e acção que, até por razões de celeridade, reclamam uma actuação unipessoal (os órgãos colegiais estão sujeitos a um processo mais moroso de formação da vontade), é necessário que haja mecanismos que, de forma preventiva ou a posteriori, acautelem a variação de procedimentos.
(—)
O inquérito constitui a primeira fase do processo penal e compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.°, n.°1).
A titularidade do inquérito, tal como a sua direcção, pertencem exclusivamente ao Ministério Público [artigos 263.° e 53.°, n.° 2, alínea b)].
O Ministério Público é, pois, o detentor da acção penal. É esta, aliás, uma das suas mais importantes atribuições. E, no seu exercício, age como órgão de justiça, o que implica a sua autonomia em relação aos demais poderes de Estado, e significa também que as suas intervenções processuais devem obedecer a critérios de estrita objectividade.
Por isso, o Ministério Público não está vinculado a ordens concretas dadas por qualquer outro órgão. Todavia, como magistratura hierarquizada que é, os despachos proferidos pelos seus magistrados são passíveis de apreciação posterior, estando sujeitos ao controlo do seu imediato superior hierárquico, em conformidade com o disposto nos artigos 278.° e 279.°, como melhor se verá. E há que destacar desde já que não podem ser objecto de recusa as decisões proferidas por via hierárquica nos termos da lei de processo [n.° 5, alínea a) do artigo 79.° do EMJ].
(...)
Como dissemos, a hierarquia do Ministério Público tem um conteúdo específico, não constituindo uma hierarquia administrativa e não participando, por isso, de todas as suas características, razão pela qual, a lei apenas se refere ao imediato superior hierárquico, o que, por um lado, significa que existe apenas um grau de reapreciação, e, por outro, que esse superior é justamente o imediato, e não qualquer outro.”
Disto isto a Lei permite a avocação que, em termos simples se consubstancia no retirar um processo da alçada de um magistrado e a sua colocação na alçada de um outro (situação que não tem aplicação nestes autos e que aqui se não cura) e a intervenção hierárquica.
Esta última figura é acolhida no art° 278° do C.P.P. que dispõe que: 1. No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento. 2. O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura de instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.»
Repare-se: a intervenção hierárquica ocorre sempre findo o inquérito e só pode ser pedida pelo assistente ou pelo denunciante com a faculdade de se constituir assistente (podendo ser ainda despoletada pelo superior hierárquico competente de motu propriu) e nunca pode ser pedida pelo arguido.
Assim, no nosso caso, mesmo que o arguido quisesse nunca poderia pedir ao superior hierárquico do Sr° Procurador Adjunto que considerou não verificada a irregularidade que interviesse.
De igual sorte também a intervenção hierárquica não se destina a conhecer de irregularidades pois que a mesma, nos dizeres do preceito citado, se destina tão só a que seja formulada acusação ou a que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.
Por outro lado e por fim mesmo que na intervenção hierárquica se pudessem conhecer das irregularidades cometidas pelo magistrado titular de um inquérito tal arguição, porque só poderia ter lugar depois de findo o prazo para requerer a instrução seria sempre intempestiva dado o prazo para a arguição da irregularidade nos termos do art° 123° do C.P.P.
Assim, em última análise, aceitar que as irregularidades cometidas pelo Ministério Público na fase de inquérito em actos da sua competência apenas podem ser conhecidas pelo Ministério público é aceitar que só o magistrado titular poderá conhecer da irregularidade sem qualquer possibilidade de recurso.
Ora, seria uma interpretação desconforme à Constituição, mormente aos seus art° 18° e 32° aceitar que os actos do Ministério Público que contendem com direitos individuais sejam irrecorríveis porque praticados em inquérito quando os mesmos actos se praticados por um juiz numa qualquer fase são recorríveis.
Nestes termos a melhor interpretação e aquela que se conforma com a Constituição é a de que são apeláveis para o Juiz de Instrução (e subsequentemente recorríveis se disso for o caso) os actos desencadeados em inquérito e sobre os quais se argua qualquer nulidade ou irregularidade.
Assim, o Sr° Juiz de Instrução era perfeitamente competente para conhecer, como conheceu, da apontada irregularidade.
E agora, finalmente, se chega à discussão daquilo que interessa que é de se saber se foi ou não cometida a irregularidade e, caso haja sido, quais as consequências.
Dispõe o art° 174° n° 2 do C.P.P. que 2 - Quando houver indícios de que os objectos (relacionados com um crime ou que possam servir de prova), referidos no número anterior, (...), se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca..
Dispõe, por sua vez o art° 176° n° 1 do C.P.P que 1- Antes de se proceder a busca, é entregue, salvo nos casos do n.° 5 do artigo 174.'2, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga.
É ponto assente que no caso dos autos não houve lugar à comunicação da diligência, à presença do arguido ou à possibilidade de na mesma o arguido fazer estar presente alguém em sua representação.
O preceito em questão, sem dúvida está pensado para as buscas domiciliárias e daí a referência à disponibilidade do lugar e a referência feita no n° 2 do preceito aos vizinhos.
Seja como for parece inequívoco que o mesmo se aplica também a outras buscas, designadamente às buscas a veículos.
O que o Mmº Juiz recorrido contende, no entanto, é que o veículo estava apreendido pela PSP e, como tal, na disponibilidade desta.
Vamos aceitar que assim é, que o veículo estava apreendido pela PSP (o MP, a defesa e o Sr° Juiz referem-no e nisto não há dissonância). Significa tal que o veículo estava na disponibilidade da PSP.
Seguramente se apreendido a PSP tinha liberdade de negar o acesso ao mesmo ao arguido. Tem até poder para o deslocar.
O que não se nos afigura é que tenha poder para realizar buscas no veículo a seu bel prazer (ou a prazer do MP que as ordena) sem que a defesa possa ter a possibilidade controlar, ela própria, a legalidade da operação sabendo-se, como se sabe, que amiúde é das buscas que resulta muita da prova que mais à frente é arribada em julgamento.
As formalidades constantes do art° 176° n°1 do C.P.P. não existem para defesa dos interesses do Estado enquanto interessado na acção penal. Existem precisamente para defender o cidadão dos abusos do Estado. São parte integrante do sistema de garantias penais que a Constituição assegura a cada cidadão.
É verdade que não vamos ao ponto de considerar que o não cumprimento de formalidades como aquela que aqui está em causa seja uma violação directa do art° 32° n° 8 da Constituição mas esta —a Constituição — assegura todo os direitos de defesa e um dos direitos de defesa é o de estar presente aquando de buscas ou de ter alguém presente aquando da realização das mesmas.
Voltando então à questão.
Entendemos que o facto do veículo estar apreendido não confere ao apreensor senão o direito de negar o acesso ao bem ao detentor ou proprietário (ou titular de direito real menor sobre o bem) e a obrigação de acautelar a segurança e não deterioração do bem. Repare-se que o art° 178° n° 2 do C.P.P. refere que o bem apreendido fica à guarda do funcionário ou de um depositário sendo que os deveres do depositário são os que constam do disposto no arte 1187° do Código Civil e ali não consta o de fazer buscas ao bem recebido em depósito.
Assim, para que a busca possa ter lugar haveria (não havendo urgência na realização da mesma nos termos do arte 251º C.P.P. como não havia) que ordenar a busca (o que foi feito) e comunicar a mesma ao arguido para que ele exercesse os seus direitos de defesa, querendo, o que não foi feito.
Não tendo sido feito e resultando uma apreensão da dita busca foi cometida uma irregularidade.
Dispõe o artº 123º nº 1 do C.P.P. que Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
Aceite que está que a arguição da nulidade foi tempestiva, aceite que a mesma ocorreu há apenas e só que dar cumprimento ao comando legal que é o de determinar a invalidade do acto, ou seja, a invalidade da 2ª busca ao veículo.
IV - Dispositivo
Por todo o exposto, julga-se o presente recurso provido e, consequentemente, determina-se a invalidade da busca realizada em 21.02.2018 pelas 11 horas ao veículo de matrícula ... não podendo o resultado da mesma ser usado como prova.
Dever-se-á devolver ao arguido todos os bens apreendidos, incluindo o revólver desde que o mesmo faça prova da sua propriedade e titularidade de registo e porte de arma compatível com o calibre do mesmo.
Sem custas.
Deposite e notifique.
Acórdão elaborado pelo 1.º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Mm.ª Juíza Adjunta.
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Maria Teresa Féria de Almeida
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