Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Cível
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 23-01-2007   Responsabilidade civil do Estado por actos jurisdicionais praticados em processo criminal. Acusação e pronúncia alegadamente infundadas. Pressupostos da obrigação de indemnizar nos termos do art. 22º da CRP.
1 - A responsabilidade civil do Estado por prejuízos decorrentes da prática de actos inseridos na função jurisdicional (in casu, acusação e pronúncia), nos termos do artº 22º da Constituição, apenas emerge quando se prove que os seus autores actuaram de uma forma dolosa, de um modo arbitrário, porque sustentado em premissas inexistentes ou absurdas ou com erro, que na altura em que os actos foram praticados, se evidenciava notório, crasso ou palmar.

2 - Os erros na apreciação de indícios e na qualificação jurídica dos factos, eventualmente cometidos numa acusação ou num despacho de pronúncia, só serão fundamento de responsabilidade civil quando sejam grosseiros, evidentes, crassos, palmares, indiscutíveis, e de tal modo graves que tornem as decisões claramente arbitrárias, assentes em conclusões absurdas.

3 - A apreciação e qualificação da acusação e da pronúncia como dolosas, grosseiras ou arbitrárias, hão-de ser feitas tendo por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na altura em que tais actos processuais foram praticados, sendo, em princípio, irrelevante, para tal constatação, o facto de, mais tarde, o arguido ter vindo a ser despronunciado ou absolvido por, entretanto, haverem surgido novas provas que afastaram a sua anterior indiciação.

4 - O prazo de caducidade de 1 ano previsto no art. 226º nº 1 do CPP não se aplica ao exercício do direito à indemnização por prejuízos resultantes de outros actos jurisdicionais que não a prisão ilegal ou infundada a que alude o art. 225º do mesmo Código.

5 - O prazo de prescrição do direito fundado em actuação de intervenientes em processo criminal apenas começa a correr a partir da data do trânsito em julgado da respectiva sentença.
Proc. 7348/06 1ª Secção
Desembargadores:  Carlos Moreira - Maria do Rosário Morgado - Isoleta Almeida Costa -
Sumário elaborado por Boaventura
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Processo 7348/2006-1

Sumário elaborado pelo Desembargador Relator:

I. Constatada a inexistência de um prazo de caducidade para a propositura de uma acção decorrente da consagração legal de um direito, não pode considerar-se que existe uma lacuna na ordem jurídica, a integrar nos termos do artº 10º do CC, já que a lei, ao não fixar prazos gerais de caducidade, versus o que sucede com a prescrição, admite a possibilidade da sua inexistência para certas situações, não podendo, assim, tal falta considerar-se uma imcompletude ou falha do sistema jurídico, necessárias à verificação da lacuna.
Em tais casos deve ser aplicado o prazo de prescrição, especial ou geral, previsto para a situação mais atinente com o direito que se pretende judicialmente proteger, pois que ambas as figuras -caducidade e prescrição - prosseguem a defesa dos mesmos valores: o da certeza e o da segurança;

II. O prazo de prescrição do direito fundado em actuação de intervenientes em processo criminal, apenas começa a correr a partir da data do trânsito em julgado da respectiva sentença.

III. O tribunal apenas tem o dever de emitir pronúncia sobre as questões essenciais decidendas, perspectivadas em função do pedido formulado, e não já decidir sobre todos os argumentos, razões ou fundamentos, mais ou menos adjuvantes e circunstanciais, invocados pelas partes para sustentarem aquelas questões e sufragarem este pedido.

IV. A responsabilidade civil do Estado por prejuízos causados, nos termos do artº 22º da Constituição, apenas emerge quando se prove que os seus órgãos ou agentes actuaram de uma forma dolosa, de um modo arbitrário porque sustentado em premissas inexistentes ou absurdas ou com erro, que na altura em que os actos foram praticados, se evidenciava notório, crasso ou palmar.



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1.

O A. intentou contra o Estado Português acção declarativa de condenação com processo ordinário.

Alegou, em síntese:
Em processo crime, foi contra si deduzida acusação que pelo MP pelos crimes de peculato e de violação de normas de execução orçamental o que veio a ser corroborado pelo subsquente despacho de pronúncia do Sr. Juiz de Instrução Criminal no processo n.º 76/99.que correu termos na 3ª Vara criminal, 3ª secção.
Que a acusação e a pronúncia foram proferidas sem que dos autos constassem indícios da prática de tais factos, e por isso, em violação grosseira de regras jurídicas.
Que tais factos tiveram grande repercussão na comunicação social e atingiram a sua honra, dignidade, bom nome e imagem bem como da sua família, causando-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais.
Pediu:
A título de indemnização por tais danos, a condenação do Estado a pagar-lhe a quantia de Euros. 982.500,00, acrescido de juros de mora desde a data da citação até efectivo pagamento.

Regularmente citado contestou o réu.
Por excepção invocou a incompetência do Tribunal em razão da matéria, a caducidade e a prescrição.
Mais impugnou os factos alegados pelo A. na PI.

Houve réplica na qual o autor manteve a sua posição inicial.


2.

Foi proferido despacho saneador que conheceu as excepções deduzidas e as desatendeu.

2.1.
Tendo o réu interposto recurso que, no atinente às duas últimas excepções, foi admitido como de apelação e a subir a final.

Terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

Quanto à excepção de caducidade
1 – Caso se entenda, como pretende o Autor( cfr. o artº 364º da p.i.) que o comando resultante do artº 22º da Constituição da República abrange quaisquer danos ilícitamente provocados no âmbito da actividade judiciária, então e perante o direito ordinário, teria de recorrer-se ao mecanismo de integração de lacunas da lei, visto inexistirem normas jurídicas que directamente prevejam e concretizem o direito ora accionado.
2 – Alegando o Autor que foi ilicitamente lesado em consequência de pretensos factos ilícitos praticados com manifesta ilegalidade e/ou erro grosseiro por uma magistrada do Ministério Público no âmbito da constituição do Autor como arguido e de um despacho de acusação penal, bem como em consequência de pretenso facto ilícito cometido com manifesta ilegalidade e/ou erro grosseiro por uma magistrada judicial em despacho de pronúncia, o único caso similar concretamente regulado na lei ordinária é o previsto nos arts. 225º e 226º ambos do Cód. de Processo Penal.
3 – É, pois, de rejeitar a tese de que o prazo para o exercício do direito de indemnização por ilícito exercício da actividade judiciária – “in casu” por supostamente indevida constituição de arguido, dedução de acusação e despacho de pronúncia – deva ser o prazo geral do artº 498º do Cód. Civil.
4- O artº 22º da Constituição da Republica Portuguesa estabelece o principio geral da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas pelos actos dos seus orgãos, funcionários e agentes remetendo para a lei ordinária a determinação dos requisitos que condicionam os vários tipos de responsabilidade das funções do Estado.
5- Por seu turno, os arts. 225º e 226º ambos do Cod. de Processo Penal prevêem os requisitos da responsabilidade civil do Estado quando estiver em causa uma detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos de facto.
6- O conteúdo dos arts. 225º e 226º do Cód. de Processo Penal em nada contraria, em nada se opõe, ao regime-regra contemplado no artº 22º da Constituição da Republica Portuguesa.
7- As disposições contidas nos arts. 225º e 226º do Cód. de Processo Penal não são excepcionais, mas especiais em relação ao artº 22º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, podem ser aplicadas analógicamente – cfr. o artº 11º do Cód. Civil “a contrario”.
8- A aplicação analógica do artº 226º, nº 1, do Cod. de Processo Penal à situação invocada pelo Autor determinaria que aquela norma passasse a ter o seguinte conteúdo :“o pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o Autor foi definitivamente absolvido no âmbito do processo em que foi constituído arguido, acusado e pronunciado”.
9- “ In casu” a decisão definitiva no processo penal ocorreu com o trânsito em julgado da sentença absolutória , o que sucedeu em 23 de Janeiro de 2001.
10- A presente acção deveria, portanto, ter sido instaurada até 23 de Janeiro de 2002; como, porém, só o foi em 15 de Janeiro de 2004, nesta data já se esgotara o sobredito prazo de caducidade de um ano.
11- Havia, assim, que julgar provada e procedente a excepção peremptória de caducidade do exercício do direito do Autor e, consequentemente, absolver-se o Réu do pedido – artº 493º, nº 3, do Cód. Civil.
12- Ao desatender tal excepção a douta decisão recorrida infringiu o preceituado nos arts. 225º e 226º, nº 1, ambos do Cód. de Processo Penal com referencia aos arts. 22º da Constituição da República Portuguesa e 11º “ a contrario” do Cód. Civil.

Quanto à excepção de prescrição:
13- Os factos ilícitos alegadamente praticados pela magistrada do Ministério Público e pela magistrada judicial foram cometidos e conhecidos do Autor bem mais de três anos antes da data de propositura da presente acção.
14- Pelos menos logo que transitou em julgado o despacho de pronúncia, o que sucedeu, pelo menos, em 4 de Maio de 2000, nasceu o alegado direito à indemnização do Autor, pois a partir daí o mesmo tomou conhecimento, na sua perspectiva, de todos os pressupostos da responsabilidade civil que ora veio invocar em juízo; nada obstava, assim, a que a partir daí, o Autor exercesse judicialmente tal direito (e para efeitos do disposto no artº 306º, nº 1, do Cód. Civil).
15- Uma vez que toda a actuação ilícita que o Autor atribui às mencionadas magistradas, assim como o inicio da produção dos danos resultantes daquela actividade, bem como o seu conhecimento por banda do Autor, tiveram lugar, pelo menos, em 4 de Maio de 2000, logo, mais de três anos antes da data da propositura da presente acção, instaurada em 15 de Janeiro de 2004, o direito à indemnização alegado pelo Autor encontra-se prescrito, nos termos do artº 498º, nº 1, do Cód. Civil.
16 - Esta orientação não conduziria a soluções contraditórias no âmbito das jurisdições cível e criminal pois a tal obstaria o mecanismo da suspensão da instância previsto no artº 279º, nº1, do Cód. de Processo Civil.
17- Deveria, assim, julgar-se provada e procedente a excepção peremptória da prescrição do direito à indemnização pretendido pelo Autor e, consequentemente, absolver-se o Réu do pedido – artº 493º, nº 3, do Cód. de Processo Civil.
18- Ao desatender a invocada excepção, a douta decisão recorrida infringiu o disposto no artº 498º, nº 1, do Cód. Civil.

2.2.
Contra-alegou o autor terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
a)Está em causa neste processo a responsabilidade do Estado pelo exercício da função jurisdicional, directamente decorrente do artº 22º da C.R.P..
b)Não estando previsto, em qualquer lei especial, o prazo para o lesado accionar essa responsabilidade, aplicam-se ao presente caso as regras gerais dos artºs 483º e segs. do Código Civil sobre a responsabilidade civil por factos ilícitos.
c)Entre essas regras está a do artº 498º do Código Civil que estabelece o prazo de prescrição do direito de indemnização.
d)Existindo lei expressa sobre a matéria, não há que colocar a questão do recurso à analogia.
e)Não existindo qualquer norma legal a fixar um prazo especial para acções de responsabilidade por factos ilícitos no exercício da função jurisdicional do Estado, aplica-se a regra geral sobre a responsabilidade civil por factos ilícitos;
f)e esta regra, quanto ao prazo para o exercício do direito à indemnização, é a do artº 498º do C. Civil.
g)O M.P., na sua argumentação, defende o carácter não excepcional dos artºs 225º e 226º do C.P.P., e recorreu ao artº 10º do Código Civil para sustentar a aplicação analógica ao caso daqueles preceitos legais, ignorando o comando expresso no artº 11º deste mesmo Código e passando por cima da natureza excepcional dos artºs 225 e 226º do C.P.P., que regulam o caso específico da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada, referido no Nº 5 do artº 27º da Constituição.
h)A situação em apreço, cabe, assim, nas regras gerais sobre responsabilidade civil extracontratual, tese subscrita pelo acórdão da Relação de Évora de 03.10.02 (CJ XXVII, 4, 239).
i)Em relação ao prazo de prescrição, o M.P. sustenta que o prazo de três anos para efeitos de prescrição deve contar-se a partir da prática dos actos que o A. qualifica como ilícitos: a acusação contra si deduzida pelo M.P., a sua constituição como arguido e a pronúncia contra si deduzida.
j)A argumentação do R. conduz a soluções aberrantes, que põem em causa o bom funcionamento do sistema de justiça.
k)A primeira e fundamental razão da ilicitude dos actos que constituem a causa de pedir reside no facto de o A. não ter praticado os crimes por que foi acusado e pronunciado.
l)Só com o trânsito da decisão proferida pela 3ª Vara Criminal de Lisboa (3ª Secção, processo Nº 76/99) proferida em 08.01. 01 e transitada em 23.01.01, ficou judicialmente reconhecido que o A. não cometeu qualquer crime pelos factos por que foi acusado e pronunciado.
m)O direito à indemnização, porque tem como um dos pressupostos que o A. não cometeu os crimes por que foi acusado e pronunciado, só nasce com o reconhecimento judicial desse pressuposto, como parece óbvio.
n)Só, pois, com a decisão definitiva do processo que correu contra o arguido, ora A., se radicou na esfera deste o direito a ser indemnizado.
o)Além de não respeitar a lei, a posição do M.P. conduziria também a soluções aberrantes;
p)conduziria a que, quem se considerasse acusado ou pronunciado por erro grosseiro, tivesse de instaurar a competente acção de responsabilidade civil contra o Estado, antes ainda de a sua inocência ter sido declarada pelos Tribunais;
q)conduziria à situação verdadeiramente extraordinária que seria a de dois Tribunais estarem a discutir em simultâneo os mesmos factos e o mesmo direito: um deles (o Tribunal Criminal), a julgar o arguido no processo-crime pelos factos da acusação e pronúncia e outro (o Tribunal Cível) a julgar se o M.P. e o juiz de Instrução cometeram erros ao deduzirem essa acusação e a pronúncia, em acção instaurada pelo arguido no processo-crime contra o Estado.
r)E pelos mesmos motivos se discorda totalmente, por irracionais, dos argumentos invocados pelo R. na parte VI das suas alegações e Nº 16 das conclusões quanto à utilização do mecanismo da suspensão da instância. Isso levaria a que todos os arguidos que se julgassem ilicitamente perseguidos tivessem de instaurar, à cautela, e na pendência do processo crime, acção de indemnização para a hipótese de virem a serem absolvidos. O que o M.P. defende não é mais do que uma multiplicação de processos, absurda e até atentatória da racionalidade que deve presidir à acção do Estado e da boa administração da Justiça.
s)Pelo exposto, deverá julgar-se improcedentes as excepções de caducidade e de prescrição deduzidas pelo R., e confirmar-se a douta decisão recorrida.


3.

No seguimento dos autos procedeu-se a julgamento tendo-se respondido à matéria de facto quesitada pela forma exarada a fls. 570 a 590 e proferida sentença, que, julgando a acção improcedente, absolveu o réu do pedido.

4.

Inconformado apelou o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ªO A. exerceu o cargo de (...) (alínea A) da matéria Assente).
2ªEm 15 de Maio de 1996 o A. foi acusado pelo MP nos termos constantes da Alínea E) do Factos Assentes;
Basicamente o A. foi acusado de ter proferido cinco despachos autorizando complementos remuneratórios a funcionários da Direcção Geral do Desporto que o M.P. considerou ilegais e de o ter feito conluiado com os funcionários que elaboraram as propostas, de modo fraudulento, pretendendo esconder os pagamentos da DGCP e do Tribunal de Contas e de ter agido mediante “acordo prévio” e “comunhão de esforços” com os mesmos funcionários, com o objectivo de beneficiar os funcionários a quem foram feitos os complementos remuneratórios.
3ªO A. requereu a Abertura de Instrução, tendo sido realizada instrução que culminou com a Pronúncia do A. pelo crime de peculato p. e p. pelo artº 14º da Lei Nº 34/87, de 16.07.
4ªSubmetido a julgamento, veio o A. a ser absolvido, nos termos da sentença da 3ª Secção da 3ª Vara Criminal de Lisboa que parcialmente se encontra reproduzida nas alíneas N) e O) dos Factos Assentes.
5ªFicaram provados, em matéria de danos, os seguintes factos: Nºs 16º, 17º, 18º, 19º 20º, 21º e 22º da Matéria Assente e 24º a 33º da Base Instrutória.
6ªO A. responsabiliza o Estado pela conduta ilícita e culposa do M.P. e do T.I.C. que o acusaram e pronunciaram por crimes que não cometeu, sendo certo que a Acusação e a Pronúncia lhe provocaram os gravíssimos danos morais e materiais dados como provados.
7ªEm termos sintéticos, o A. imputou às magistradas do M.P. e do T.I.C. os seguintes erros na apreciação dos factos e do Direito:
(I)A desconsideração pelo M.P., dos antecedentes dos cinco despachos proferidos pelo arguido que por si só demonstravam, no mínimo, que o A. não podia ter consciência de que os pagamentos autorizados fossem ilegais (vide Nºs 13 a 16 da presente alegação);
(II)a imputação pelo M.P. ao A. de factos absolutamente inventados (os factos constantes dos Nºs 103 a 108 , 120 a 123, 452, 454, 455, 472, 473 e 474) da Acusação, de que não existiam quaisquer indícios objectivos; designadamente, o conluio com os funcionários autores das propostas para se apropriarem das verbas em benefício de terceiros, o “prévio acordo” com os mesmos nesse sentido, o conluio com tais funcionários no propósito de esconderem os pagamentos do D.G.C.P. e do Tribunal de Contas e de os dissimularem através de artifícios fraudulentos, de ficcionar subsídios, o propósito de beneficiar ilegitimamente as pessoas que receberam os complementos remuneratórios, etc. (Nºs 18 a 37 da presente alegação)
(III)de ignorar o disposto no artº 36º Nº 1 do Decreto 22257 de 25 de Fevereiro de 1933, que impedia a acusação contra o arguido, pelo menos pelo crime de violação de normas orçamentais, não obstante ser esta a posição do M.P. no Tribunal de Contas; (Nºs 38 a 43 e 114 a 117 desta alegação)
(IV)de acusar o A. por um crime manifestamente prescrito, através de um expediente interpretativo inadmissível num magistrado; (Nº 159 desta alegação)
(V)a dedução pelo M.P. de um pedido cível contra o A. ininteligível e absurdo, com erros grosseiríssimos de aritmética e de direito (Nºs 47 e 48 desta alegação)
(VI)de requerer o julgamento conjunto do A. com os restantes arguidos, em manifesta e frontal violação do disposto no artº 42º da Lei Nº 34/87, afrontando a jurisprudência sobre a questão, violando o disposto no artº 24º do CPP, utilizando para o efeito argumentos manifestamente infundados e intentando, com o julgamento conjunto, submeter o A. a uma humilhação e a um tratamento injusto e desproporcionado; (Nºs 49 a 50 e 156 a 158 desta alegação)
(VII)de proceder a uma interpretação e aplicação do tipo de crime de peculato inadmissível, desprezando o ensinamento da doutrina e da jurisprudência sobre o tema; (Nºs 44 e 118 a 125 desta alegação)
(VIII)realizada a Instrução, quer a Magistrada do M.P., quer a Exmª Juíza de Instrução desconsideraram a esmagadora prova produzida, que demonstrou:
a)que o arguido agiu na plena convicção de que os pagamentos por si autorizados eram perfeitamente legais;
b)que tais pagamentos tinham sido instituídos há mais de dez anos no Ministério pelos seus antecessores, constituindo verdadeiros direitos adquiridos dos seus beneficiários;
c)que o Tribunal de Contas conhecia a situação e que por sua intervenção tinha sido alterada a rubrica orçamental em que os pagamentos passaram a inscrever-se;
d)que os juristas do Ministérios da Educação consideravam tais pagamentos perfeitamente legais;
e)que o Tribunal de Contas conhecia situações deste tipo, que o Prof. Sousa Franco designou por “organigramas de factos” sem que as considerasse susceptíveis de envolver responsabilidade;
f)que eram falsas as imputações de “conluio”, de “prévio acordo”, de propósito de esconder os actos das entidades inspectivas e o propósito de beneficiar indevidamente os funcionários que receberam os complementos remuneratórios;
g)que os únicos factos verdadeiros da Acusação eram os despachos do A.;
h)que “era generalizado e pacifico o entendimento de que o processamento das aludidas diferenças remuneratórias era inteiramente legal” (vide depoimento do Dr. José Augusto Troni a fls. 9460 e segs. do processo crime).
(IX)Ambas as magistradas ignoraram o disposto no artº 36º Nº 1 do decreto 22257, não obstante a defesa e o Prof. S. terem repetidamente chamado a atenção para a sua aplicação ao caso concreto;
(X)Ambas desconsideraram os ensinamentos dos Professores Figueiredo Dias e Teresa Pizarro Beleza que, em pareceres juntos ao processo, demonstraram a inexistência dos elementos do crime.
(XI)No Debate Instrutório, a magistrada do M.P. leu o papel junto a fls 10808 e segs. do processo crime, revelador de um absoluto desprezo pelos factos, pelas provas e pelos argumentos apresentados durante a Instrução, não se tendo dignado sequer comentar ou contradizer as teses da defesa.
(XII)A decisão instrutória, ao pronunciar o A. pelo crime de peculato, praticou os mesmos erros e omissões imputados ao M.P. e ainda acrescentou vários outros; violou o principio da presunção de legalidade dos actos administrativos, procedeu à apreciação da legalidade dos despachos do A., para a qual não tinha competência, não respeitando o disposto no artº 7º Nº 2 do CPP e invadindo a competência do Tribunal de Contas (artº 214º Nº 1 da CRP) e dos Tribunais Administrativos (artº 212º da CRP); cometeu ainda os erros explicitados nos Nºs 136 a 142 desta alegação.
8ªAs acções e omissões ilícitas imputadas ao M.P. e ao T.I.C. são demasiadas e demasiado graves para não serem qualificadas como “culpa grave”; na verdade, eles indiciam um comportamento sistemático de falta de rigor, de aparente expressão de um justicialismo persecutório, de desrespeito continuado da Lei e dos princípios constitucionais que regem o processo penal, de violação do direito fundamental da presunção de inocência, de ignorância crassa das regras de experiência comum e até – como no caso do pedido cível deduzido pelo M.P. contra o A. – de ofensa à inteligência mínima exigida a alguém que exerce uma função do Estado. Tais acções e omissões violaram, para além dos preceitos legais citados, o disposto no artigo 283º Nº 1 (falta manifesta de indícios), 298º e 308º, todos do C.P.P. e bem assim o artigo 32º Nºs 1, 2 e 5, artigo 35º Nº 1 (direito à integridade moral) e artigo 26º, todos da C.R.P..
9ªO comportamento do M.P. e do T.I.C. revela mesmo uma ruptura com o entendimento comum da natureza da função administrativa dos membros do Governo e das regras da organização administrativa do Estado, como o explicaram inúmeras e qualificadas testemunhas.
10ªA decisão objecto do presente recurso, seleccionou, dentre as várias questões suscitadas pelo A., apenas algumas delas, deixando de se pronunciar sobre outras igualmente relevantes.
11ªA culpa grave -- para não falar em dolo -- com que actuaram as magistradas responsáveis pelas Acusação e Pronúncia, não resulta de um ou dois erros na apreciação dos factos e na resolução das questões de direio que a defesa do A. levantou no processo-crime em causa.
A culpa grave deve ser apreciada à luz do conjunto de eros e faltas que, conjugadamente, provocaram ao A. os gravíssimos e irreparáveis danos morais e materiais dados como provados na decisão sobre a matéria de facto neste processo.
12ªO método correcto de analisar e decidir sobre o grau de culpa do Tribunal que acusou e pronunciou o A. só pode assentar na consideração de todas as faltas que, conjugadamente, produziram o resultado danoso.
13ªNão se tendo pronunciado sobre as questões enumeradas nos Nºs 149, 150 e 151 desta alegação, a sentença incorreu na nulidade prevista no artº 668º Nº 1, d) do C.P.C., que se arguí para todos os efeitos legais.
14ªNão colhem os argumentos da douta decisão recorrida de que os erros cometidos não são suficientemente graves para configurarem responsabilidade do Estado, argumentos que se refutaram, ponto por ponto, nos Nºs 156 a 193 desta alegação, que aqui se dão como reproduzidos.
15ªDecorre do disposto no artº 22º da CRP que o Estado responde, nos termos gerais da responsabilidade civil extra-contratual, pelas acções e omissões praticadas no âmbito da actividade do M.P. e dos Tribunais de que resulte a violação dos direitos liberdades e garantias ou prejuízos para outrem.
16ªO entendimento da decisão recorrida, segundo a qual a responsabilidade do Estado por acções ou omissões ilícitas e culposas dos magistrados do M.P. e judiciais apenas existe em casos de “erro crasso”, “erro grosseiro”, ou seja, de “culpa grave”, viola a letra e o espírito daquele preceito constitucional.
17ªA mesma conclusão deriva do regime previsto nos artºs 202º, 203º e 216º da Constituição e do artº 5º Nº 3 do EMJ, segundo o qual a responsabilidade dos juízes só pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado, com fundamento em dolo ou culpa grave; ou seja, apenas a responsabilidade dos juízes, não a do Estado, exige o dolo ou a culpa grave.
18ªUma norma que restringisse a responsabilidade do Estado aos casos de dolo ou culpa grave, bem como o entendimento normativo assumido na decisão recorrida, violam o disposto no artº 22º da CRP e bem assim as normas e princípios constitucionais que garantem direitos fundamentais.
19ªEm qualquer caso, os comportamentos do M.P. e do TIC, além de ilícitos, por violarem direitos fundamentais do A. e as normas citadas, não podem deixar de qualificar-se como de 'culpa grave', tendo provocado ao A. os danos provados.
20ªVerificam-se, assim, todos os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por factos ilícitos.
21ªTermos em que deverá a douta sentença ser revogada, condenando-se o Estado no pedido formulado pelo A.

Contra-alegou o réu, pugnando pela manutenção do decidido.


5.
Sendo que, por via de regra – de que o presente caso não é excepção –, o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

Caducidade da acção.

Prescrição do direito do autor.

Nulidade da sentença por falta de apreciação de questões que lhe foram colocadas, nos termos do artº 668º nº1 al. d) do CPC.

Verificação, ou não, in casu, dos pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Estado ao abrigo do artº 22º da Constituição.

6.

Os factos dados como provados na 1ª instância foram os seguintes:

1.1.O A. exerceu o cargo de (...) no IX Governo Constitucional, durante a legislatura de 1987-91, entre 17 de Agosto de 1987 e 31 de Outubro de 1991.
1.2.Em 10 de Março de 1995 foi recebida na Procuradoria-Geral da República uma denúncia anónima, com o título 'Para onde vão os dinheiros do INDESP', onde se descrevem fraudes em compras em nome do INDESP em proveito próprio de alguns funcionários deste organismo.
1.3.O escrito anónimo foi enviado ao DIAP, tendo sido mandado remeter para distribuição como inquérito, tendo o processo seguido os seus trâmites nos termos do processo cuja apensação foi ordenada e que se mostra junto.
1.4.Em 15 de Maio de 1996, foi deduzida acusação contra A, B, C, ... (21 arguidos).
1.5.
1.6.São os ss. os artigos da acusação que, directa ou indirectamente, respeitam ao A.:

O 1.º arguido (F...) foi nomeado director-geral dos Desportos em ...., tendo tomado posse em ...,


Tendo, a partir da mesma data, sido nomeado Presidente do Conselho Administrativo (CA) do Fundo de Fomento do Desporto (FFD).

À data a Direcção Geral dos Desportos (DGD) regia-se pelo D.L n.º 553/77 de 31.12, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 63/78 de 29.09, tendo por atribuições 'o fomento e a orientação da prática gimnodesportiva e a criação de condições técnicas e materiais necessárias ao respectivo desenvolvimento'.

Não tinha autonomia administrativa ou financeira estando dependente da 11ª Repartição da Contabilidade Pública para a realização de despesas.

O Fundo de Fomento do Desporto foi criado pelo decreto-lei no 46449 de 23 de Julho de 1965 e reestruturado pelo DL 193/73 de 30 de Abril, sendo um organismo com personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira.

Tinha por objectivos gerais '...prestar apoio financeiro às actividades oficiais de promoção da educação física e do desporto, incluindo a concessão de subsídios...'.
10º
Através do despacho 6/78 de 16.02 (DR II Série) com as alterações que lhe foram introduzidas pelo despacho 7/82 de 17.08 (DR II Série), e na sequência do previsto no DL 143/93 foi regulamentada a Comissão Organizadora das Actividades Desportivas (COAD) Central e as Comissões Organizadoras da Actividade Desportiva Regionais (CORADs).

11º
As receitas destas comissões eram constituídas '... pelos subsídios que lhes foram atribuídos através dos orçamentos ordinário e extraordinário da DGD ou do FFD...'.
22º
Também no ano de 1989 o 1º e o 2º (F, G) arguidos decidiram entre si atribuir a alguns funcionários da DGD bem como aos delegados distritais 'compensações' patrimoniais alegando terem essas compensações por base uma equiparação dos delegados a directores de serviço e uma diferença de vencimentos entre o cargo do funcionário e a função que, alegadamente, diziam exercer.
23º
Para que pudessem concretizar tal propósito tornava-se necessário dar uma aparência formal de regularidade ao processo de pagamento.
24º
Assim, o 2º arguido elaborou, em 20.03.89, a proposta 687/DSA/89, prevendo o pagamento nesse ano, de Esc. 19.787.000$00 aos funcionários da DGD, correspondente à alegada diferença entre a remuneração do cargo que detinham e as funções supostamente exercidas (fls. 32 do apenso 29).
25º
Tal proposta obteve parecer favorável do 1° arguido, em 21.04.89 vindo a ser aprovada por despacho do 3.º arguido (o A.) de 05.05.89.
33º
... em 1990 o 2º arguido elaborou, a proposta 58/DSA/90, prevendo o pagamento nesse ano, de Esc. 27.132.000$00 aos delegados distritais, correspondente, nuns casos, à diferença entre a remuneração do cargo que estes auferiam e a categoria de director de serviços e, nos casos em que não tinham qualquer vínculo à DGD, ao vencimento integral de director de serviços (fls. 158 do apenso 62).
35º
Tais propostas obtiveram pareceres favoráveis do 1º arguido, respectivamente em 29.01.90 e em 21.02.90, vindo a ser aprovadas por despachos de 29.01.90 e de 28.02.90, do 3º arguido.
40º
Com referência ao ano de 1990, os dois primeiros arguidos efectuaram o pagamento global de Esc. 59.777.600$00, sendo que deste montante fora aprovado pelo 3º arguido o de Esc. 54.240.000$00.
41º
Prosseguindo a prática acima descrita, em 1991, o 2° arguido elaborou a proposta 730/DSA/91, referente a funcionários e a proposta 729/DSA/91, referente a delegados, as quais, após parecer favorável do 1º arguido, foram autorizadas pelo 3º arguido, por despachos de 15.04.91 (fls. 407 e 412 do apenso 29).
49º
Assim e no que se reporta ao ano de 1991, foram pagas as quantias de Esc. 44.925.940$00 a funcionários da DGD e de 35.318.162$00 a delegados, num total de 80.244.102$00, deste montante tendo sido aprovado pelo 3º arguido o pagamento de Esc. 74.223.362$00.
103º
Todas estas quantias foram propostas, aprovadas, autorizadas e pagas pelos sete primeiros arguidos (agindo os 4º a 7º arguidos como vogais do CA/FFD), sabendo que as mesmas não eram devidas e que não tinham fundamento legal.
105º
Para obviar a que tal viesse ao conhecimento quer da Direcção Geral da Contabilidade Pública (DGCP) quer do Tribunal de Contas, os arguidos decidiram entre si efectuar esses pagamentos como se de subsídios à COAD-Central e às CORADs se tratassem.
106º
Estas Comissões procediam depois ao pagamento, aos funcionários abrangidos e aos delegados distritais, respectivamente.
107º
Tal artifício tinha por fim, como se disse, ocultar os pagamentos efectuados e obviar a uma verificação das contas do FFD.
108º
Na ausência de previsão legal para tais pagamentos nos orçamentos respectivos os três primeiros arguidos decidiram inscrevê-los em rubricas que, embora soubessem não podiam comportar esses pagamentos, porque ilegais, eram susceptíveis de melhor os dissimular no conjunto dos gastos de cada instituição.
120º
Ao inscreverem os montantes que largamente distribuíram em códigos orçamentais diferentes, ao elaborarem minutas de recibos que sabiam não corresponder à realidade e ao efectuarem pagamentos como se de subsídios se tratassem, os 1º e 2º arguidos, pretendiam ocultar a sua conduta de entidades inspectivas, ocasionando um prejuízo avultado ao Estado.
121º
Com tal intuito actuou ainda o 3.º arguido, autorizando que os pagamentos efectuados em 1990 e 1991 o fossem sob a forma de subsídios fictícios a atribuir às Comissões Organizadoras.
122º
Sabendo ainda o 3.º arguido que, (...), lhe incumbia cumprir de forma isenta, as normas orçamentais, o que não fez,
123º
Contraindo encargos que sabia serem ilegais e não estarem previstos no Orçamento do Estado, nem no orçamento do FFD.
452º
Os 1º a 12º, o 15º e o 19º arguidos agiram com o propósito de beneficiarem indevidamente terceiros disponibilizando quantias avultadas para esse efeito e de fazerem coisa sua de dinheiro do Estado a que sabiam não ter direito,
454º
Os 1.º a 7.º, 10.º, 11.º arguidos sabiam que pelas funções que desempenhavam tinham a obrigação de zelar pela boa gestão dos dinheiros públicos que lhes estavam confiados e cuja administração lhes competia, o que não fizeram.
455º
O 3.º arguido, sabia que por inerência do cargo que ocupava (...) estava obrigado a cumprir as normas orçamentais e, com perfeita consciência da ilegitimidade das disposições patrimoniais que lhe eram propostas autorizou que fossem efectuados pagamentos não previstos no Orçamento do Estado e das Instituições dependentes do seu Ministério.
472º
Os arguidos para levarem a cabo os seus intentos agiram de forma concertada mediante prévio acordo e em comunhão de esforços.

473.º
As condutas dos arguidos materializaram-se na prática de actos de natureza semelhante, sendo certo que o êxito inicialmente alcançado, a permanência das circunstancias que o determinaram e o sentimento de impunidade daí resultante contribuíram decisivamente para o prolongamento no tempo de tais condutas.
474.º
Os arguidos agiram sempre deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas não lhes eram permitidas.”

1.7.Com base no aludido, o A. foi acusado da prática de um crime p. e p. pelo art.º 20.º/1 da Lei 34/87, de 16.07 e de um crime p. e p. pelo art.º 14.º da Lei 34/87 de 16.07.
1.8.Nas informações e propostas apresentadas ao A. declara-se que as transferências nelas previstas vinham sendo praticadas anteriormente:
“julgam-se de autorizar, uma vez mais ... “ proposta 687/DSA/89;
“mantêm-se as situações já expostas em anos anteriores (Doc. N.º 1)” -- proposta 687/DSA/89;
“Nesta circunstância, e por analogia com o processo adoptado em anos anteriores” -- propostas 132/DSA/90, e 730/DSA/91;
1.9.A prática vinha do Secretário de Estado do Governo anterior, tratando-se de um regime seguido há cerca de 5 anos.
1.10.A proposta e o parecer que mereceram o despacho de concordância do Secretário de Estado à época foram os que se seguem:
“Por razões de orgânica dos Serviços e por carências de titulares próprios para o desempenho dos cargos, foram cometidas a alguns funcionários atribuições superiores às do seu próprio cargo, que aliás têm vindo a desempenhar com mérito e competência.
A exemplo do que tem acontecido em anos anteriores, considera-se de toda a justiça, que lhes seja atribuída uma compensação correspondente à diferença entre a letra da respectiva categoria e a do cargo que efectivamente exercem.
Nesta conformidade, propõe-se que sejam liquidadas as diferenças mensais, desde 1 de Janeiro p.p., como se indica, por funcionários com pagamento através de concessão do subsídio à COAD/Central de Esc.: 2.500.600$00 devidamente cabimentado no código 41.00 do Orçamento do Fundo de Fomento do Desporto, para 1985.
V. Exª decidirá.”
1.11.Sobre esta proposta, foi emitido parecer do director-geral, no qual ele refere tratar-se de “Regime institucionalizado há cerca de 5 anos”.
1.12.Terminada a instrução, veio a realizar-se debate instrutório, em 11 de Dezembro de 1998 (cfr. fls. 10838 do processo apenso), tendo o A. sido pronunciado, assinaladamente, nos ss. termos:
“(...) os pagamentos das compensações aos funcionários seriam efectuados sob a capa da concessão de um subsídio pago pelo FFD à Comissão Organizadora da Actividade Desportiva (COAD) Central.
25º)
No ano de 1991, foram pagas as quantias de Esc. 38.905.200$00 a funcionários da DGD e de Esc. 35.318.162$00 a delegados distritais, num montante total de Esc. 74.223.362$00, montante esse aprovado pelo arguido F;

26º)
O pagamento de todas estas quantias foi autorizado pelo arguido F, bem sabendo que as mesmas não eram devidas e que não tinham fundamento legal;
27º)
Para obviar a que tal viesse ao conhecimento quer da Direcção Geral da Contabilidade Pública (DGCP), quer do Tribunal de Contas, o arguido F autorizou que esses pagamentos se efectuassem como se de subsídios à COAD-Central e às CORADs se tratassem;
(...)
29º)
Tal artifício tinha por fim ocultar os pagamentos efectuados e obviar a uma verificação das contas do FFD;
30º)
Na concretização desse objectivo, o arguido F autorizou que tais pagamentos fossem inscritos em rubricas que, embora soubesse não podiam comportar esses pagamentos, porque ilegais, eram susceptíveis de melhor os dissimular no conjunto dos gastos de cada instituição;
(...)
35º)
O arguido F agiu por forma a prejudicar o Estado, sabendo que dissipava, em proveito alheio, verbas do orçamento do FFS 'para o fomento da actividade desportiva';
36º)
O arguido F agiu com o propósito de beneficiar indevidamente terceiros, disponibilizando quantias avultadas para esse efeito, e de fazer coisa sua, o dinheiro do Estado, a que sabia não ter direito;
37º)
O arguido F sabia que, pelas funções que desempenhava, tinha a obrigação de zelar pela boa gestão dos dinheiros públicos que lhe estavam confiados e cuja administração lhe competia, o que não fez;
38º)
O arguido F violou os deveres gerais de imparcialidade e de isenção, bem como os procedimentos legais imperativos, sabendo que, na sua qualidade de (...) e em razão das suas funções, lhe competia administrar, fiscalizar e defender os interesses patrimoniais do Estado;
40º)
Com a sua conduta, ocasionou ao Estado Português elevados prejuízos económicos e afectou a imagem e o prestígio das instituições;
41º)
A conduta do arguido F materializou-se na prática de cinco actos de natureza semelhante, sendo certo que o êxito inicialmente alcançado, a permanência das circunstâncias que o determinaram e o sentimento de impunidade daí resultante, contribuíram decisivamente para o prolongamento no tempo de tais condutas;
42º)
O arguido F agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta não lhe era permitida.'.
1.13.O A. veio a ser submetido a julgamento na 3.ª Secção da 3.ª Vara Criminal de Lisboa, pelo crime de peculato, pedindo o Estado a sua condenação no pagamento da quantia de esc. 336 783 479$00, acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
1.14.O acórdão proferido pelo tribunal concluiu:
'Factos Não Provados da Pronúncia
Não se provou que as cinco propostas referidas na pronúncia, aprovadas pelo arguido, previam um pagamento a alguns funcionários correspondente a uma alegada diferença entre a remuneração do cargo que detinham e as funções supostamente exercidas.
Não se provou que nos termos dessas propostas os pagamentos aos funcionários seriam efectuados sob a capa da concessão de um subsídio pago pelo FFD à COAD Central.
Não se provou igualmente que os pagamentos aos delegados distritais foram efectuados através da concessão fictícia de um subsídio às CORADs.
Não se provou que, para obviar a que tal viesse ao conhecimento quer da Direcção Geral da Contabilidade Pública (DGCP), quer do Tribunal de Contas, o arguido F autorizou que esses pagamentos se efectuassem como se de subsídios à COAD Central e às CORADs se tratassem.
Não se provou que os pagamentos feitos aos funcionários e delegados distritais através da COAD Central e das CORADs constituíram um artifício que tinha por fim ocultar os mesmos e obviar a uma verificação das contas do FFD.
Não se provou que o arguido autorizou que tais pagamentos fossem inscritos em rubricas que embora soubesse não podiam comportar esses pagamentos, porque ilegais, eram susceptíveis de melhor os dissimular no conjunto dos gastos de cada instituição.
Não se provou que o arguido autorizou os pagamentos das quantias referidas na pronúncia, bem sabendo que as mesmas não eram devidas e que não tinham fundamento legal.
Não se provou que o arguido F agiu por forma a prejudicar o Estado, sabendo que dissipava, em proveito alheio, verbas do orçamento do FFD 'para o fomento da actividade desportiva'.
Não se provou que o arguido F agiu com o propósito de beneficiar indevidamente terceiros, disponibilizando quantias avultadas para esse efeito, e de fazer coisa sua, o dinheiro do Estado, a que sabia não ter direito.
Não se provou que o arguido F, (...), não soube zelar pela boa gestão dos dinheiros públicos que lhe estavam confiados e cuja administração lhe competia.
Não se provou que o arguido F violou os deveres gerais de imparcialidade e de isenção, bem como os procedimentos legais imperativos, sabendo que, na sua qualidade de (...) e em razão das suas funções, lhe competia administrar, fiscalizar e defender os interesses patrimoniais do Estado.
Não se provou que, com a sua conduta ocasionou ao Estado Português elevados prejuízos económicos e afectou a imagem e o prestígio das instituições.
Não se provou que a conduta do arguido F se materializou na prática de cinco actos de natureza semelhante, sendo certo que o êxito inicialmente alcançado, a permanência das circunstâncias que o determinaram e o sentimento de impunidade daí resultante contribuíram decisivamente para o prolongamento no tempo de tais condutas.
Não se provou que o arguido F agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta não lhe era permitida.'
1.15.O tribunal deu como provados os ss. factos alegados pelo A.:
'Da Contestação
O arguido não obteve qualquer benefício pessoal em consequência dos despachos que proferiu, assim como não beneficiou qualquer pessoa das suas relações pessoais, ou políticas, ou que, por vínculo de qualquer natureza, tivesse com ele relação que pudesse motivá-lo à concessão do benefício.
O arguido limitou-se a continuar uma prática que vinha do passado e legitimada numa decisão do seu antecessor (...).
Em 1986, o ministro F deparou-se com um quadro legislativo e regulamentar da área do desporto tutelada pelo ministério, que era uma autêntica selva, caracterizado por uma floresta de diplomas avulsos, de épocas e filosofias diferentes, de que resultavam inadequações à realidade com que a Administração tinha que lidar no seu quotidiano, para assegurar os objectivos da política na área do Desporto.
Esta situação confusa tinha sido agravada com a transferência do sector do desporto do Ministério da Educação para o Ministério da Qualidade de Vida e o seu posterior regresso ao Ministério da Educação, justamente com o ministro G.
Os instrumentos de actuação do Estado no sector eram, à época, a Direcção Geral dos Desportos (D.G.D.), o Fundo de Fomento do Desporto (F.F.D.), a Comissão Organizadora das Actividades Desportivas (COAD) Central e as Comissões Organizadoras das Actividades Desportivas Regionais (CORADs).
Com a alteração da Lei Orgânica do F.F.D. operada pelo D.L. N.º 674/74 de 5 de Dezembro foi aditada uma alínea ao art.º 1º. A alteração consubstanciou uma modificação no regime de atribuições do FFD, segundo a qual este passou a poder “prestar apoio financeiro, através da concessão de empréstimos e subsídios, a quaisquer realizações, iniciativas ou empreendimentos levados a efeito por entidades públicas ou privadas que visem a promoção da prática desportiva, entendida como actividade cultural das populações.” Foi por força desta alteração que, o FFD – até então vocacionado para investimentos em “apetrechamento gimnodesportivo” do país – foi permitindo, desde 1975, a progressiva generalização da prática estabelecida de mobilização de recursos do Fundo de Fomento do Desporto para os próprios planos e quadros de actividade da DGD, superiormente aprovados.
Aquelas Comissões (COAD e CORADs) foram criadas nos termos do art.º 30º do Dec.-Lei N.º 553/77, de 31.12 e regulamentadas pelo Despacho N.º 6/78, de 16.02, com alterações introduzidas pelo Despacho N.º 7/82, de 17.08.
Tais comissões tinham poderes para “o financiamento das estruturas humana e materiais necessárias à execução dos planos” de actividades sectoriais ou gerais (art.º 6º a) e 5º);
Em 25 de Março de 1986, o director-geral dos Desportos apresentou ao ministro G um projecto de reestruturação da direcção geral “no qual se procuram resolver as mais prementes dificuldades de carácter organizacional e funcional, face à evolução do desporto e às crescentes responsabilidades...”
O Director Geral considerava serem “evidentes as vantagens em adoptar tão rapidamente quanto possível o modelo proposto, implementando-o em todas as suas vertentes...”; acrescentava “haver toda a conveniência em propiciar, quanto antes, a adaptação dos meios humanos ao novo modelo orgânico...” e propunha que “se implemente desde já, nas suas diversas vertentes orgânico-funcionais, o aludido projecto de reestruturação desta direcção-geral e do modelo de gestão nele contido, o que poderá ser levado a efeito mediante Ordem de Serviço do signatário ou por qualquer outra forma que seja tida por mais conveniente.
Caso o exposto mereça a superior concordância de V. Exª, na Ordem de Serviço de implementação do processo ou noutro documento por que tal seja levado a efeito, designar-se-iam desde logo, provisoriamente e até à sua eventual confirmação e nomeação formal nos respectivos lugares, os responsáveis por cada uma das sub-estruturas orgânicas constantes do projecto, contemplando, de um modo geral, o pessoal que actualmente desempenha funções dirigentes e/ou de coordenação.”
O ministro F deu àquela proposta o seguinte despacho, de 10.04.86:
“Concordo genericamente, devendo o Sr. director-geral ir promovendo as adaptações necessárias a uma transição suave e eficaz.”
Esta decisão foi imediatamente implementada pelo director-geral, como se vê das suas Ordens de Serviço Nºs 15/86 (de 30.04), 20/86 (04.07), 21/86 (14.07), 22/86 (14.07) e 31/86 (10.09), quase todas sob a epígrafe “Implantações do Projecto de reestruturação da D.G.D. e do modelo de gestão nele contido”.
Através delas, o director-geral designou os responsáveis pelas Direcções de Serviços e pelas Divisões.
Na sequência lógica da implementação do novo projecto organizativo e à semelhança do que já vinha sendo praticado, em 17.06.86, o director-geral propôs ao ministro (proposta N.º 537/86), o seguinte: “Por razões relacionadas com a não existência de uma lei orgânica actualizada e de um quadro de pessoal que contemple as diversas situações que se foram criando no decurso destes últimos 10 anos, têm vindo a ser adoptadas, todos os anos, soluções que tendem a minimizar os efeitos decorrentes de tal estado de coisas.
Na verdade, há elementos a quem, em face das suas aptidões profissionais e considerando as necessidades de serviço e a inexistência de titulares para o desempenho dos respectivos cargos, foram cometidas atribuições superiores às do seu próprio cargo, que aliás tem vindo a exercer com mérito e competência;
Outros há que se encontram a desempenhar funções compatíveis com as habilitações académicas (de grau superior) que, entretanto, foram adquirindo;
Muito recentemente, foram designados como responsáveis de cada uma das sub-estruturas da projectada lei orgânica da D.G.D., os elementos que constam da Ordem de Serviço n.º 15/86, de 30.04.86.
Esta situação implica, como é lógico e se considera justo, a atribuição de uma compensação correspondente à diferença entre a letra da respectiva categoria e a do cargo efectivamente exercido.
Nestes termos, propõe-se que sejam liquidadas as diferenças mensais aos elementos que constam da relação anexa, devendo o pagamento ser efectuado através da concessão de um subsídio à COAD Central no valor de Esc. 5.686.900$00 o qual será suportado pelo código 41:00 do orçamento do Fundo de Fomento do Desporto para o corrente ano.”
O ministro F despachou: “Autorizo”, em 22.07.86.
Esta proposta e este despacho serviram de precedente e moldura para todas as outras propostas e despachos atribuídos ao ministro F;
Na verdade, o director-geral limitava-se a reproduzir aquela proposta no que toca aos complementos de remuneração a funcionários da D.G.D. por intermédio da concessão de subsídio à COAD e o ministro F nada mais fez do que reproduzir o despacho do seu antecessor.
Com os mesmos fundamentos, em Março de 1987, o director-geral apresentou a proposta N.º 303/DSA, na qual “propõe-se que sejam liquidadas as diferenças mensais aos elementos que constam da relação anexa, ... através da concessão de um subsídio à COAD Central”.
Identicamente, o ministro F despachou “autorizo” em 22.04.87.
Quanto aos Delegados regionais (ou distritais), foi apresentada ao ministro a proposta 190/DSA do Presidente do Fundo de Fomento do Desporto (igualmente director-geral do Desporto), que mereceu o seguinte parecer do responsável administrativo da DGD e do FFD:
“Considerando que, com a próxima publicação do Diploma Orgânico da DGD se procederá a toda uma regularização do processo institucional da Categoria de “Delegados Regionais” julga-se de autorizar o proposto, equiparando-os desde já, para efeitos remuneratórios a Directores de Serviço, sendo os quantitativos encontrados enviados às COADs distritais que procederão às necessárias e pontuais liquidações mensais.
Esta última metodologia vem na sequência da chamada de atenção feita pelo Tribunal de Contas. Face a esta alteração o encargo deixará de ser suportado pelo código 31.00 “Aquisição de Serviços” passando a ser pelo código 41.00 “Transferências Instituições Particulares”.
Exª superiormente decidirá.”
Sobre a proposta, com o parecer acabado de transcrever, o ministro F despachou: “autorizo”, em 23.03.87.
Deste parecer do responsável administrativo da DGD e FFD, resulta que o Tribunal de Contas teria conhecimento da situação e inclusive alterou o enquadramento orçamental das despesas, que deixaram de ser suportadas pelo Código 31.00 “Aquisição de Serviços”, para o Código 41.00, “Transferências Instituições Particulares”.
Sempre com os mesmos fundamentos, em 31.03.87, a Divisão de Gestão de Pessoal propôs diversos pagamentos, o Director Administrativo e o director-geral deram pareceres favoráveis, e o ministro F despachou: “Autorizo”, em 10.04.87.
Em 4 de Agosto de 1987 (Proposta 874/DSA) e “com base nos fundamentos constantes da Proposta N.º 303/DSA”, o director-geral propôs o habitual subsídio à COAD Central para os pagamentos das compensações aos funcionários da DGD e o ministro F despachou, em 04.08.87: “Autorizo”.
Este último despacho foi proferido nas vésperas de o ministro F ter tomado posse do cargo.
As propostas que o arguido F autorizou de transferências de verbas para a COAD Central são em tudo idênticas às propostas Nºs 537/86, e 303/DSA, 255/DSA e 874/DSA, autorizadas pelo ministro G.
E as propostas que o arguido F autorizou de transferências de verbas para as CORADs são perfeitamente iguais à proposta 190/DSA que o ministro G autorizou por despacho de 23.03.87 e nela se fundamentam.
Nas informações e propostas apresentadas ao ministro F, expressamente se declara que as transferências nelas previstas vinham sendo praticadas anteriormente:
Aliás, esta prática vinha sendo seguida no Ministério mesmo antes do Ministro G, sem que ninguém lhe tivesse feito qualquer objecção.
A mesma havia sido seguida pelo Secretário de Estado C, o qual também ele se limitou a sancionar um regime institucionalizado há cerca de 5 anos.
O arguido limitou-se a despachar, por escrito, autorizando propostas que lhe foram apresentadas pelos serviços competentes, na convicção plena de que as propostas estavam conformes à lei e não envolviam a prática de qualquer ilícito.
O arguido, (...), era politicamente responsável e tinha sob a sua tutela todo o sistema educativo, desde a educação pré-escolar à pós-graduação universitária; a investigação científica no quadro das instituições de ensino superior; a investigação científica tropical; a política de língua e cultura portuguesa no exterior; o desporto.
Tratava-se do mais vasto conglomerado de serviços públicos centrais e desconcentrados, tendo ao seu serviço mais de 200.000 funcionários (40% do total do funcionalismo público) e administrando cerca de 11.000 instituições prestadoras de serviços (escolas, I. Politécnicos, Universidades, centros de extensão educativa, etc.). No seio do Ministério da Educação funcionavam mais de 30 direcções gerais, direcções regionais e serviços equiparados; os destinatários directos ultrapassavam os 2 milhões de alunos e respectivas famílias e o orçamento gerido em 1991 era bem superior a 600 milhões de contos, entre despesas correntes e despesas de investimento.
Sob a responsabilidade coordenadora do Ministro da Educação a orgânica do Governo contemplava a existência de três Secretários de Estado: Secretário de Estado do Ensino Superior, Secretário de Estado Adjunto e Secretário de Estado da Reforma Educativa.
A legislatura 1987-91 foi marcada pela concepção, formulação e concretização do mais vasto movimento de reforma educativa verificado em Portugal no período pós 25 de Abril de 1974.
Sob a liderança do arguido e na sequência da Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, foi desencadeado um vasto processo reformista que viria a influenciar toda a marcha do sistema da década seguinte. Esta reforma obedeceu a uma estratégia de ampla participação, quer na definição, quer na sua implementação, que teve lugar no seio das instâncias próprias de negociação das políticas públicas educativas -- Assembleia da República, Conselho Nacional de Educação, Conselho Nacional do Ensino Particular e Cooperativo -- ,seja ainda através de reuniões constantes de audição e concertação realizadas com a totalidade dos parceiros sociais (sindicatos, pais e famílias, autarcas, Igrejas, empregadores, departamentos públicos).
Como (...), o arguido empreendeu também a reforma global de todo o sistema desportivo, que teve o seu ponto mais relevante na elaboração, discussão pública e aprovação na Assembleia da República da Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei N.º 1/90, de 13 de Janeiro).
Por outro lado, foi constante a preocupação do arguido com a transparência e a ética desportiva -- proclamação do Ano da Ética Desportiva e do Jogo Limpo.
A acção do arguido no sector desportivo e a sua preocupação de moralizar o sector, granjearam-lhe a consideração e o apoio de todo o movimento desportivo, não obstante este sector lhe ser relativamente estranho no início das suas funções ministeriais.
Dada a dimensão do universo integrado no Ministério da Educação, ao Gabinete do Ministro confluíam todas as decisões na área do desporto, bem como todo o despacho canalizado através dos gabinetes dos Secretários de Estado ou directamente provindos dos serviços.
Em geral, o arguido despacharia num dia útil entre 200 e 250 processos, chegando a computar-se, em momento de ponta, cerca de 500 assinaturas num único dia.
Muito do despacho, não podendo ter lugar no gabinete em horas normais de trabalho, era proferido à noite em casa, mediante pastas de despacho que eram diariamente enviadas para a residência do arguido.
O ministro (...), como qualquer outro governante, não tem nenhuma possibilidade prática de estudar em pormenor todos os processos que lhe são apresentados para despacho administrativo, nem para analisar e fiscalizar todas as propostas que lhe são feitas pelos responsáveis dos serviços.
O ministro, em princípio, tem de presumir que as propostas que lhe são apresentadas pelos directores-gerais e outros responsáveis máximos da Administração estão devidamente fundamentadas e que foram apreciadas pelos juristas dos serviços respectivos.
A primeira e mais importante função do Ministro é a definição e a execução da Política do sector, não a administração dos serviços.
No caso em apreço, o Ministro, mediante propostas do director-geral, com pareceres favoráveis dos serviços responsáveis e sendo-lhe dito que os procedimentos propostos vinham sendo seguidos desde há muito tempo pelos seus antecessores, só podia presumir que tais procedimentos eram conformes à lei
O arguido estava absolutamente convencido, pelas informações que lhe foram prestadas, que os serviços entrariam em desagregação se o modelo organizativo provisoriamente estabelecido e autorizado pelo despacho do seu antecessor de 23.03.87, até à publicação da Lei Orgânica, deixasse de ser continuado na prática.
O director-geral enviava as propostas fundamentadas e acordadas com os juristas dos Serviços. Essas propostas, uma vez recebidas no gabinete, eram automaticamente enviadas para os assessores ou adjuntos competentes em razão da matéria. Estes discutiam todas as dúvidas emergentes com o director-geral, e só depois as propostas eram submetidas a despacho do Ministro, com o parecer correspondente, normalmente por escrito em folha apensa.
O arguido despachava assim cada proposta financeira, com base na confiança que depositava nas informações dos serviços, na proposta fundamentada do director-geral e no parecer dos membros tecnicamente preparados do seu gabinete.
Perante este conjunto de informações e pareceres, o arguido não tinha fundamento para imaginar que os pagamentos não fossem regulares, lícitos ou não tivessem cabimento orçamental.
Era do conhecimento generalizado no Ministério da Educação a orientação política constante e firme do Ministro F no sentido de racionalizar recursos e de impor uma grande parcimónia na aplicação de dinheiros públicos. A todos e a cada um dos altos dirigentes do Ministério foi reiteradamente transmitida esta determinação e são inúmeros os casos em que o arguido não autorizou despesas que considerou supérfluas ou injustificadas, inclusivamente na área do desporto.'
1.16.Em sede de direito, o tribunal concluiu nos termos que se seguem
'... para que se verifique o crime de peculato desde logo se torna necessário que se verifique uma intenção apropriativa por parte do titular do cargo político em proveito próprio ou de terceiro.
Da matéria de facto apurada resulta que o arguido não se apropriou do que quer que seja em proveito próprio e também entendemos que não se pode falar em apropriação no sentido técnico-jurídico do termo em proveito de terceiro.
O arguido limitou-se a, de acordo com a prática seguida pelo seu antecessor, permitir que continuassem a ser efectuados pagamentos compensatórios a funcionários da DGD e delegados regionais pela prestação de serviços efectivamente prestados.
A prática estabelecida poderia não ser a mais correcta, mas tinha sido a encontrada por forma a obviar ao estrangulamento da situação devido à existência de uma lei orgânica do desporto perfeitamente desenquadrada da realidade.
Mas, ainda que assim não se entendesse, sempre será de concluir que o arguido não agiu com dolo, antes convencido que a sua actuação era a mais correcta e consentânea com as normas legais, pois eram essas as informações e pareceres, quer dos responsáveis directos pela área do desporto, quer dos seus próprios juristas que o assessoravam.
Do Pedido de Indemnização Civil
Perante a ausência de responsabilidade criminal por parte do arguido não se verificam igualmente os pressupostos da responsabilidade civil decorrente da prática de facto ilícito, pelo que, também no que respeita ao pedido de indemnização civil deve o mesmo improceder.'

1.17.A acusação contra o A. foi objecto da manchete do jornal 'O Independente', edição de 17 de Maio de 1996, com a fotografia do A. a ocupar quase toda a 1ª página do jornal e toda a página 4 da mesma edição, com outra fotografia do A. (doc. n.º 8).
1.18.Em 17-3-1996, o jornal 'Público', também em notícia de 1ª página, com desenvolvimento nas páginas interiores, divulgava a acusação contra o A., sublinhando que o 'Ministério Público quer 330 mil contos de indemnização' e 'F acusado no processo do INDESP' (doc. n.º 9).
1.19.O jornal desportivo 'A Bola' noticiou às acusações contra o A., sob o título 'O que 'tramou' F', com publicação da foto do A. (doc. n.º 10).
1.20.Na edição de 16 de Janeiro de 1999, o 'Público' voltou ao tema, sob o título 'Saco Azul' do Instituto do Desporto leva ex-ministro ao banco dos réus por peculato
F ACUSADO' (doc. n.º 11);
Esta notícia, acompanhada da foto do A., abre com a afirmação de que 'o juiz de instrução criminal de Lisboa mandou F a julgamento. F é acusado de crime de peculato na forma continuada'.
1.21.No dia 16 de Janeiro de 1999, o jornal '24 Horas', em manchete de 1ª página e com a foto do A., afirmava:
'EX-MINISTRO NO BANCO DOS RÉUS' (doc. n.º 12)
1.22. Na edição de 'O Independente' de 11.02.2000, com a foto do A., anuncia-se o julgamento do A., repetindo-se as acusações contra ele formuladas (doc. n.º 13).
1.23.No 'Público' de 25.10.2000 noticia-se 'F no Banco dos Réus'. (doc. n.º 14).
1.24.O Governo Português, em 1999, deu o seu acordo a que o A. fosse indigitado para o cargo de director-geral da UNESCO.

2.da base instrutória:
2.1.O A. é uma personalidade de prestígio em Portugal e no estrangeiro, assinaladamente nos meios intelectuais, científicos e políticos, pelas suas qualidades de inteligência, cultura e saber.
2.2.O A. exerceu e exerce cargos em universidades e instituições portuguesas, instituições internacionais – como o banco Mundial, OCDE, UNESCO, UE, Conselho da Europa, Fundação ZEE (Zurique), Universidade de Tetovo.
2.3.O A. é reconhecido como sendo dotado de uma personalidade moral irrepreensível, pela sua probidade pessoal e pelo escrúpulo e rigor com que sempre pautou a sua conduta pública e privada.
2.4.O A. desenvolveu ao longo da sua vida actividade de voluntariado cívico junto de instituições públicas, sócio-culturais e sem fins lucrativos.
2.5.O A. sentiu-se atingido na sua dignidade, no seu bom nome e na imagem que conquistou, tendo-se sentido humilhado e enxovalhado junto da opinião pública, pelo facto de haver sido constituído arguido, de contra si haver sido deduzida acusação e proferido despacho de pronúncia, nos autos de inquérito n.º 5379/95.1TDLSB e de Instrução n.º 585/97.7TOLSB e em que lhe era imputada a prática de crime de peculato que, em consciência, o A. estava certo não ter cometido.
2.6.Como consequência do seu estatuto de arguido, acusado e pronunciado o A. viu-se forçado a não poder aceitar, o cargo para que foi convidado em 1996 de Presidente do Conselho de Administração do Teatro Nacional de São Carlos e, em 1999, a não poder aceitar o cargo, para que fora indigitado, com o acordo do Governo Português, de Director-Geral adjunto da UNESCO.
2.7.O A. sentiu-se obrigado a afastar-se de qualquer actividade política relevante, considerada incompatível com o seu estatuto de acusado e pronunciado.
2.8.A prolação do despacho de acusação contra o A. e do subsequente despacho de pronuncia tiveram grande repercussão pública, facto que as Senhoras Magistradas que os subscreveram não previram nem tinham que equacionar ao proferi-los – por se tratar de elemento processualmente não relevante- mas que era previsível, dada a notoriedade pública do A. e o facto de ser acusado da prática de um crime de peculato um ex-membro do Governo.
2.9.Em despesas em que teve de incorrer para o apuramento dos factos que foram objecto do processo que lhe foi movido – buscas, fotocópias, estudo da documentação- na preparação da sua defesa ao longo do processo – em custas judiciais, o A. despendeu cerca de €6.500,00.
2.10.O A. deixou de auferir o vencimento correspondente aos cargos que lhe foram oferecidos e que não pode exercer, sendo que:
No cargo de presidente do Conselho de (...), por um mandato de três anos, entre 1996 e 1998 teria auferido o valor ilíquido de €184.888,95.
No cargo de (...), por um mandato de três anos, entre 1999 e 2001, teria auferido €457.924,45.
2.11.O A. exerceu entre 1999 e 2001 actividades profissionais incompatíveis com o desempenho da função de (...), das quais retirou proventos, sendo que:
Em 1999 auferiu o rendimento bruto de trabalho dependente de Esc.: 23.843.400$00;
Em 2000 auferiu o rendimento bruto de trabalho dependente de Esc.: 67.087.743$00;
2.12. Em 2001 auferiu o rendimento bruto de trabalho dependente de Euros 224.120,36;

7.
Apreciando.
7.1.
Primeira questão
Os institutos da caducidade e da prescrição são consagrados por razões atinentes aos valores da certeza e de segurança, tão ou mais importantes, nas modernas sociedades, do que o valor justiça.
Ainda que a lei não tenha formulado um critério geral para distinguir tais figuras, as mesmas não se confundem, assumindo um regime jurídico diferenciado.
Desde logo no que respeita ao seu objecto imediato e ao decurso do respectivo prazo.
Pois que, enquanto a prescrição se reporta, pelo menos directa e imediatamente, ao pedido, a caducidade refere-se à acção.
Assim, enquanto que na prescrição, a respectiva interrupção apenas se verifica com a citação ou a notificação de qualquer acto que exprima a intenção de exercer o direito – artº 323º do CC - na caducidade tal interrupção opera com o simples instaurar da acção.
Por outro lado, enquanto o prazo de prescrição do direito, pode suspender-se ou interromper-se em várias situações – artºs 318º a 327º do CC – o prazo de caducidade atinente ao processo, não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei que regula cada situação concreta o admite – artº 328º do CC.
Finalmente enquanto que para a prescrição são fixados prazos ordinários e gerais para certo tipo de situações jurídicas – artº 309º e segs. do CC, para a caducidade tal não acontece.
Limitando-se a lei, mais ou menos avulsamente, a estabelecer prazos de caducidade, para concretas e especiais situações ou relações jurídicas por ela reguladas.
Daqui resulta que, se para a prescrição existe sempre e necessariamente, porque a ordem jurídica, no seu todo considerada, assim o pretende, um prazo de prescrição, quer emergente da especial norma reguladora da situação, quer, na falta desta, dos prazos gerais fixados, para a caducidade já o sistema jurídico admite, ao não fixar genericamente prazos gerais aplicáveis subsidiariamente, que inexista tal prazo se a especial norma reguladora do caso o não previr.
Este entendimento resulta mais impressivamente do disposto no artº 298º nº 2 do CC o qual estatui que:
«quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente `prescrição».
Resultando, a contrario senso, que se e lei não fixar prazo de caducidade ou as partes o não convencionarem, a situação concreta não fica sujeita a tal prazo, nem à mesma pode ser aplicável um outro qualquer para uma diferente situação jurídica consagrado, mesmo que esta apresente similitudes com aquela.
E como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas o prazo de propositura de acções é um prazo de caducidade e não de prescrição. – Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anotado, 2ª ed. P. 252 e Ac. da Relação de Lisboa de 05.11.1976, BMJ, 263º, 288.
Mas resulta daqui que a acção que verse sobre interesses materiais e direitos disponíveis relativamente à qual não exista prazo de caducidade, pode ser instaurada a todo o tempo, com violação dos aludidos princípios de certeza e segurança?
É obvio que não.
Ela terá de ser sempre instaurada com respeito pelo atinente prazo prescricional o qual, necessariamente existe, senão o especial pelo menos o geral ou genérico.
Foi o que se verificou no caso vertente em que o autor instaurou a acção ainda no decurso do prazo de três anos consagrado no artº 498º do CC e aqui aplicável.
O que se mostra suficiente para salvaguardar os aludidos princípios.
E não se podendo entender, como pugna o ora recorrente, que existe neste particular conspecto, qual seja, a determinação do prazo de caducidade para instauração da acção ao abrigo do artº 22º da Constituição, lacuna a integrar nos termos gerais.
Na verdade uma lacuna é uma incompletude, uma falta ou uma falha.
Existe uma lacuna jurídica quando, quer no plano da norma (lacunas de lei), quer no plano dos valores e princípios jurídicos gerais (lacunas de direito), não existe resposta a uma concreta questão jurídica.
Ou, noutra perspectiva, e reportando-nos apenas ao plano das lacunas normativas e como escreve J. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p.195:
«quando uma norma legal não pode ser aplicada sem que acresça uma nova determinação que ela não contém… assim, p.ex. se a lei …manda adoptar certos procedimentos deixando por regular um dos seus trâmites; ou se diz que haverá um certo prazo para a pratica de certo acto mas se esquece de determinar ou indicar a forma de determinar tal prazo».
Ora não estando todas as acções, necessariamente, sujeitas a prazo de caducidade, como se viu, deve entender-se que a não consagração de tal prazo para caso e apreço constitui uma opção do legislador. E não falha ou incompletude da ordem jurídica.
E mesmo que assim não fosse ou não se entenda o certo é que, considerando o fito prosseguido pela fixação do prazo de caducidade, qual seja a salvaguardados dos valores da certeza e da segurança, sempre existe resposta para a presente questão jurídica, com a consecução de tal salvaguarda, podendo a norma em causa – artº 22º da Constituição – ser perspectivada, no que á instauração da respectiva acção concerne, por recurso à figura da prescrição, e sem que acresça a necessidade de uma nova determinação que ela não contém.
Importando ser cuidadoso e prudente nesta matéria, sendo que, pelo menos por via de regra, e como se decidiu no Acórdão do STJ de 31.01.1980, BMJ, 293º, 252:
«As disposições legais que estabelecem prazos de caducidade não podem aplicar-se a situações que nas mesmas não estejam clara e taxativamente definidas e concretizadas»
Improcede, pois, neste particular o recurso, ainda que por razões diversas das expendidas na decisão recorrida, pois que, designadamente e contrariamente ao nela referido, o artº 226º do CPP não é normativo excepcional, porque não se opõe ou contraria qualquer norma ou princípio que estatua ou se reporte ao referido prazo de caducidade para a propositura de acções.
O que apenas aconteceria se, para tal tipo de previsão e consequente acção, prescrevesse, contrariamente às regras e princípios gerais dos quais se retira que, por via de regra, a toda a acção corresponde um prazo de caducidade, estatuísse que não existiria tal prazo para a situação regulada no artº 225º.
Consequentemente ao estipular um determinado prazo limitou-se a concretizar o seu limite temporal, em função do que entendeu por conveniente, atentas as características ou especificidades da concreta situação que regulou.
Ou seja é uma norma especial- cfr. quanto a esta distinção, Batista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p.94 e 95; Oliveira Ascensão in O Direito, 2ª ed. Gulbenkian p. P.382 2 segs e Jacinto Rodrigues Bastos, in Das Leis sua Interpretação e Aplicação, 1978, p. 45.

7.2.
Segunda questão.

Neste particular não assiste, meridianamente, razão ao recorrente.
Valores e princípios de certeza, segurança, economia e celeridade processuais, bem como o manifesto interesse público, de evitar contradição de julgados, tudo atinente à justa e célere composição do litígio e à defesa da coerência e do prestígio dos tribunais, impõem que o prazo prescricional apenas comece a correr a partir do trânsito em julgado da sentença ( maxime absolutória) penal.
Pois que só a partir deste momento se mostram processualmente infundadas a acusação e a pronúncia.
E só neste momento se podendo rigorosamente dizer que o invocante da lesão adquiriu, formalmente, o direito que se propõe exercer, pois que, ainda que academicamente ou em tese geral, seja admissível que um condenado por sentença criminal transitada, possa requerer indemnização com fundamento em acusação e pronúncia indevidas, tal direito, por via de regra e em termos lógicos e da experiência e senso comuns, apenas deve ser concedido no caso de absolvição.
Só neste momento se encontra suficientemente definida e esclarecida toda a situação que sufraga o pedido, vg. actuação dos agentes do Estado visados e amplitude dos danos – o que acarreta mais certeza e segurança.
Com o inerente facilitar da produção da prova e da apreciação desta e de todo o circunstancialismo envolvente da situação – do que advêm maior celeridade e economia com melhor uso e razionalização dos meios materiais e humanos disponíveis.
E só neste momento se evita ou minimiza o perigo de dois tribunais de jurisdições diversas e com apreciação de prova normalmente diferenciada, decidirem quanto a questões análogas, total ou parcialmente, de um modo inconsequente, incoerente ou, até, antagónico.
Neste sentido e mutatis mutandis, cfr. Ac. do STJ de 21.03.2006, in dgsi.pt, p.06A411, onde se expende, com citação doutrinal, que:
«aquele prazo só se verifica a partir do momento em que o credor tem a possibilidade de exigir do devedor que realize a prestação devida» (realce nosso).

Improcedendo as invocadas excepções, há que apreciar o decidido na sentença final.

7.3.

Terceira questão.

Pugna o recorrente pela tese da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, na medida em que, nela não foram apreciadas as questões que refere nos artigos 149º a 151º das alegações.
Pois que o dolo ou a culpa grave das magistradas do processo crime deve ser apreciada à luz de todos os seus erros e faltas que lhe provocaram os danos.

Tais questões e relativamente à acusação seriam:
(I)«A acusação deduzida contra o A. omitiu factos absolutamente essenciais para a apreciação da conduta imputada ao arguido e que constavam claramente do processo. Referimo-nos aos factos descritos na sentença da 3º Vara Criminal de Lisboa que absolveu o A., constantes das alíneas F) a i) e N) dos Factos Assentes.
Tais factos estavam demonstrados no final do Inquérito por documentos juntos ao processo, não podendo ser ignorados pela Autora da Acusação.
Destes factos resultava inquestionavelmente que os pagamentos autorizados pelo A. nos cinco despachos que proferiu se limitaram a prosseguir uma prática que vinha de há vários anos, que essa prática tinha sido institucionalizada pelo antecessor do arguido Prof. G, com base em argumentos perfeitamente claros e transparentes, que os despachos se limitaram a confirmar as propostas dos serviços, designadamente do Director-Geral responsável, que a prática era conhecida do Tribunal de Contas e que os pagamentos foram autorizados com base em procedimentos administrativos absolutamente transparentes.
(II)A Acusação não se limitou a escamotear factos da maior relevância. Inventou -- é a expressão correcta -- outros factos para poder imputar ao arguido o crime de peculato.
Tais factos são os que consta dos artigos 103º a 108º, 120º a 123º, 452º, 454º, 455º, 472º 473º e 474º da Acusação;
são especialmente chocantes as imputações feitas ao arguido de conluio com os funcionários que lhe apresentaram as propostas no sentido de ocultarem da Direcção Geral da Contabilidade Pública e do Tribunal de Contas os pagamentos (artº 105º da Acusação), de usarem um 'artifício' com o fim de ocultar os pagamentos e obviar a uma verificação das custas do FFD (artº 107º); de decidirem inscrever os pagamentos em rubricas que não os comportavam com o objectivo de 'os dissimular no conjunto dos gastos de cada instituição' (artº 108º); de inscreverem os montantes por códigos orçamentais diferentes, elaborarem minutas de recibos que sabiam não corresponder à realidade, tudo com o objectivo de 'ocultar a sua conduta de entidades inspectivas' (artº 120º); o A. autorizou os pagamentos 'sob a forma de subsídios fictícios' (artº 121º); 'agiram com o propósito de beneficiarem indevidamente terceiros disponibilizando quantias avultadas para esse efeito e de fazerem coisa sua de dinheiro do Estado a que sabia não ter direito' (artº 452º); 'os arguidos para levarem a cabo os seus intentos agiram de forma concertada mediante prévio acordo e em comunhão de esforços'.
O A. reitera as suas afirmações de que a Acusação inventou estes factos, uma vez que não existia no processo nenhum indício probatório deles.
(III)No que toca especialmente à imputação de que o arguido, em conluio com os funcionários, teria agido com o propósito de esconder do Tribunal de Contas os pagamentos autorizados, o A. alegou um conjunto de factos e razões demonstrativas do absurdo da tese acusatória;
(IV)Ao apreciar a questão suscitada pela aplicação do artigo 36º Nº 1 do Decreto Nº 22257, de 25 de Fevereiro de 1933, o A. alegou o entendimento do M.P. no Tribunal de Contas a esse respeito;
(V)O A. alegou a 'enormidade jurídica' do pedido cível deduzido pelo M.P. contra si, com argumentos bem precisos;
(VI)O A. apontou a posição do M.P. no debate instrutório, que se encontra escrita e junta a fls. 10.811 do processo-crime, como mais um erro grave, desconsiderado e não se pronunciando sobre o importante acervo probatório trazido durante a instrução e nada dizendo sobre as questões jurídicas suscitada».
No atinente à decisão instrutória seria de considerar que:
(I)A decisão instrutória enveredou pela declaração de ilegalidade dos cinco despachos do A. para, daí, dar um 'salto' para a ilicitude criminal, ou seja, concluindo que, sendo os despachos ilegais, estava preenchido o elemento objectivo 'apropriação', do crime de peculato.
Ao proceder desse modo, a decisão instrutória ofendeu a presunção da legalidade dos actos administrativos.
(II)O A. suscitou ainda a questão da incompetência do TIC para decidir da ilegalidade dos actos administrativos praticados pelo A. enquanto (...);
(III)O A. apontou outros erros flagrantes à decisão instrutória na parte em que apreciou a legalidade dos actos administrativos do A., referidos nesta alegação nos Nºs 136 a 142».

Mas, se bem se atentar, tais factos estão presentes e foram considerados, na sua essência e para o que ao caso interessa, na sentença.
Não apenas em sede da factualidade dada como provada e supra exposta, como noutros passos da decisão – cfr. fls. 828 e segs.
É certo que o autor aduziu, no sentido de provar a sua alegação, um acervo factual complexo que se desdobra numa dinâmica actuante de tais magistradas, consubstanciada numa plêiade de actos que, no seu conjunto, e no entender do impetrante, tem virtualidade, magnitude e relevância bastantes para fundamentar a sua pretensão.
Porém e bem vistas as coisas, a única questão essencial decidenda destes autos prende-se com a existência, ou não, do dever de indemnizar do Estado, decorrente da actuação dos seus agentes (Magistrados) a qual se subsumiria na previsão do artº 22º da Lei Fundamental..
Tudo o mais se apresentando como argumentos invocados nesse sentido.
Ora como são doutrina e jurisprudência pacíficas, o entendimento que deve ser dado ao segmento normativo ora invocado pelo recorrente, emergente na sequência do estatuído no artº 660º do CPC, é que apenas:
«existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, ou das quais deve conhecer oficiosamente, mas não quando deixe de rebater, um a um, os argumentos invocados pelas partes…»- Abílio Neto in Breves Notas ao CPC, 2005, p.195.
Na verdade:
«Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» - Prof. Alberto dos Reis, in CPC Anotado, 1981, p.143.
No mesmo sentido cfr., entre muitos outros os Acs. do STJ publicados em dgsi.pt, de 19.02.2004, p.04B036, de 06.07.2004, p.04A2070, de 05.05.2005, p.05B839 e de 23.11.2006, p.06B4007.
No caso vertente assim aconteceu, sendo que o núcleo essencial factico provado e considerado na sentença, na sequência do alegado pelo autor, bem como outros que, a propósito foram referidos na parte interpretativa da decisão, são mais do que suficientes para apreciar cabalmente a sua pretensão, considerando as várias interpretações e soluções jurídicas que, relativamente à questão por ele colocada, podem ser perspectivadas e defendidas.
Improcede, consequentemente, neste particular, o recurso.

7.4.
Quarta questão.
Nesta vertente entende-se que a sentença operou correcta subsunção dos factos relevantes à lei aplicável, pelo que estando este tribunal ad quem de acordo com a decisão de 1ª instância e com os fundamentos que directa e imediatamente a sustentaram, nada mais lhe resta senão confirmá-la, nos termos permitidos pelo disposto no artº 713º nº5 do CPC.
Em seu abono, corroborando-a e, quiçá, reiterando alguns dos seus passos, sempre se dirá que efectivamente, não se vislumbra actuação dolosa, nem sequer, arbitrária ou gravemente negligente, de cariz persecutório contra o autor, das magistradas que conduziram o inquérito e a instrução no processo crime atinente.
Antes tudo girando em torno de actos de determinação de normas aplicáveis, da sua interpretação, e da valoração jurídica dos factos e das provas.
Todavia tal faz parte da essência e situa-se no âmago da função jurisdicional.
E o eventual erro em tal actividade sempre será sindicado e corrigido pela via do recurso.
Como aconteceu no caso sub judice.
Ainda que haja que ter presente que:
«quando o tribunal hierarquicamente superior sobrepõe um diverso julgamento da questão ao tribunal inferior, não é só por isso que pode legitimar-se um juízo material de verdade a respeito daquele e de erro quanto a este outro pólo da relação de supra-ordenação»- cfr. Ac. do STJ de 19.02.2004, dgsi.pt, p.03B4170.
Do que resulta que a apreciação e qualificação da conduta ou actuação como dolosa, grosseira ou arbitrária, há-de ser feita tendo por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na altura em que se desenvolveu, sendo, em princípio, irrelevante, para tal constatação, o facto de, mais tarde, o visado ter vindo a ser absolvido ou mesmo não submetido a julgamento por, entretanto, haverem surgido novas provas que afastaram a sua anterior indiciação – cfr. Ac. do STJ de 19.10.2004, dgsi.pt, p.04B2543.
Efectivamente:
«toda a dificuldade de aplicação do art.º 22 da CRP aos actos decorrentes do exercício da função judicial, está em conciliar os princípios da independência do poder judicial e.…dos juízes, garantes do desempenho imparcial da função de julgar, com o da responsabilidade do Estado por acto do juiz.
Conscientes da delicadeza do problema, os autores têm apontado caminhos de interpretação:
Assim, o Prof. Gomes Canotilho in Direito Constitucional e Teoria da Constituição - 7.ª edição, pág. 509 afirma que: 'Não obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns países vai no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados…quando a sua actividade dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares. Sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova» - cit. no . Ac. do STJ de 29.06.2005, dgsi.pt, p.05A1064.

Nesta conformidade (e nunca é demais repeti-lo), o erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função judicial, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.
Ou, como se expende no Aresto do STJ de 19.10.2004, supra citado :
«Os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o artigo 22.º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador».
No mesmo sentido cfr. Acs. do STJ 20.10.2005, dgsi.pt,p.05B2490 e de 18.07.2006, p.06A1979.
Tal não se verificou in casu.
Pois que tudo foi despoletado com a constatação de uma actuação, pelo menos indiciariamente ilegal, qual seja a afectação e atribuição de dinheiros públicos a entidades e pessoas, sem que para tal houvesse cabal e inequívoco suporte legal, através dos pertinentes procedimentos jurídico-administrativos ao nível da admissão ou aceitação, consagração orçamental, cabimentação e fiscalização de tais verbas.
Sendo que a prática anteriormente reiterada de uma actuação ilícita não a torna lícita nem, só por si, constitui causa de justificação para quem continua a praticá-la.
Note-se que o Sr. Ministro que sucedeu ao recorrente no cargo terminou com tal prática.
Acresce que aquela actuação estava envolvida por uma situação e conjunto de circunstâncias factual e juridicamente complexas e susceptíveis de serem objecto de interpretações e valorações díspares.
Do que resulta que a atitude e postura das Sras. Magistradas pautou-se apenas pela sua vontade de ver cabalmente esclarecida a actuação dos arguidos.
Sendo que, como é consabido, o lugar e o momento processual por excelência para o efeito, é a fase da audiência de discussão e julgamento.
O que, no entendimento das magistradas, em face dos meios probatórios carreados para os autos e a interpretação (melhor, ou pior, poderia e pode ser discutível, mas, mesmo assim, ainda dentro das competências que lhe são atribuídas e dos parâmetros legalmente admissíveis) que deles fizeram, entenderam por bem dever verificar-se com o recorrente.
E sendo certo que, até à prolacção de sentença transitada em julgado, qualquer arguido se presume inocente, acabou o ora autor por ser ilibado por sentença final prolactada após audiência pública em que plenamente foi exercitado o princípio do contraditório.
O que, pelo menos numa certa perspectiva, terá sido benéfico para ele, pois que, assim, a final, deu-se como provada, em definitivo, a sua inocência na vertente criminal.
E sendo ainda que deve ter-se sempre presente que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque prosseguida por seres humanos e resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em provas, como, vg. a testemunhal, cuja fiabilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico – Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.
Justiça infalível só a divina. E a sujeição à justiça humana, sempre potencialmente falível, é directa e inexorável consequência do simples estado de vivência em sociedade.
O que importa é que esta relatividade e falibilidade sejam o mais possível minoradas e mitigadas, designadamente pelo respeito e cumprimento das normas e princípios legais, éticos e deontológicos pertinentes e atinentes.
O que no caso vertente se verificou, senão em toda a plenitude, pelo menos dentro de limites perfeitamente toleráveis e que não permitem o chamamento do disposto no artº 22º da Lei Fundamental pois que os factos apurados, maxime os que foram praticados pelas duas magistradas, não têm força, magnitude e relevância bastantes para se subsumirem na sua previsão.

8.

Decisão.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença ora posta sub sursis.


Custas pelo recorrente.

Lisboa, 2007.01.23.
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