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 - ACRL de 18-05-2017   Exoneração do passivo restante. Valor do rendimento disponível.
I. No instituto da exoneração do passivo restante, o artigo 239° do CIRE não define o limite mínimo do valor do rendimento indisponível, o qual corresponderá apenas ao montante mínimo necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, pelo que se tem entendido que o único limite mínimo a atender é o do valor da remuneração mínima mensal garantida.
II. O valor do rendimento indisponível deve ser fixado de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto, sem perder de vista que está também em causa a satisfação dos créditos dos credores, com a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, que passará sempre por sacrifícios a assumir pelo insolvente com a necessária contenção de despesas.
III. O período de cessão tem início com o encerramento do processo de insolvência, o que, se houver bens, ocorrerá depois da liquidação, não sendo o prazo fixado no artigo 169° do CIRE um prazo peremptório que automaticamente imponha o fim da liquidação e o encerramento do processo no prazo de um ano a contar da assembleia de credores.
Proc. 2302/11.1TBOER-K.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Maria Teresa Mendes Pardal - Carlos Marinho - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Proc. n°2302/11.1 TBOER-K.L1

SUMÁRIO.
1- No instituto da exoneração do passivo restante, o artigo 239° do CIRE não define o limite mínimo do valor do rendimento indisponível, o qual corresponderá apenas ao montante mínimo necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, pelo que se tem entendido que o único limite mínimo a atender é o do valor da remuneração mínima mensal garantida.
2- O valor do rendimento indisponível deve ser fixado de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto, sem perder de vista que está também em causa a satisfação dos créditos dos credores, com a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, que passará sempre por sacrifícios a assumir pelo insolvente com a necessária contenção de despesas.
3- O período de cessão tem início com o encerramento do processo de insolvência, o que, se houver bens, ocorrerá depois da liquidação, não sendo o prazo fixado no artigo 169° do CIRE um prazo peremptório que automaticamente imponha o fim da liquidação e o encerramento do processo no prazo de um ano a contar da assembleia de credores.

Acordam na 6a Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO.
No processo de insolvência em que é insolvente A..., tendo sido requerido o benefício da exoneração do passivo restante e decretada a insolvência, veio a ser proferido o despacho inicial a que se refere o artigo 239° do CIRE, que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo e, do rendimento disponível dos credores, determinou que fosse excluído o valor correspondente a duas vezes a retribuição mínima mensal garantida em vigor, tendo ainda declarado, ao abrigo do artigo 230° n°1 e) do mesmo diploma, o encerramento do processo de insolvência unicamente para efeitos de início de cessão, excluindo os demais efeitos previstos no artigo 233°, até ser proferido despacho de
encerramento com fundamento nas alíneas a) a d) do artigo 230° n°1.

Inconformado, o insolvente interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com os seguintes argumentos:
- O valor fixado como indisponível para a cessão é inferior ao razoavelmente necessário para a dignidade do insolvente.
- Os valores considerados pelo tribunal como adequados, de 350,00 euros para habitação, de 50,00 euros para internet e de 250,00 euros para alimentação, higiene, vestuário e transportes, põem em crise a dignidade do apelante e não são suficientes para prover às necessidades demonstradas.
- Devem prevalecer e ser garantidas previamente as necessidades de sobrevivência do devedor com dignidade sobre a possibilidade de ressarcimento dos credores.
- Para a situação do apelante é adequada a exclusão do rendimento disponível de três salários mínimos, mesmo porque resta muito valor disponível para cessão aos credores.
- Sendo o processo de insolvência um processo de execução universal (artigo 1° do CIRE), devem ser respeitadas as regras da penhora previstas no artigo 738° do CPC e o valor de 1 060,00 euros fixado pelo tribunal não respeitou os limites fixados no n°1 deste artigo.
- A decisão recorrida viola, pois, o disposto na subalínea a) do n°3 do artigo 239° do CIRE.
- Quando chamado a demonstrar as suas despesas, mais de cinco anos depois da assembleia que apreciou o relatório pelo administrador de insolvência, o apelante, sem qualquer responsabilidade por este atraso, requereu ao tribunal que viesse a deferir liminarmente a exoneração do passivo com fixação do início do período de cessão em data não posterior a 1/06/2012 (um ano depois da assembleia de credores, face ao disposto no artigo 169° do CIRE).
- Não era expectável para o ora apelante que tivesse de esperar 10 anos (cinco anos de liquidação, acrescidos de mais cinco anos de cessão) para poder ver cessado o período de cessão e essa espera vicia os objectivos do instituto de exoneração do passivo.
- O apelante insolvente tem 66 anos de idade, padece de doença cardíaca e apresentou-se à insolvência na convicção de que, no seu todo, o processo teria a duração de cerca de seis anos.
- Deverá revogar-se a sentença recorrida, que deverá ser substituída por decisão que declare excluído do rendimento disponível o valor de três salários mínimos nacionais e fixe o início do período de cessão em momento não posterior a 1 de Junho de 2012.

Não há contra-alegações e o recurso foi admitido como apelação, com subida
imediata, em separado e efeito devolutivo.

As questões a decidir são:
a) Valor a excluir do rendimento disponível.
b) Data do início do período de cessão.


FACTOS.
O despacho recorrido considerou provados os seguintes factos:
a) O insolvente nasceu em 01.05.1950.
b) O agregado familiar é composto apenas por si.
c) Aufere pensão de velhice que, a partir de Outubro de 2016, terá o valor de 4 263,31 euros ilíquidos.
d) Celebrou contrato de arrendamento, no valor de 645,00 euros mensais.
e) Apresentou despesas com consumos de água, electricidade, gás, respectivamente, de 27,95 euros, 63, 92 euros e 45,98 euros.
f) Apresentou despesas de serviços de comunicações no valor de 165,00 euros mensais
g) Apresentou despesas de saúde no montante global de 1 450,00 euros, relativas ao período decorrido entre Janeiro e Setembro de 2016.
h) O seu passivo ascende a 2 838 690,41 euros.

Haverá ainda que atender aos seguintes factos:
i) A sentença que declarou a insolvência do requerente tem a data de 1 de Abril de 2011 e aí foi consignado que no requerimento inicial se estimou o passivo em 3 892 675,64 euros e o activo em 225 572,59 euros (documento de fls 56 e sgts).
j) A assembleia de credores, em que foi feita a apresentação do relatório do Administrador da Insolvência, teve lugar em 1 de Junho de 2011 (documento de fls 59 e sgts).
k) O valor estimado dos bens inventariados é de 376 366,66 euros (relatório do Administrador da Insolvência de fls 69 e sgts).
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Valor do rendimento indisponível.
Por via do incidente da exoneração do passivo, previsto nos artigos 235° e seguintes do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL 53/2004 de 18/3), no processo de insolvência do devedor singular este tem a oportunidade de ver extinto o passivo que não seja pago no processo e nos cinco anos posteriores ao respectivo encerramento, verificados que sejam determinados requisitos legais, que visam obter o ponto de equilíbrio entre o benefício concedido ao devedor e a protecção dos credores.
Uma das imposições legais para a concessão deste benefício é a obrigação, prevista no artigo 239° do CIRE, de o devedor, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, ceder o seu rendimento disponível, para ser usado no pagamento do passivo, entregando-as a uma entidade, designada fiduciário e escolhida pelo tribunal.
Desse rendimento disponível, deverá, porém, nos termos do disposto na alínea b) i) do n°3 do artigo 239°, ser excluído o que for razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
Entre o limite máximo de três salários mínimos nacionais e um limite mínimo não definido na lei, o valor do rendimento indisponível terá de ser fixado assegurando o sustento mínimo indispensável para uma sobrevivência com dignidade e atendendo às circunstâncias de cada caso concreto, encargos e despesas do devedor, passivo e bens apreendidos, mas sempre sem perder de vista que se trata de um período de contenção e sacrifício, a fim de se atingir o referido equilíbrio com os interesses dos credores.
No presente caso, ficou provado que o insolvente, nascido em 1950, aufere uma pensão de velhice no valor ilíquido de 4 263,31 euros ilíquidos, o seu agregado familiar é composto apenas por si e tem despesas com habitação, consumos de água, electricidade, gás, comunicações, sendo o seu passivo de 2 838 690,41 euros e estimando-se que o valor dos seus bens seja de 376 366,00 euros.
Assim, pese embora o considerável valor dos bens apreendidos para a massa insolvente, o valor do passivo é muito mais elevado e, apesar da sua idade e natural expectativa de uma crescente necessidade de recorrer a cuidados de saúde, o apelante não tem ninguém a seu cargo.
Face a estas circunstâncias entende-se ser adequado o valor de duas retribuições mínimas mensais garantidas, como fixado na Ia instância.
Alega o apelante que o rendimento indisponível fixado não é suficiente para as despesas que demonstrou ter.
Contudo, o período de cessão concede ao apelante a oportunidade de se libertar de um passivo (que previsivelmente não será possível liquidar na totalidade), mediante o sacrifício de, durante esse período, de cinco anos, se sujeitar a uma contenção de despesas que proporcione aos credores o pagamento de o máximo possível dos seus créditos, dentro das circunstâncias.
Para o efeito, terá o insolvente de se adaptar e, durante esse limitado período de tempo, restringir as despesas, nomeadamente no que respeita à habitação, desde que lhe seja assegurado o sustento minimamente digno, o que não equivale a manter o nível de vida que tinha anteriormente.
Alega também o apelante que o valor fixado, de duas remunerações mínimas, não respeita as regras da impenhorabilidade fixadas no artigo 738° n°1 do CPC, impondo este artigo a impenhorabilidade de dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assegurem a natureza do executado.
Está em causa efectivamente o rendimento resultante de pensão por velhice, mas, desde logo, não ficou provado o valor líquido da mesma, só se provando o montante ilíquido.
Por outro lado, não pode considerar-se aplicável esta regra do n°1 do artigo 738° ao rendimento indisponível no âmbito da exoneração do passivo.
É certo que o artigo 46° do CIRE estabelece que a massa insolvente abrange todo o património do devedor com excepção dos bens impenhoráveis, a não ser que o devedor os apresente voluntariamente, aplicando-se esta norma e, consequentemente, a do n°1 do artigo 738° do CPCE, aos bens a apreender na insolvência até ao seu encerramento (ver, entre outros, ac RL de 20/02/2012, p. 5909/10, em www.dgsi,pt).
Mas, no período de cinco anos de cessão, após o encerramento da insolvência, a fixação do rendimento indisponível rege-se por outra norma, que é a do artigo 239°, o qual, como atrás se referiu, apenas fixa como limite mínimo o sustento minimamente digno do devedor, conceito que a jurisprudência tem vindo a preencher com o valor de uma retribuição mínima mensal a que se refere o n° 3 do artigo 738, mas não o critério do n°1 do mesmo artigo (ver neste sentido ac. RG de 20/03/2014, p. 4632/12, em www.dgsi.p).
Sendo assim, o valor de duas remunerações mínimas mensais não viola as regras do artigo 738° do CPC, improcedendo as alegações do apelante nesta parte e devendo manter-se o valor fixado na la instância.

II) Data do inicio do período de cessão.
O apelante defende ainda que o início do período de cessão deve ser fixado em Junho de 2012, um ano depois da assembleia de credores, uma vez que não lhe é imputável a demora da liquidação e o atraso no encerramento do processo de insolvência, não podendo ser penalizado com mais cinco anos de sacrifício após o termo da liquidação.
A lei prevê que, só decorridos os cinco anos do período de cessão, seja proferida a decisão final de exoneração, mediante o despacho previsto no artigo 244° do CIRE, no qual se fará uma apreciação do comportamento do devedor e, caso seja verificado que este cumpriu todos os requisitos legais e obrigações que lhe foram impostas, é definitivamente concedido o benefício da exoneração do passivo, considerando-se extintos os créditos dos credores, nos termos do artigo 245°.
Extinguindo-se os créditos dos credores no fim do período de cessão, é perfeitamente justificado o sacrifício suplementar de cinco anos que o insolvente terá de fazer, para obter a consequente libertação definitiva do passivo.
Para o efeito, o despacho do artigo 239° não marca o início do período de cessão, fixando apenas as condições em que a mesma será feita, devendo iniciar-se tal período com o encerramento do processo, como resulta da redacção do n°2 deste artigo.
E o encerramento do processo pode ocorrer em momentos diferentes, previstos no artigo 230°, consoante as suas vicissitudes do mesmo, pelo que o início do período de cessão só coincidirá com o despacho do artigo 239° quando for constatada a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas e as restantes dívidas.
Havendo bens na massa insolvente, haverá que proceder-se à liquidação e só depois se encerrará o processo (neste sentido Alexandre Martins, Um Curso de Direito de Insolvência, páginas 596 e seguintes e acs RL 10/09/2015, p. 14943/10, RP de 27/02/2014, p. 5797/13, RC de 7/06/2016, p. 1145/14, 28/10/2014, p. 2544/12, RG de 7/5/2015, p. 498/14 e RE de 20/06/2013, p. 5422/10, todos em www.dgsi.pt).
Ao pretender que o início do período se situe em Junho de 2012, um ano depois da assembleia de credores, o apelante invoca o artigo 169° do CIRE, alegando que, por força deste dispositivo legal, a liquidação teria de estar finda um ano depois da referida assembleia.
O artigo 169°, sob a epígrafe prazo para a liquidação, estatui que a requerimento de qualquer interessado, o juiz decretará a destituição, com justa causa, do administrador da insolvência, caso o processo de insolvência não seja encerrado no prazo de um ano contado da data da assembleia de apreciação do relatório ou no final de cada período de seis meses subsequente, salvo havendo razões que justifiquem o prolongamento .
Da leitura deste artigo logo se conclui que não assiste razão ao apelante, pois o prazo em apreço não é um prazo peremptório em que tenha de ser feita a liquidação, mas sim dentro do qual o administrador da insolvência tem de diligenciar pelo andamento e realização da mesma, sob pena de ser destituído, o que só ocorrerá com justa causa e se não se verificarem razões que justifiquem o prolongamento, pelo que, no caso contrário, a liquidação não findará no prazo de um ano, dependendo a sua duração necessariamente dos bens a liquidar e das vicissitudes do processo.
Não pode, portanto, fixar-se o início da cessão na data pretendida pelo apelante, improcedendo, também nesta parte, as suas alegações.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela massa.
Lisboa, 2017-05-18
Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho
Anabela Calafate
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