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 - ACRL de 26-11-2019   Insolvência culposa. Administradores da pessoa colectiva.
1 — Verificada que seja a factualidade consubstanciadora das alíneas h) e i) do art° 186°, do CIRE, haverá que qualificar-se a insolvência corno culposa, presumindo-se a culpa dos administradores da pessoa coletiva e o nexo de causalidade entre aquela sua conduta e o resultado, sem admissibilidade de prova em contrário.
Sumário pelo Relator
Proc. 1287/06.0TYLSB-J.L1 1ª Secção
Desembargadores:  Fernando Barroso Cabanelas - Paula Cardoso - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Proc. N° 1287/06.0TYLSB-J,L1
Sumário:
1 — Verificada que seja a factualidade consubstanciadora das alíneas h) e i) do art° 186°, do CIRE, haverá que qualificar-se a insolvência corno culposa, presumindo-se a culpa dos administradores da pessoa coletiva e o nexo de causalidade entre aquela sua conduta e o resultado, sem admissibilidade de prova em contrário.
I — Relatório:
O administrador da insolvência, Sr. Dr. DD..., elaborou e apresentou para apensação ao processo de insolvência da sociedade PX... —..., S.A., parecer de qualificação da insolvência como culposa e com afetação dos administradores:
- JPC...;
- MMP...; e
- ENS....
Para tanto refere, em síntese, que:
- a razão fundamental do encerramento da empresa foi a falta de uma estratégia bem definida por parte dos seus administradores e acionistas e o incumprimento perante clientes e fornecedores;
- omissão de apresentação e colaboração dos administradores após a declaração de insolvência;
- inexistência de contabilidade ou documentos que a evidenciem;
- omissão de entrega das contas;
- omissão de cumprimento das obrigações para com fornecedores e entidades bancárias.
Com vista nos autos, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, por os factos descritos pelo Sr. Administrador da Insolvência serem suscetíveis de integrar a previsão das alíneas h) e i) do n° 2 e a) e b) do n° 3 do art. 186° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Notificada a insolvente e citados os administradores, estes deduziram oposição peticionando, alegada a correspetiva factualidade, a absolvição da instância de ENS..., por ilegitimidade passiva, e os demais do pedido.
Para tanto alegam, em síntese, que:
- ENS... foi administrador nominal de direito por mero efeito da exigência legal de constituição de quórum no conselho de administração da insolvente;
- a situação de insolvência adveio do arresto do imóvel em que a devedora realizava espetáculos e eventos.
- á data do arresto a insolvente cumpria regularmente com todas as suas obrigações creditícias, junto da banca, fisco e outras entidades.
- o Administrador da Insolvência age com falta de imparcialidade e de má-fé, por ter uma má relação, já antiga, com o pai e sogro dos 2° e 3° oponentes.
O Ministério Público respondeu à impetrada exceção da ilegitimidade passiva do Requerido ENS..., pugnando pelo indeferimento, urna vez que inexiste registo de cessação das funções de administrador.
O Sr. Administrador da Insolvência respondeu à oposição, justificando as conclusões alcançadas e repudiando os fundamentos da falta de imparcialidade. Foi prolatado despacho saneador (fls. 277 a 279).
Procedeu-se à realização de julgamento (fls. 293 a 297v°).
Foi prolatada sentença (fls. 298 a 315) onde se decidiu:
C- culposa a insolvência da sociedade PX... — ..., S.A..
- afetados pela qualificação os administradores de facto e de direito: MMP... e JPC....
Fixo o prazo de inibição de MMP... e JPC... para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, respetivamente em 2 (dois) e 3 (três) anos, respetivamente, a contar do trânsito em julgado desta sentença.
- determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por MMP... e JPC....
Da referida sentença foi interposto recurso por MMP... e JPC... que concluem da seguinte forma:
1. Vêm os ora recorrentes, afetados em incidente de qualificação de insolvência, o qual teve por base o relatório do Exmo. Sr. AI, o qual conforme infra melhor se demonstrará, peca por inverdades várias.
2. Ao invés da responsabilidade ser dos recorrentes, pela insolvência da sociedade, conforme vem refletido no relatório, bem andou, nesta matéria, a sentença ora em crise, ao determinar que o arresto do imóvel onde a sociedade exercia atividade comercial foi a causa determinante da situação de insolvência.
3. Não os recorrentes, não a sua administração e tão-pouco qualquer facto que lhes seja imputável.
4. Da mesma forma que peca o relatório por falsidades, no quanto concerne a atitude de profissionalismo do Exmo. Sr. AI que apurou a existência de apenas 11 dossiers, de cor amarela, naquele que era um universo de 90 dossiers, maioritariamente relativos a contabilidade da sociedade insolvente, apenas para vir à posteriori indicar, que não conhecia o estado da contabilidade da sociedade insolvente.
5. Fundamenta o douto Tribunal a sentença de qualificação de insolvência imputável aos recorrentes, com base em dois fundamentos: incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada —cfr. ai. h) do n° 2 do art. 186° do CIRE e, incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e colaboração com o Administrador da Insolvência até à data da elaboração do parecer de qualificação da insolvência —cfr. al. i) do n° 2 do art. 186° do CIRE.
6. O fundamento do melhor disposto na h) do n° 2 do art. 186° do CIRE, não pode ser dado como preenchido,
7. Na vida contabilística da sociedade insolvente, tal como em todas as demais, por recorrência, a contabilidade é tratada de forma efetiva e diretamente executada por um TOC, a testemunha FNC..., que depôs em Tribunal a quo, de forma isenta, com conhecimento direto dos factos, imparcial e, sobretudo, de forma coerente e lógica.
8. Indicando que prestou serviços esporádicos até 2003 e com maior frequência a partir de então até 2006, nas próprias instalações da sociedade insolvente.
9. Ademais, basta a aplicação das regras de conhecimento comum, para se saber que neste tipo de sociedades, o TOC interno da sociedade promove todos os atos próprios da contabilidade, reservando-se apenas ao ROC a sua validação e final certificação. 10. Assim se provando que inexiste qualquer incumprimento ou qualquer violação da obrigação de manter a contabilidade organizada.
11. E mesmo a infeliz, mas descontextualizada expressão de gestão de mercearia por banda do recorrente, não altera essa situação.
12. A expressão referia-se apenas e tão somente, ao modo pragmático com que o administrador da sociedade, que não poderia — como aliás é bom de ver e revela aptidões de administração — controlar todos os departamentos da sociedade, procedia ao acompanhamento da vida financeira da sociedade insolvente.
13. A expressão em causa, no seu pragmatismo, revela apenas que o recorrente, em termos financeiros, preocupa-se com dois conceitos chave: ativo e passivo e, se o ativo era sempre superior ao passivo, por forma a liquidar e honrar as responsabilidades da sociedade insolvente.
14. Pelo que, outra não pode ser a conclusão, senão o de que não se pode dar por preenchido o requisito do disposto na alínea h) do n° 2 do art. 186° do CIRE, não podendo assim tal disposição legal determinar a condenação dos recorrentes, o que desde já se requer.
15. Por outro lado, também não poderá proceder o entendimento de que existiu incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e colaboração com o Administrador da Insolvência até à data da elaboração do parecer de qualificação da insolvência —cfr. al. i) do n° 2 do art. 186° do CIRE.
16. O recorrente, em sede de declarações em julgamento foi claro e cristalino, quando explicou o porquê de tal facto.
17. Com todo o contexto de insolvência, o qual recorde-se, se deve única e exclusivamente ao arresto do PX..., como aliás melhor o reconhece a douta sentença em crise - Por fim, ainda que o arresto do imóvel onde a sociedade exercia atividade comercial tenha sido causa endógena relevante (quiçá agravante ou mesmo determinante,...) - o recorrente, em manifesto estado psicológico de incapacidade de fazer face à situação, procurou recuperar-se no estrangeiro, onde se deteve por alguns meses, i e, os meses que mediaram as tentativas de apresentação e colaboração com o Exmo. Sr. AI nos presentes autos.
18. A falta aos deveres de apresentação e de colaboração, para efeitos da aplicação da alínea do artigo 186.° CIRE que agora nos debruçamos, não resultar de um simples alheamento do processo, desinteresse ou negligência, mas antes terá de existir a intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência corno culposa, à luz de qualquer das restantes previsões.
19. O que não é manifestamente o caso dos autos e, também assim, atento ao supra exposto, inexiste também possibilidade de se considerar como verificado preenchido o requisito cfr. al. i) do n° 2 do art. 186° do CIRE.
Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.

II — Questões a decidir:
Nos termos do disposto nos art°s 608°, n°2, 609°, n°1, 635°, n°4, e 639°, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
Assente o supra exposto, a questão a decidir no presente recurso é aferir se se verificam os pressupostos de qualificação da insolvência como culposa.

III — Factos provados:
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1) Em 14 de dezembro de 2006, o FB..., SA, requereu a declaração de insolvência da PX... — ..., S.A., por se ter frustrado a execução de um credito sobre a requerida no montante global de 19 153,84 E - cfr. p.i. constante do processo principal, que se dá por integralmente reproduzida.
2) Por sentença prolatada de 21MA12008, a requerida foi declarada em estado de insolvência por sentença transitada em julgado — cfr. 167 a 170.
3) A sociedade PX... — ..., S.A. pessoa coletiva n° 50..., com sede na Avª ... Lisboa, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, por Ap. 32... — cfr. fls. 130 a 132 do CIRE.
4) Para integrar o conselho de administração no quadriénio de 2001/2004 foram designados: - JPC... — presidente; - MMP...; - ENS....
5) A certidão do registo comercial é omissa quanto a menções e depósitos e compreende, para além da matrícula (reduzida a ficha de identificação): ¬Inscrição 1 - Ap. 32... relativa à constituição da sociedade e designação de membros e órgãos sociais; - Inscrição 2 - Ap. 18..., - provisório por natureza — sentença de declaração de insolvência; - Inscrição 3 — AP. 19... — provisória por dúvidas — nomeação de administrador judicial em processo de insolvência.
6) ENS... foi designado administrador nominal de direito para efeitos de constituição do quórum legal do conselho de administração.
7) Era alheio à situação patrimonial e financeira da sociedade, não praticava atos de administração e não participava nas assembleias. 8) O casal FM... administrava em exclusivo a sociedade, sendo JP... em especial a área financeira e MMP... a área comercial.
9) No âmbito do Procedimento Cautelar n° 45…/...4TVLSB-A, movido foi decretado o arresto do PX... (imóvel), local onde a insolvente desenvolvia a atividade, cuja apreensão e entrega à depositária APA..., ocorreu em 21 de dezembro de 2006.
10) No auto de execução da providência cautelar encontram-se inventariados, entre outros bens:
- Verba XVI (Escritório) — onze pastas de arquivo todas na cor amarela de A a Z, onde se lê orçamentos sem efeitos;
- Verba XX (sala de apoio ao escritório) — um cochet composto por aproximadamente noventa pastas de arquivo, sendo algumas vazias e outras com documentação diversas — cfr. fls. 139 a182, cujo teor se dá por reproduzido.
11) A inexistência de instalações para a realização de espetáculos e eventos levou a que a sociedade deixasse de exercer atividade comercial.
12) A insolvente acordou com a RMH..., SA, a utilização do imóvel denominado PX..., em cujas obras estruturais de reconstrução, restauro e conservação investiu entre 2000 e 2002 o montante de PTE 300 000$00 (contravalor 1.500.000,00 €).
13) Pagou pontualmente o preço acordado em tal utilização, no montante mensal de 5 000,00€.
14) Os administradores deixaram de ter acesso ao imóvel a partir da execução da providência, em 21DEC2006.
15) A sociedade ficou sem recheio, existências, mobiliário, cadeiras, mesas dos eventos e todo o equipamento logístico.
16) Por carta datada de 25 de julho de 2008, o Administrador da Insolvência solicitou a ENS... a entrega da documentação contabilística.
17) O Administrador da Insolvência convocou os ex-administradores da insolvente para comparecerem no PX... no dia 12 de novembro, pelas 10h00, a fim de se proceder à apreensão dos bens da insolvente, por cartas remetidas para a Av.' ... Lisboa e Rua ..., Lisboa.
18) Por sentença proferida no Apenso-B foram verificados créditos sobre a insolvente no montante global de 207 856,35 C.
19) Em sentenças proferidas em ações de verificação ulterior de créditos que correram termos por apenso (Apensos I, D, H), foram verificados créditos no montante global de 25 019,44 C.
20) Os bens integrados na massa insolvente foram liquidados pelo montante global de 64 293,35 C.

IV — O mérito do recurso:
Na definição de Luís M. Martins, o incidente de qualificação da insolvência (pleno ou limitado) é um incidente obrigatório de apreciação da conduta do devedor e/ou dos seus administradores, que tem como finalidade a responsabilização dos mesmos nos casos em que existe culpa pela situação de insolvência.
O incidente de qualificação pode ser limitado (art° 191°) ou pleno (art° 188°) e a insolvência pode ser qualificada como culposa (art° 186°), sujeita aos efeitos estatuídos no art° 189/prct. ou fortuita quando, por exclusão de partes, não estão preenchidos os requisitos do art° 186°.
Dispõe o art° 186°, do CIRE, na redação à data vigente, que:
1 — A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 — Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a)Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo
ou em parte considerável, o património do devedor;
b)Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c)Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d)Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e)Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f)Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g)Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h)Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i)Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n° 2 do art° 188°.
3 — Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a)0 dever de requerer a declaração de insolvência; b)A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las
à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo
comercial.
4— O disposto nos n°s 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 — Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.
O tribunal recorrido baseou a sua decisão basicamente em 2 fundamentos: - incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada —cfr. al. h) do n° 2 do art. 186° do CIRE;
- incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e colaboração com o Administrador da Insolvência até à data da elaboração do parecer de qualificação da insolvência —cfr. al. i) do n° 2 do art. 186° do CIRE.
Nos termos do Artigo 640°, n° 1, do Código de Processo Civil, Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
No que toca à especificação dos meios probatórios, estabelece o artigo 640°, n°2, alínea a), que: Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.2011, Álvaro Rodrigues, 1079/07, decidiu-se que A lei impõe ao recorrente que indique (concretamente) os depoimentos em que se funda, não sendo suficiente indicar um conjunto de testemunhas que depuseram a determinado a facto (mesmo que venham devidamente identificadas pelos nomes e outras referências), para depois se concluir, sem mais, que ouvidos os seus depoimentos se deveria decidir diferentemente..
Incumbe ao impugnantc alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão do Tribunal recorrido relativa à matéria de facto.
Por sua vez, no Acórdão do STJ de 9.2.2012, Abrantes Geraldes, 1858/06, decidiu-se que Insurgindo-se contra uma decisão fundada em determinados meios de prova que ficaram concretizados na motivação, era suposto que se aprimorasse na enunciação dos reais motivos da sua discordância traduzidos na análise crítica (e séria) da prova produzida e não na genérica discordância quanto ao ,facto de o tribunal de I' instância ter dado mais relevo a umas testemunhas do que a outras. Ónus esse que deveria passar pela análise conjugada dos diversos meios de prova, relevando os que foram oralmente produzidos e os de outra natureza constantes dos autos..
Os recorrentes fundam genericamente a sua discordância na desvalorização do depoimento testemunhal do TOC, valorizando ao invés o do senhor administrador da insolvência.
O tribunal recorrido formou a sua convicção quanto a este ponto nos seguintes termos: No caso dos autos, a prova é constituída pela documentação junta aos autos (documentos escritos autênticos, autenticados ou particulares - art. 363°, n° 1 do CC) e prova pessoal. No que concerne à prova documental relevam, no essencial, os factos levados a registo na folha de matricula da sociedade
comercial, as sentenças proferidas no processo principal e demais apensos e pacificamente transitadas em julgado, os autos lavrados em juízo e demais documentos particulares não impugnados, bem como factos constatados pelo Sr. Administrador da Insolvência que, no exercício das funções cometidas, atua como um oficial público, ou como uma autoridade pública (cfr. art. 363°, n° 2, do CC).
Já no que à prova pessoal diz respeito, afigura-se que, na generalidade, todos os declarantes e testemunhas revelaram intenção de falar com verdade, isenção e, até, imparcialidade, mas ainda assim há a registar divergências relativamente a factos essenciais por as mesmas não se coadunarem com a documentação carreada para os autos. Com efeito, no que ao incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada, e não obstante no auto de entrega de imóvel ser feita referência a noventa pastas de arquivo, sendo algumas delas vazias e outras com documentação diversa, a afirmação de FNC... - (contabilista certificado) que para a insolvente prestou serviços esporádicos até 2003 e com maior frequência a partir de então até 2006 - de que a contabilidade estava organizada, pois era ele quem remetia os documentos para a empresa que fazia a contabilidade e procedia ao seu arquivamento depois de devolvida, não logrou criar no julgador tal convicção. Na verdade, por uma banda, o administrador JP... FM... faz referência a uma gestão da sociedade tipo merceeiro. Por outra banda, a documentação obtida pelo Administrador da Insolvência junto de Repartição de Finanças revela a omissão de entrega da Declaração de Rendimento - IRC — Mod. 22. E, ainda por outro lado, JC... (ROC), que integrava o órgão social de fiscalização, refere que não
teve acesso aos documentos e apenas estabeleceu alguns contactos com FC.... Ora, exercendo FC... meras funções administrativas na seleção dos documentos a remeter aos serviços de contabilidade e, depois de devolvidos, ao seu arquivamento, não é feita qualquer prova sobre a feitura da mesma e seria natural que o ROC, ainda que não tivesse acesso aos documentos, estabelecesse contacto com os serviços que efetuavam a contabilidade e não quem a arquivava, por só aqueles possuírem os elementos que permitiriam o cabal exercício das funções que lhe foram cometidas. Acresce que, ainda que não de forma determinante na conclusão alcançada, as contas, a terem sido elaboradas, não foram revistas, nem apresentadas a fiscalização e, obviamente, depositadas na Conservatória do Registo Comercial.
Por tudo o que se deixa dito, somos levados a concordar com a conclusão do Sr. Administrador da Insolvência no sentido da inexistência de contabilidade organizada desde a constituição da sociedade até à sua declaração de insolvência..
Revemo-nos integralmente na bem desenvolvida fundamentação do tribunal recorrido e subscrevemos integralmente a mesma. Nada é alegado pelos recorrentes que permita valorizar o depoimento do TOC em sentido inverso ao que fez o tribunal recorrido.
No que tange ao segundo ponto da discordância, incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e colaboração com o Administrador da Insolvência até à data da elaboração do parecer de qualificação da insolvência, o tribunal recorrido fundou a sua convicção nos seguintes termos: No que concerne ao incumprimento de apresentação e colaboração com o administrador da insolvência, temos presente que a 2 de maio de 2007, o Il. Mandatário dos aqui Requeridos refere que MMP... ... reside na Rua ..., em Lisboa. Morada em que, de resto, foi fixada a residência do casal aquando da prolação da sentença declaratória de insolvência e que corresponde à constante do registo de matrícula da sociedade. Apesar de notificados para proceder à entrega imediata ao Administrador da Insolvência dos documentos descritos no n° 4 do segmento decisório, os administradores da insolvente não o fizeram nessa altura, nem posteriormente na sequência da notificação que lhes foi por aquele remetida (v. fls. 191-194 e 213-224). Acresce que, também neste particular JP... FM... disse ter tido conhecimento de cartas remetidas pelo Administrador da Insolvência, sendo que a invocada ausência do país na sequência do arresto apenas terá ocorrido no ano de 2007. Por haver unanimidade em todos os depoimentos e a prova documental a tal não obstar, é de considerar que a designação de ENS... para integrar o conselho de administração teve por único fito o cumprimento dos estatutos no que à composição do mesmo diz respeito. Por fim, ainda que o arresto do imóvel onde a sociedade exercia atividade comercial tenha sido causa endógena relevante (quiçá agravante ou mesmo determinante, uma vez que algumas dividas foram contraídas em momento ulterior) para a declaração de insolvência, temos presentes que tal pedido havia sido apresentado em juízo sete dias antes da execução da providência e consubstanciado em dívida cuja cobrabilidade se havia frustrado em ação executiva, donde ao abrigo dos factos-índice constantes das als. b) e e) do n° I do art. 20° do CIRE..
Mais uma vez, os recorrentes não alegam nada que infirme a convicção, bem fundamentada, do tribunal recorrido. A alegada incapacidade psicológica do recorrente JP... , alegadamente determinante de ausência no estrangeiro por vários meses, é inócua. Como bem refere o tribunal recorrido, foram feitas várias notificações, de que o mesmo teve conhecimento, sem que haja procedido à entrega dos documentos pedidos, sequer com o auxílio dc terceiros. Uma vez mais, revemo-nos e subscrevemos na íntegra a motivação do tribunal recorrido.
Os recorrentes alegaram, finalmente, que a falta aos deveres de apresentação e de colaboração, para efeitos da aplicação da alínea do artigo 186.° CIRE que agora nos debruçamos, não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes terá de existir a intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões. O que não é manifestamente o caso dos autos.
Resulta claramente provado que o comportamento dos administradores foi mais do que, contrariamente ao alegado em recurso, um simples alheamento, desinteresse ou negligência.
Como resulta do AcRG de 4/04/2019, processo n° 109/14.3TBC1-1V-A.G1, relator Pedro Damião e Cunha, Há, porém, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas coletivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente enumerados no n°2 (do art° 186°, do CIRE). Assim, pode-se ler que será considerada culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham (...) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; I) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n° 2, do art° 188°. Trata-se de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, presumindo-se, por isso, iuris et de jure que a insolvência é culposa. (...) Daí que, tal como sucede nas presunções iuris et de jure não exista a possibilidade de prova em contrário, mas ainda que fique dispensada a alegação e consequentemente a prova de qualquer outro facto, faccionando a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa. Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas taxativamente no n°2, do art° 186°, do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como dolosa. De facto, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n°2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Cotejando a matéria de facto dada como provada com as citadas disposições legais, e por tudo o exposto, dúvidas não restam sobre o acerto da decisão recorrida, que assim se mantem integralmente.

V — Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juizes da 1a secção do Tribunal da Relação de
Lisboa em julgar o recurso interposto totalmente improcedente, confirmando a
decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
Lisboa, 26 de novembro de 2019.
Relator: Fernando Barroso Cabanelas
1ª Adjunta: Paula Cardoso
2° Adjunto: Eurico Reis
DECLARAÇÃO DE VOTO
PROC. N.º 1281/06.0TYLSB-1.1.1
VISTO N.º 36/2019 (2)
1. Como resulta claramente do disposto no art.° 130° do CPC 2013 (ou seja, o aprovado pela Lei n.° 41/2013, de 26 de junho), não é licito realizar no processo atos inúteis.
E, por esse motivo, irei ser sucinto na presente declaração de voto.
Nessa conformidade, importa referir, logo à partida, que concordo com o decreto judicial que culmina o acórdão de que esta declaração de voto é uma parte integrante, na medida em que também entendo que as críticas formuladas pelos recorrentes, quer em termos de impugnação da matéria de facto declarada provada em 1a instãncia, quer quanto à subsunção dessa factualidade na compreensão/extensão lógica e ontológica da previsão/estatuição das normas legais aplicáveis - e que são as enunciadas pelo Mmo Juiz a quo na decisão recorrida -, não são idóneas para abalar, nem sequer minimamente, a consistência da argumentação desenvolvida por esse Julgador em 1a instância para fundamentar esses dois segmentos desse julgamento que a este Tribunal Superior coube sindicar.
Todavia, sendo certo que é indesmentivel que, no essencial, as críticas dos apelantes são dirigidas ao elenco de factos que sustentam a decisão recorrida, nas conclusões 18 e 19 das alegações de recurso, é de Direito que se cuida — ou seja, é a fundamentação em matéria de Direito da decisão recorrida que está a ser posta em causa.
E porque assim é, afirmar apenas que «Cotejando a matéria de facto dada como provada com as citadas disposições legais, e por tudo o exposto, dúvidas não restam sobre o acerto da decisão recorrida, que assim se mantem integralmente.», é claramente insuficiente para que se considere cumprido quer o dever de exercer pronúncia acerca de todas as questões (nomeadamente as de natureza jurídica) que as partes tenham submetido
à sua (do Juiz) apreciação que está previsto no n.° 2 do art.° 608° do CPC 2013, quer o dever de
fundamentação imposto pelo disposto no art.° 205° n.° 1 da Constituição da República e no art.° 154° daquele Código de Processo.
Algo mais tinha, pois, que ser escrito.
E não foi, nem compete ao 2° Adjunto do Colectivo aqui suprir essa deficiência/omissão
Em todo o caso e não obstante, sempre se afirma que, sendo o segmento da decisão recorrida através do qual foram elencados os factos provados no processo em causa o objectivo principal das criticas apresentadas nas alegações de recurso e nas conclusões que as culminam e sendo improcedentes todas essas críticas que consubstanciam a impugnação da matéria de facto, porque a fundamentação em matéria de Direito da sentença proferida em 1a instância merece o acolhimento e o sufrágio desta Relação, sempre haveria que, como o foi, confirmada essa sentença.
2. Mas essa não é a única divergência que mantenho com a posição que fez vencimento no acórdão de que esta declaração de voto é parte integrante.
Na verdade, nas Relações, não é apreciado o mérito dos pedidos formulados nos articulados (nomeadamente na petição inicial), mas sim a validade das críticas deduzidas pela parte recorrente contra o que, por sentença ou decisão, foi decretada em 1a instância.
Em 2a instância o que se delibera (ou decide, se em singular) é se a apelação é ou não (e no todo ou tão só em parte) procedente e, conforme o caso, anula-se, revoga-se ou confirma-se a decisão (sentença ou outro despacho) recorrida.
Tal como, aliás, consta do Dispositivo do acórdão de que esta declaração de voto é parte integrante.
A decisão recorrida, não é, de todo, mais uma peça processual que consta dos autos, ou uma peça processual igual às outras ou com a mesma dignidade institucional que as outras.
Mas porque assim é - e realmente é -, tal implica que é indispensável transcrever integralmente o decreto judicial do sentenciamento da 1a instância e o elenco de factos declarados provados e não provados na acção (obviamente se o tiverem sido - isto é, se existir uma expressa elencação dos factos declarados provados e não provados).
Efectivamente, se são transcritas - e bem - as conclusões das alegações dos recorrentes e as contra-alegações dos recorridos — novamente, quando estas existem -, por que razão não deverá ser integralmente transcrito, repito, o decreto judicial da decisão apelada e a descrição da factualidade provada que nela é igualmente feita (a não ser que esse segmento não exista)?
É que as alegações das partes inscritas nos articulados que as mesmas fizeram juntar ao processo não são factos - são alegações.
Num processo só está provado aquilo que o Juiz declara que está provado (sem prejuízo, claro, de essa decisão ser anulada, alterada ou revogada na sequência de apelação na qual se formule uma impugnação da matéria de facto, mas só nesse caso e se essa impugnação for procedente).
Indubitavelmente, mais não seja por respeito pelo trabalho do Juiz de la instância, que é tão Juiz como os Desembargadores e os Conselheiros, essa transcrição é indispensável.
Se algum Juiz é o primeiro a desrespeitar o trabalho e o estatuto institucional de outros Juízes, como pode esse alguém querer que outro alguém o respeite ou que respeite os Juizes na sua globalidade?
As decisões/deliberações judiciais são, todas elas, actos de Soberania do Estado.
Logo, de facto, essa transcrição integral é mais do que uma questão de mero respeito; trata-se de deixar bem claro, por razões de transparência e de cumprimento do dever de fundamentação, qual é o exacto conteúdo do acto que está a ser impugnado.
É que os sujeitos processuais não são, de todo, os únicos destinatários das decisões judiciais - há também que ter em conta a percepção que a Comunidade tem dos actos dos Juízes,
Dai a publicidade da audiência e a publicação em sites das sentenças e dos acórdãos dos Tribunais.
E daí, repete-se, a necessidade da transcrição integral, nos acórdãos ou nas decisões singulares proferidas em sede de recurso, desses essenciais segmentos da decisão recorrida antes referenciados.
O que não foi feito no acórdão de que esta declaração de voto é parte integrante.
Claro que, parafraseando o personagem desempenhado pelo actor Vasco Santana no filme A canção de Lisboa, tal como os chapéus, opiniões (jurídicas e das outras) há muitas.
E há muita gente, novamente usando uma frase popular, com pano no colarinho, que não partilha esta interpretação do Direito e esta Mundivisão agora afirmadas.
Só que, sendo cada Juiz um ser humano livre e independente (até porque é isso que lhe é exigido pela posição social e institucional que lhe foi atribuída pela Comunidade em nome da qual tem o dever de administrar a Justiça), não é — não sou — obrigado a subscrever opiniões e deliberações que não merecem a sua - a minha - concordância.
Lisboa, 29/10/2019
(Eurico José Marques dos Reis)
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