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    Acs. do T. Constitucional
ACTC nº 407/2014 -
ACTC nº 407/2014 
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Texto integral:

Processo n.º 124/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura


Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional


I. Relatório

1. A., Lda. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante LTC), do despacho de 11 de novembro de 2013, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que não lhe admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional.
Sustenta que o recurso deve ser admitido, com os seguintes fundamentos:

«Constituem pressupostos específicos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alin. b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, a suscitação, durante o processo, de uma questão de constitucionalidade ao abrigo desta alínea, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a sentença ou o acórdão recorrido, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (al. b) do nº 1 do artº 70 e nº 2 do artº 72 da LCT.)
A reclamante esgotou todos os recursos ordinários por razões de ordem processual.
Mais reconhece que suscitou antes de ser proferido o acórdão final recorrido, a questão de constitucionalidade que agora quer submeter a apreciação do Tribunal Constitucional.
Na verdade, o acórdão recorrido adotou uma interpretação insólita, inédita e inesperada dos artigos 217; 224 nº 1; 230 nº 1; 236 a 239 e 295 do Código Civil, violadora de princípios constitucionais já indicados quando da interposição do recurso.
Ainda que a recorrente não tivesse suscitado em tempo a constitucionalidade, o que nem por hipótese se admite, da interpretação das normas acima indicadas, o mesmo só poderia ocorrer por não ter tido essa oportunidade, por ter sido confrontada com uma interpretação inesperada das normas em causa, o que significa que estaríamos perante uma situação que se trataria de uma situação anómala por ter a recorrente sido confrontada com uma interpretação de todo imprevista feita primeiro pela decisão sumária e depois corroborada pelo acórdão agora recorrido. Cfr. Por exemplo acórdão nº 120/02, publicado na II Série, de 15 de maio de 2002.
Assim, tendo presente o disposto nos art. 70.º n.º 1, alin. b), n.º 2, 3 e 4, 75-A n.º 1 e 2 e 76.º da LTC, deve a presente reclamação ser julgada procedente, sendo de admitir o recurso interposto pela sobredita recorrente para o Tribunal Constitucional.»

2. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:

«1. A., Ld.ª, Ré na ação interposta pelo Ministério Público em representação de B., com vista a impugnar o seu despedimento por aquela e a cobrar créditos laborais vencidos e não pagos, interpôs recurso para a Relação de Lisboa da sentença que, entre o mais, julgou a ação procedente na sua parte substancial.

2. Na Relação foi proferida decisão sumária julgando o recurso improcedente e tendo a Ré reclamado para a conferência, esta, por acórdão de 10 de outubro de 2013, reiterou a “decisão sumária do relator e pelos fundamentos constantes dessa Decisão” julgou improcedente o recurso.

3. Desta decisão a Ré interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC afirmando que “pretende ver declarada a inconstitucionalidade das normas jurídicas segundo a interpretação normativa dada aos artigos 217, 224, n.º 1, 230, n.º 1, 236 a 239 e 295 do Código Civil, por ofender o princípio da proteção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito, referenciado nos artigos 2 e 9, alínea b), da Constituição e o artigo 266, n.º 1, da Lei Fundamental”.

4. Notificada para indicar qual peça em que suscitara a questão da inconstitucionalidade, a recorrente veio esclarecer que fora na reclamação para a conferência.

5. Não tendo o recurso sido admitido, reclamou para o Tribunal Constitucional.

6. Como se vê pela transcrição anteriormente levada a cabo (vd. n.º 3), a recorrente limita-se a indicar como objeto do recurso, seis artigos do Código Civil.

7. Naturalmente que essa referência nada diz sobre qual devia ser o objeto do recurso, ou seja, não vem identificada a norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que o Tribunal apreciasse.

8. Esta insuficiência poderia eventualmente ser suprida mediante convite nesse sentido (artigo 75.º-A, n.ºs 1, 5 e 6 da LTC).

9. Porém, no caso, tal não se revestiria de qualquer utilidade pois falta o requisito de admissibilidade consistente na suscitação “durante o processo” e de forma adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa.

10. Efetivamente, no momento próprio para suscitar a questão, que era o da reclamação para a conferência, como a própria recorrente indica, ela foi suscitada precisamente nos mesmos termos que constam do requerimento de interposição do recurso.

11. Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.

3. Notificado o reclamante para se pronunciar, querendo, sobre os fundamentos de não conhecimento do recurso indicados pelo Ministério Público, distintos daqueles referidos no despacho reclamado, nada veio dizer.
Cumpre apreciar e decidir.




II. Fundamentação

4. Para a apreciação da presente reclamação, releva a seguinte evolução processual:

4.1. Na presente ação intentada por B. contra a ora reclamante A., Lda., por sentença proferida em 12 de março de 2013, pelo 4.º Juízo, 2.ª Secção, do Tribunal de Trabalho de Lisboa, foi a ação julgada procedente e, em consequência, foi julgado ilícito o despedimento da autora e a ré condenada no pagamento da indemnização substitutiva da reintegração no montante de € 4.800,00, das retribuições mensais de € 600,00 cada, desde o despedimento e até trânsito da sentença, e no montante de € 1.441,11, a título de retribuição, de subsídio de férias e de Natal, proporcionais relativos ao ano da cessação do contrato, quantias acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

4.2. Interposto recurso pela ré, o relator do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do Código de Processo de Trabalho e 705.º do Código de Processo Civil, na anterior redação, proferiu decisão sumária, datada 19 de junho de 2013, a julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

4.3. A ré reclamou para a conferência que, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de outubro de 2013, mantendo a decisão sumária, julgou improcedente o recurso.

4.4. A reclamante apresentou então recurso para o Tribunal Constitucional, em requerimento com o seguinte teor:

«A., Lda., recorrente e melhor identificada nos autos em epígrafe, não se conformando com a decisão proferida na conferência por esse douto Tribunal, por ser legal e tempestivo, por estar em tempo e terem sido esgotados todos os recursos que ao caso cabia, vem ao abrigo do disposto no artigo 70 n.º 1, b), da LTC, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O Acórdão do Tribunal do Trabalho de Lisboa consubstancia uma decisão definitiva o que não obsta ao conhecimento do objeto do recurso.
Assim a recorrente pretende ver declarada a inconstitucionalidade das normas jurídicas segundo a interpretação normativa dada aos artigos 217; 224 nº 1; 230 nº 1; 236 a 239 e 295 do Código Civil, por ofender o princípio da proteção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito, referenciado nos artigos 2 e 9, alínea b), da Constituição e o artigo 266, nº 1 , da Lei Fundamental, considerando que nele encontra guarida um verdadeiro e autêntico princípio constitucional de respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, as quais quando interpretadas esvaziaram e afrontaram de forma intolerável o direito da aqui recorrente.
O vício das normas questionadas foi suscitado pela recorrente durante o processo – artigo 280, nº 1, al. b) e nº 2, alínea d) da CRP.»



4.5. Convidada pelo relator a indicar a peça processual em que havia suscitado a questão de inconstitucionalidade, veio a reclamante informar que o fez na reclamação para a conferência.

4.6. Em 11 de novembro de 2013 o relator do Tribunal da Relação de Lisboa proferiu a decisão reclamada, de não admissão do recurso, com o seguinte teor:

«A R. propõe-se interpor recurso do acórdão dos autos para o Tribunal Constitucional.
Invoca o disposto na al. b) do n.º 1 do art. 70 da LTC, Lei n.º 28/82, de 15.11, que dispõe que “cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: (...) b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Os autos conheceram decisão sumária, proferida em singular, e somente ao requerer que a conferência se debruçasse sobre o objeto do litigio é que a recorrente, como ora reconhece, aludiu a inconstitucionalidade, afirmando que “pretende ver declarada a inconstitucionalidade das normas jurídicas e interpretações normativas referentes aos art. 217, 224/1, 230/1, 236 a 239, todos do Código Civil, por ofender o princípio da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito, referenciado nos art. 2 e 9/b e 266 da Constituição”.

É sabido, porém, que à conferência cumpre decidir “sobre a matéria do despacho” (art.º 700/3, CPC) e não sobre questões novas.
O que significa que nem a conferência podia decidir sobre alegadas inconstitucionalidades nunca até então suscitadas.
Ora, de harmonia com o n.º 2 do art.º 72 da LTC, “os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n. 1 do artigo 70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (sublinhado nosso).

É, portanto, necessário que o recorrente haja suscitado oportunamente a questão, em termos de haver lugar ao seu conhecimento nos autos (neste sentido, por todos, o Acórdão n.º 342/2008, de 23.6.08, conhecendo de reclamação no processo 424/08).
Não é o que aconteceu nos autos, já que como vimos, a R. limitou-se a esgrimir tal em resposta à decisão singular da Relação, ao impetrar a intervenção da conferência.
Deste modo, ao abrigo do disposto nos art.º 70/1/b, 72/2 e 76/1 e 2, da LTC, não admito o recurso para o Tribunal Constitucional interposto pela R. A., Lda.
Pelo incidente pagará a R. a taxa de justiça normal.»



5. A decisão reclamada não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, tendo como objeto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de outubro de 2013 e com vista à apreciação da conformidade da “interpretação normativa dada aos artigos 217; 224 nº 1; 230 nº 1; 236 a 239 e 295 do Código Civil”. O fundamento em que assentou o juízo de inadmissibilidade radica na consideração de que a questão normativa de constitucionalidade não fora oportunamente suscitada, como imposto pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC, pois carecia de ter sido formulada em momento anterior à prolação da decisão sumária, sem o que a conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de reclamação, não estava vinculada a dela conhecer.
Na reclamação em que impetra tal despacho, o reclamante limita-se a afirmar que suscitou a questão de constitucionalidade antes de proferido o acórdão recorrido, sem confrontar os argumentos mobilizados pelo Tribunal a quo.
Por seu turno, o Ministério Público afasta-se do fundamento invocado na decisão reclamada, por considerar que a reclamação da decisão sumária para a conferência do Tribunal da Relação de Lisboa constituía momento processualmente adequado para a suscitação da questão de constitucionalidade, pese embora conclua pelo indeferimento da reclamação, por outro fundamento.
Adiante-se que também assim entendemos.



6. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende, além do mais, de ter sido previamente suscitada a inconstitucionalidade da norma submetida a fiscalização. A lei exige não só que o recorrente tenha suscitado a questão “durante o processo” (alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC), como que o tenha feito “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei), o que implica a existência de um tempo e de um modo adequados para levantar no “processo-base” a questão de inconstitucionalidade.
Ora, tendo a reclamante suscitado a questão de inconstitucionalidade no âmbito da reclamação para a conferência, apresentada ao abrigo do n.º 3 do artigo 700.º do Código de Processo Civil, dúvidas não há de que a questão de inconstitucionalidade foi oportunamente invocada.
Como este Tribunal tem entendido, em jurisprudência reiterada e uniforme, deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas num “sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', ou seja, 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita' (cfr., por exemplo, Acórdão nº 352/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
In casu, a questão de inconstitucionalidade foi suscitada em momento processual em que ainda era possível ao tribunal a quo conhecer de tal questão, tomando sobre ela posição, já que, considerando a ordem jurisdicional e o ordenamento adjetivo competente, só com a decisão da conferência fica esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade respeita (cfr., a título exemplificativo, o Acórdão n.º 342/2008, in www.tribunalconstitucional.pt, convocado pela decisão reclamada). E, na medida em que, por imperativo do artigo 204.º da Constituição, nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados, a questão de constitucionalidade, quando adequadamente suscitada na reclamação para a conferência, constitui questão de conhecimento oficioso, sobre a qual o tribunal pode – e deve - tomar posição, enquanto condição necessária para a determinação do direito a aplicar.
Assim, sempre que seja posta em crise a legitimidade constitucional de norma ou interpretação normativa que integre a ratio decidendi da decisão sumária reclamada, cujo afastamento comporta a necessária reformulação do julgado, haverá que considerar que essa questão integra a matéria do despacho, para efeitos do n.º 3 do artigo 700.º do Código do Processo Civil. Note-se, ainda, que de acordo com a parte final dessa disposição adjetiva, é todo o caso, e não apenas os argumentos esgrimidos na reclamação, que é submetido pelo relator a decisão colegial, em acórdão proferido pela conferência.



7. Contudo, para além da apontada exigência de oportunidade, carece ainda a questão de constitucionalidade de ser colocada à apreciação do tribunal recorrido de forma processualmente adequada, cumprindo ao recorrente enunciá-la, de modo expresso, direto, claro e percetível, por forma a criar no tribunal a quo um concreto e específico dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta, o que não se verificou no caso concreto.
Na verdade, e como aponta o Ministério Público, na reclamação apresentada para a conferência do Tribunal da Relação de Lisboa a reclamante limitou-se a dizer que “pretende ver declarada a inconstitucionalidade das normas jurídicas e interpretações normativas referentes aos artigos 217º; 224º nº 1; 230º nº 1; 236º a 239º e 295º todos do Código Civil, por ofender o princípio da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito, referenciado nos artigos 2º e 9º, alínea b), da Constituição e o artigo 266º, nº 1, da Lei Fundamental”, não tendo em qualquer momento dessa peça autonomizado qualquer critério ou padrão normativo – entendido como regra abstrata vocacionada para uma aplicação genérica – extraível dos referidos preceitos legais e suscetível de vir a ser utilizado na decisão a proferir, problematizando a sua constitucionalidade, em termos de vincular o tribunal ao seu conhecimento, como, efetivamente, não aconteceu.



8. A reclamante procura sustentar que a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada por este Tribunal decorre de interpretação insólita, inédita e inesperada, que não lhe era exigível antecipar e colocar perante o Tribunal a quo em momento anterior à decisão recorrida.
Porém, a falência desse argumento mostra-se evidente: mesmo que assim fosse, seguramente que quando foi confrontada com a decisão sumária teve a recorrente, ora reclamante, perceção do critério normativo que determinava o julgado, nada obstando a que suscitasse a questão de constitucionalidade em sede de reclamação para a conferência por forma adequada. Como, aliás, procurou fazer, embora por forma viciada.
Acresce que a falta de suscitação processualmente adequada perante o Tribunal recorrido da questão de constitucionalidade que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie não é suprível, pois o convite a que se refere o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC apenas pode incidir sobre o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, e não sobre peças processuais anteriores.
Cumpre, então, concluir pela inadmissibilidade do recurso e pela improcedência da reclamação.


III. Decisão



9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Notifique.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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