Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Cível
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 - ACRL de 27-06-2019   Presunção de insolvência culposa.
1 - A presunção de insolvência culposa estabelecida no art° 186° n° 2 do CIRE constitui uma solução legislativa suficientemente coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1° n° 3 alínea a) e no artigo 2° n° 5 da Lei de Autorização Legislativa 39/2003, de 22/08, legitimadoras de desenvolvimentos normativos compatíveis, como o que é prescrito no artigo 186.°, n.° 2, do CIRE. Por conseguinte, não se vê que o art° 186° n° 2, al. i) do CIRE seja orgânica ou materialmente contrário à Constituição.
2 - O art° 186° n° 2, al. i) do CIRE, exige a reiteração da violação do dever de apresentação ou colaboração, que deve ser interpretada não no sentido meramente quantitativo (o número de vezes de incumprimento do dever) mas, acima de tudo, em sentido qualitativo: relevante é a gravidade da violação do dever de apresentação ou de colaboração, aferida em termos de implicar consequências relevantes para a insolvência.
3 - Perante a norma do art° 186° n° 3, al. b) do CIRE conclui-se que o legislador prescindiu da alegação e da prova do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
4 - Nada impede a aplicação das alíneas b) e e) do n° 2 do art° 189° do CIRE na redacção dada pela Lei 16/2012, à situação dos autos, apesar da insolvência haver sido decretada em data anterior à do início da vigência desta Lei, uma vez que determinada a competência da lei nova com fundamento na circunstância de o facto constitutivo da situação jurídica se passar sob a sua vigência, a mesma lei seja aplicada a factos passados que ela assume como pressupostos impeditivos ou desimpeditivos relativamente à questão da validade ou admissibilidade da constituição da situação jurídica; e pertencem ao número de factos-pressupostos cuja localização no tempo não influi sobre determinação da lei aplicável, ente outros, os efeitos inibitórios e outros de certas penas (relativas à aquisição de estatuto, de comerciante e relativas à inibições, etc.) quando não sejam obrigatoriamente ligados a condenação penal.
(Sumário elaborado pelo relator)
Proc. 311/08.7TBHRT-A.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Adeodato Brotas - Fátima Galante - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
_______
Proc. 311/08.7TBHRT-A.L1 (vindo do Juízo de Competência Genérica da Horta, Comarca dos
Açores)
Apelação nos próprios autos.
Apelantes: BJT...
LFT....
Apelada: ATP..., Lda.
Relator: Juiz Desembargador Adeodato Brotas.
1 Adjunta: Juíza Desembargadora Fátima Galante.
2° Adjunto: Juiz Desembargador Gilberto Martinho.

Sumário (elaborado pelo relator)
1-A presunção de insolvência culposa estabelecida no art° 186° n° 2 do CIRE constitui uma solução legislativa suficientemente coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1° n° 3 alínea a) e no artigo 2° n° 5 da Lei de Autorização Legislativa 39/2003, de 22/08, legitimadoras de desenvolvimentos normativos compatíveis, como o que é prescrito no artigo 186.°, n.° 2, do CIRE. Por conseguinte, não se vê que o art° 186° n° 2, al. i) do CIRE seja orgânica ou materialmente contrário à Constituição.
2- O art° 186° n° 2, al. i) do CIRE, exige a reiteração da violação do dever de apresentação ou colaboração, que deve ser interpretada não no sentido meramente quantitativo (o número de vezes de incumprimento do dever) mas, acima de tudo, em sentido qualitativo: relevante é a gravidade da violação do dever de apresentação ou de colaboração, aferida em termos de implicar consequências relevantes para a insolvência.
3- Perante a norma do art° 186° n° 3, al. b) do CIRE conclui-se que o legislador prescindiu da alegação e da prova do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
4- Nada impede a aplicação das alíneas b) e e) do n° 2 do art° 189° do CIRE na redacção dada pela Lei 16/2012, à situação dos autos, apesar da insolvência haver sido decretada em data anterior à do início da vigência desta Lei, uma vez que determinada a competência da lei nova com fundamento na circunstância de o facto constitutivo da situação jurídica se passar sob a sua vigência, a mesma lei seja aplicada a factos passados que ela assume como pressupostos impeditivos ou desimpeditivos relativamente à questão da validade ou admissibilidade da constituição da situação jurídica; e pertencem ao número de factos-pressupostos cuja localização no tempo não influi sobre a
determinação da lei aplicável, ente outros, os efeitos inibitórios e outros de certas penas (relativas à aquisição de estatuto, de comerciante e relativas à inibições, etc.) quando não sejam obrigatoriamente ligados a condenação penal.
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1-Relatório.
1-Por apenso aos autos de insolvência de AFT..., Lda, veio o Administrador da Insolvência apresentar parecer promovendo a declaração de insolvência culposa e que devem ser afectados por tal declaração BJT... e SSG....
Alegou, em síntese, que apesar de terem sido notificados da sentença de declaração de insolvência e para procederem ao cumprimento das obrigações legais daí decorrentes, dada disseram. Além disso não cumpriram o dever de requerer a declaração de insolvência.
2- Foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.
3- O Ministério Público concluiu da mesma forma.
4- Notificada a credora/requerente pugnou pela declaração de insolvência culposa, requerendo ainda que fossem abrangidas por essa declaração de insolvência culposa LFT... e BJT..., gerentes de direito e de facto da insolvente.
5-Citados os visados pela declaração de insolvência culposa, não apresentaram oposição.
6-Posteriormente, veio ainda a credora requerente, a fls 182 e segs, requerer que fosse ainda abrangida pela declaração de insolvência culposa, SFT..., dizendo que ela era gerente de facto da sociedade insolvente.
7-Foi elaborado saneador e enunciados o objecto do litígio e os temas de prova.
8-Realizou-se a audiência final em diversas sessões.
9- Foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
Decisão:
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições conjugadas dos art.s 188; 189; 191; 18; 20° e 3°, todos do GIRE, decide-se qualificar como culposa a insolvência de AFT..., Lda., e, consequentemente:
1° - Declarar afectados pela qualificação da insolvência LFT... BJT...;
2° - Determinar a inibição dos afectados para administrar patrimónios de terceiros, por um período de dois anos;
3° - Determinar a inibição dos mesmos para o exercício do comércio durante um período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
4° - Determinar a perda de quaisquer créditos que os afectados tenham sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, se for o caso;
5° - Condenar os afectados, solidariamente, a indemnizar todos credores da sociedade insolvente que tenham reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente..
10- Inconformados, os visados BJT... e LFT..., interpuseram cada um recurso daquela decisão, de teor igual quanto às alegações e conclusões ¬optando-se por isso por reproduzir apenas uma delas - formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª Em vez de constar nos factos provados que: Inicialmente, eram sócios da ora insolvente BJT..., sua irmã, SFJ..., e sua cônjuge, SG..., deve constar que: Inicialmente, eram sócios da ora insolvente BJT... e sua cônjuge, SG....
2.ª Em vez de resultar provado na douta sentença que Em 28.09.06, BJT... e sua irmã SFJ..., cederam as respectivas quotas aos seus pais, LFT... e JSM... deve ficar a constar na douta sentença que: Em 28.09.06, BJT... e sua ex-mulher, SSG..., cederam as respectivas quotas aos seus pais, LFT... e BJT....
3.ª As diferenças assinaladas resultam da análise da certidão do registo comercial da insolvente, sendo que tal matéria de facto foi fixada pela Mm.ª Juiz do Tribunal a quo com base em tal certidão, mas erradamente.
4.ª No n.º 2 do artigo 186.º do C.I.R.E. descrevem-se comportamentos dos administradores do devedor, que não seja pessoa singular, que determinam sempre a qualificação da insolvência como culposa.
5.ª Trata-se de uma presunção inilidível,
6.ª 0 tribunal a quo considerou provado que: Nenhum dos visados pela insolvência respondeu ou prestou qualquer colaboração ao Senhor Administrador da Insolvência no âmbito dos autos principais.
7.ª Caso houvesse factos que permitissem tirar tal conclusão, estes deveriam constar da matéria de facto provada. E não constam.
8.ª Trata-se de uma conclusão sem sustentação factual.
9.ª Ora, tal sentença é, nessa parte, nula, nos termos do disposto no artigo 615.º,n.º 1 al a) do C.P.C., nulidade que aqui e agora se argui.
10.ª Todavia, caso se considere verificado o disposto na al I) do n.º 2 do artigo 186.º do C.I.R.E., o que por mera hipótese se admite, sem conceder, sempre se dirá o seguinte:
11.ª Ao presumir-se, automaticamente, a culpa, no artigo 186.º, n.º 2 do C.I.R.E., e ao cominar-se, nesse caso, com as consequências previstas no artigo 189.º, n.º 2 do C.I.R.E., o legislador ordinário ultrapassou e violou os poderes legislativos conferidos pela lei de autorização legislativa n.2 39/2003, de 22 de Agosto.
12.ª 0 artigo 186.º, n.º 2 do C.I.R.E. é orgânica e materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18.º, 26.º, 165.º e 198.º da Constituição da República Portuguesa.
13.ª Resulta da matéria de facto provada que: A insolvente deixou de proceder ao depósito e registo da prestação de contas na Conservatória do Registo Comercial, desde 2003.
14.ª 0 Tribunal a quo considerou que se encontra preenchido o requisito aludido na alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do C.I.R.E.
15.º Prevê-se aqui uma presunção ilidível (juris tantum)
16.ª Para que se possa qualificar de culposa a própria insolvência, há que demonstrar que dessa conduta resultou a insolvência ou o seu agravamento.
17.ª Esta é a posição da esmagadora maioria da jurisprudência publicada e da posição da maioria da doutrina.
18.ª Da leitura dos factos provados não resulta provado um nexo de causalidade entre a falta de apresentação, entrega e registo de contas anuais desde 2003 e o agravamento da situação de insolvência da AFT... Lda.
19.ª A factualidade provada não reúne virtualidades para preencher a previsão do artigo 186.º, n.º 3, al b) do C.I.R.E..
20.ª Não vindo, assim, demonstrados os requisitos da insolvência culposa, a mesma deve ter-se como fortuita.
21.ª A Mma. Juiz do Tribunal a quo qualificou a insolvência da AFT..., Lda. como culposa e fixou as suas consequências.
22.ª Duas das consequências fixadas foram as de: Condenar os afectados, solidariamente, a indemnizar todos credores da sociedade insolvente que tenham reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente e de determinar a inibição dos afectados para administrar patrimónios de terceiros, por um período de dois anos.
23.ª Estas consequências estão previstas nas alíneas e) e b) do n.º 2 do artigo 189.º do C.I.R.E. e foram introduzidas apenas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
24.ª Ora, nos autos estão em causa condutas até 2008, portanto, condutas anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20/04.
25.ª Assim, é aplicável ao caso dos autos, a redacção do C.I.R.E. prévia às alterações introduzidas por aquele diploma legal, atento o disposto no artigo 12.º do Código Civil.
26.ª0ra, atendendo ao citado preceito legal, dispondo a lei, no caso dos autos, sobre os efeitos da declaração de insolvência culposa, não há dúvida de que a nova lei só se aplica aos factos novos. 27.ªAssim, a condenação do ora recorrente, efectuada pelo Tribunal a quo, a, solidariamente, indemnizar todos os credores da sociedade insolvente que tenham reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente e de inibir, os afectados pela insolvência, para administrarem patrimónios de terceiros por um período de 2 anos, são manifestamente ilegais, porque contrárias ao disposto no artigo 12.º do Código Civil.
28.ª A douta sentença viola o disposto nos artigos 186.º, n.ºs 2 al i) e 3 al.b) do C.I.R.E., artigo 12.º do Código Civil e artigos 18.º, 26.º, 165.º e 198.º todos da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve a douta sentença recorrida ser revogada por douto acórdão que a considere nula. Caso assim se não entenda, o que por mera hipótese se admite, sem conceder, a sentença deve ser revogada por douto acórdão que considere a insolvência fortuita. Ainda para a hipótese de se considerar a insolvência culposa, o que por mera hipótese se admite, sem conceder, sempre se dirá que a sentença é ilegal na medida em que aplicou retroactivamente ao presente incidente o disposto na lei n.° 16/2012, de 20 de Abril, e por isso, deve ser revogada e substituída por outra que elimine os efeitos de tal aplicação.
11-A apelada contra-alegou, admitindo se proceda à correcção dos nomes dos gerentes da insolvente, visados pela declaração de insolvência culposa. No mais, pugna pela improcedência dos recursos.

II- Fundamentação.
1-Obiecto do Recurso.
É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art° 635° n° 2 do CPC/13) pelas conclusões (ares 635° n° 4, 639° n° 1 e 640° do CPC/13) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art° 636° CPC/13) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art° 633° CPC/13) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, face das conclusões apresentadas pelos recorrentes são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- Erro na apreciação da prova quanto à identificação dos visados com a declaração de insolvência culposa;
b)- Nulidade da sentença por não conter fundamentação de facto quanto à falta de colaboração com o administrador da insolvência;
c)- A inconstitucionalidade dos art°s 186° n° 2 e 189° n° 2 do CIRE;
d)- Inexistência de nexo causal entre a falta de apresentação de contas e a insolvência, pelo que a insolvência devia ter sido declarada furtuita;
e)- Ilegalidade da sentença por aplicação retroactiva da Lei 16/2012, de 20 de Abril, quanto às consequências da declaração de insolvência culposa.
Vejamos cada uma destas questões.
Antes, porém, importa ter em conta a decisão sobre a matéria de facto da 1a instância.
2- Matéria de Facto.
A ia instância decidiu a seguinte matéria de facto:
Factos Provados:
Dos Pareceres do Senhor Administrador de Insolvência e do Ministério Público, do requerimento da
credora requerente, da discussão da causa e dos demais elementos dos autos, ficaram provados os
seguintes factos:
1.A insolvente era uma sociedade comercial que se dedicava à actividade de serviços fúnebres e realização de funerais.
2.Inicialmente, eram sócios da ora insolvente BJT..., sua irmã, SFJ..., e sua cônjuge, SG....
3.Em 28.09.06, BJT... e sua irmã, SFJ..., cederam as respectivas quotas aos seus pais, LFT... e JSM.... 4.Antes e depois da venda da respectiva quota, eram BJT... e LFT... quem, relativamente à insolvente, tomava decisões, designadamente, quanto aos pagamentos a efectuar; as aquisições a fazer; fornecedores a escolher; encomendas a realizar; preços a negociar; e a reclamações a dirigir.
5.Em 06.09.05, BJT... apresente queixa na PJ, na qualidade de gerente da ora insolvente, participando alegado dumping, invocando que Há cerca de dois meses (...) não tem realizado quaisquer serviços, porquanto a outra única empresa que presta serviços fúnebres naquela ilha, monopoliza todos os serviços (...) o denunciante encontra-se lesado e em vias de abrir falência, face ao esquema que foi ilicitamente montado pela agência denunciada e aos citados funcionários do Hospital da Horta, pelo que deseja o respectivo procedimento criminal contra os mesmos.
6. Tal denúncia despoletou o Inquérito 84/05.5JAPDL que veio a ser arquivado por despacho proferido em 26.05.09.
7.Nenhum dos visados pela insolvência respondeu ou prestou qualquer colaboração ao Senhor Administrador da Insolvência no âmbito dos autos principais.
8. O estabelecimento da insolvente deixou de laborar em data não concretamente apurada de 2007.
9.BJT... já tinha tido uma Agência do ramo entre 14.03.02 e 28.07.03: a AMM..., Lda.
10. A insolvente deixou de proceder ao depósito e registo da prestação de contas na Conservatória do Registo Comercial, desde 2003.
Factos Não Provados:
1.0s visados pela insolvência ou parte deles retiraram por sua iniciativa os bens - urnas e material acessório -, que se encontravam na agência quando a mesma encerrou ao público. 2. SG..., SFT... e JSM... tomavam todas ou algumas das decisões elencadas no ponto dos Factos Provados ou quaisquer outras com relevo para a vida da insolvente.

3- Apreciação das questões enunciadas.
3.1- Erro na apreciação da prova quanto à identificação dos visados com a declaração de insolvência culposa.
Segundo os recorrentes (repete-se, cada um apresentou alegações separadas mas perfeitamente iguais quanto ao conteúdo) os nomes dos sócios iniciais da insolvente referidos no ponto 2° da matéria de facto e, os nomes dos cessionários das quotas societárias mencionados no ponto 3° dos factos provados estão incorrectos, como decorre da certidão da matrícula da sociedade, devendo tais factos serem corrigidos. A apelada concorda com a necessidade dessa correcção.
Pois bem, antes de mais, convém ter presente o art° 662° n°1 do CPC/13, do qual resulta que a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da ponderação dos documentos, depoimentos e relatórios, complementados pelas regras da experiência. Significa isto que daquele preceito resulta que a Relação deve assumir-se como um verdadeiro tribunal de instância e, por isso, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontrando motivos para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem na matéria provada e não provada
(Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3' edição, pág. 244 e seg.).
Dito isto, vejamos o caso.
Ora, da análise da matrícula da insolvente (fls 192 e seg.) resulta que os sócios iniciais da sociedade insolvente, AFT..., Lda, eram BJT..., com uma quota de 3 000€ e, SSG..., na altura sua cônjuge — aliás como decorre também da certidão do assento de nascimento do BJT..., e respectivo averbamento n° 3, de 07/02/2009, a fls 188 - com uma quota de 2 000€ (Ap. 1/031217). E esses dois sócios cederam as suas quotas, respectivamente, a BJT…
(Ap. 4/200…) e a LFT... (Ap. 05/200…), pais do BJT... (assento de nascimento a fls 187).
Por conseguinte, sem necessidade de outras considerações, conclui-se que deve proceder a pretendida correcção dos pontos 2° e 3° dos Factos Provados, que passam a ter a seguinte redacção:
2°- Inicialmente eram sócios da ora insolvente BJT... e sua cônjuge SSG....
3°- Em 28/09/2006, BJT... e SSG... cederam as suas quotas, respectivamente a BJT... e a LFT....

3.2- Nulidade da sentença por não conter fundamentação de facto quanto à falta de colaboração com o administrador da insolvência.
Entendem os apelantes que a afirmação constante do ponto 7° dos Factos Provados — Nenhum dos visados pela insolvência respondeu ou prestou qualquer declaração ao Senhor Administrador da Insolvência no âmbito dos autos principais — não tem qualquer sustentação factual, não se podendo retirar essa conclusão dos factos considerados provados e, por isso, a sentença é nula, nos termos do art° 615° n° 1, al. a) do CPC/13, por não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão.
A apelada defende que esse facto se retira do relatório do Administrador da Insolvência e do depoimento que ele prestou em julgamento.
Cumpre apreciar.
É importante compreender que a falta de fundamentação susceptível de integrar a nulidade da sentença é apenas a que consiste na falta absoluta de fundamentos, quer respeitantes a factos quer ao direito. A doutrina e a jurisprudência são unânimes nesse sentido.
Por isso, a motivação incompleta, deficiente ou até errada não produz a nulidade da sentença, apenas a sujeitando ao risco de ser revogada ou alterada (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8' edição, Almedina, pág. 53).
Ou seja, para que ocorra nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto é necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considera provados.
Ora, no caso dos autos, a P instância indicou os factos que considerou provados e fundamentou-os de modo suficientemente compreensível.
Diferente é a questão de saber se esse facto poderia ou não ser tido como provado.
Mas isso, não integra o vício de nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia ou, tão pouco, em vício de falta (absoluta) de fundamentação. Tais situações reconduzem-se, antes, a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.°, n.° 4, 2.3 parte do CPC/13, aplicável ao tribunal de recurso.
O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes.
No caso dos autos a juíza a quo fundamentou a factualidade considerada provada no ponto 7°, nos elementos constantes do processo de insolvência: Foram determinantes os elementos dos autos que permitem compreender que os visados, apesar de notificados, nunca prestaram colaboração ao processo em geral nem ao Senhor Administrador de Insolvência em particular. Questionados a propósito, os visados não souberam responder.
Ora, os apelantes não puseram em causa estes meios de prova indicados pela juíza a quo na fundamentação da decisão da matéria de facto. Limitaram-se a referir que não existe fundamentação de facto para a falta de colaboração com o administrador.
Em suma: não se verifica a pretendida nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto.
3.3- Passemos à terceira questão enunciada: A inconstitucionalidade dos art°s 186° n° 2, e 189° n° 2 do CIRE.
Invocam os apelantes que o legislador ordinário, ao estabelecer presunções inilidíveis de insolvência culposa no art° 186° n° 2 do CIRE e ao cominar os visados com as consequências previstas no art° 189° n° 2 do CIRE, ultrapassou os poderes legislativos conferidos pela Lei de Autorização Legislativa 39/2003, de 22/08, o que se traduz em inconstitucionalidade orgânica e material, porque a possibilidade de introdução aos limites à capacidade das pessoas apenas pode ser legislada pela Assembleia da República.
A apelada, invocando as decisões de dois acórdão do Tribunal Constitucional, pugna pela improcedência da pretendida inconstitucionalidade.
Importa analisar.
Entendemos que a razão, nesta questão concreta, está do lado da apelada.
Na verdade, o Tribunal Constitucional n° 564/07, de 13/11/2007 (relatado por Joaquim de Sousa Ribeiro) analisou a questão de saber se o CIRE, aprovado pelo DL 53/2004, de 18/03, extravasou da Lei de Autorização Legislativa n° 39/2003, de 22/08 e, conclui pela negativa.
Argumentou-se nesse acórdão que o art° 186° n° 3 do CIRE ...limita-se a estabelecer uma presunção de culpa grave em face do incumprimento de certos deveres: o de requerer a declaração de insolvência (alínea a)) e o de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial (alínea b)). Deveres que, sendo, embora, de carácter formal, permitiriam, presuntivamente, a ser cumpridos, a detecção mais precoce da situação real da empresa, de insolvência ou de risco de insolvência, assim se evitando o agravamento dessa situação. O seu incumprimento é, assim, razoavelmente indiciador de, no mínimo, um grave desleixo na actuação gestionária, levando a admitir (mas com carácter de presunção juris tantum, rebatível por prova em contrário) estar preenchido o requisito de culpa grave, forma de culpa qualificada, exigível, em alternativa ao dolo, tanto pela lei de autorização (n.° 6 do artigo 2.0), como pelo GIRE (artigo 186.°, n.° 1).
Mais se argumenta nesse acórdão que ...mantendo intocado o regime substantivo fixado na lei de autorização, o n.° 3 do art. 186.° do CIRE adiciona-lhe uma norma de cunho processual, que em nada contende com aquele regime, antes verdadeiramente se harmoniza com a sua razão inspiradora.
E continua o acórdão mencionado: Nem se diga, em contrário, que em parte alguma a Lei n.° 39/03 autorizou explicitamente a criação desta presunção de culpa. Não o fez, nem, pelos motivos expostos, o tinha que fazer. Essa solução legislativa está suficientemente coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1.°, n.° 3, alínea a), e no artigo 2.°, n.° 5, daquela lei, legitimadoras de desenvolvimentos normativos compatíveis, como o é o prescrito no artigo 186.°, n.° 3, do CIRE, com a regulação pré-fixada.
E conclui o acórdão Em face de tudo o que fica dito, é de concluir que não merece acolhimento a arguição de inconstitucionalidade orgânica da norma contida neste artigo, por desrespeito dos limites materiais da autorização legislativa dada pela Lei n.° 39/2003, de 22 de Agosto.
Ora a doutrina desse acórdão é perfeitamente aplicável ao art° 186° n° 2 do CIRE: a presunção de insolvência culposa estabelecida no art° 186° n° 2 do CIRE constitui uma solução legislativa suficientemente coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1.°, n.° 3, alínea a), e no artigo 2.°, n.° 5, daquela lei de Autorização Legislativa, legitimadoras de desenvolvimentos normativos compatíveis, como o é o prescrito no artigo 186.°, n.° 3, do CIRE e com o n° 2 do mesmo preceito legal.
Por conseguinte, não se vê que o art° 186° n° 2, al. i) do CIRF. seja orgânica ou materialmente contrário à Constituição.
Embora os apelantes não o digam expressamente, parecem pretender se considere a inconstitucionalidade do art° 189° n° 2 do CIRE, na parte em que comina os visados com a declaração de insolvência culposa, com as medidas aí especificadas.
Pois bem, o art° 189° n° 2 do CIRE, na redacção inicial, dada pelo DL 53/2004, de 24/03, foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral pelo acórdão do Tribunal Constitucional n° 173/2009, de 02/04/2009, por violação dos art°s 26° e 18° n° 2 da CRP ... na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.
Porém, o legislador, através da Lei 16/2012, de 20/04, procedeu a alterações àquele normativo declarado inconstitucional e acomodou-se (expressão de Carvalho Fernandes/João Labareda, CIRE Anotado, 3a edição, pág. 693) àquela declaração de inconstitucionalidade do acórdão 173/2009, acolhendo a inibição, rectius limitação, das pessoas afectadas para administrarem património de terceiros.
A declaração de inabilitação de qualquer pessoa - actualmente a medida de acompanhamento de maior art°s 138° e segs. do CC na redacção da Lei 49/2018, de 14/08 - é uma medida que se destina a proteger o inabilitado e não o património de terceiros e, por isso, o art° 189° n° 2 do CIRE, na redacção do DL 53/2004, era materialmente desadequada e teleologicamente incorrecta ao impor que o juiz declarasse a interdição pessoal do visado quando, o que se pretende é a protecção de patrimónios de terceiros.
A inibição ou limitação da capacidade de administrar patrimónios alheios é uma medida preventiva para esses patrimónios de terceiros - que ficam a salvo de ser administrados por quem já demonstrou não possuir capacidade/competência para os administrar — e simultaneamente regeneradora do visado, obrigando-o a reflectir, durante o tempo de duração da incapacidade de administração, sobre a sua actuação censurável.
Portanto, com as alterações dadas pela Lei 16/2012, desapareceu a razão que levou à declaração de inconstitucionalidade da norma do art° 189° n° 2 do CIRE na versão do DL 53/2004.
Por conseguinte, não vislumbramos razão para considerar art° 189° n° 2 do CIRE na redacção dada pela Lei 16/2016, contrário à Constituição.
3.4- Passemos a outra questão: Inexistência de nexo causal entre a falta de apresentação de contas e a insolvência, pelo que a insolvência devia ter sido declarada furtuita.
Segundo os apelantes, dos factos provados não resulta que a falta de apresentação, entrega e registo de contas anuais desde 2003 causaram a situação de insolvência ou contribuíram para o seu agravamento, não se verificando assim a previsão do art° 186° n° 3, al. b) do CIRE.
A apelada entende que a não prestação de contas anuais nem o respectivo depósito na Conservatória agravou a situação de insolvência porque, se tomasse conhecimento da verdadeira situação financeira da insolvente por consulta às contas jamais teria fornecido material no valor de 18 342,51€.
Vejamos quem tem razão.
Na sentença sob recurso, a juíza a quo fundou a sua decisão, em primeira linha, na verificação da situação do art° 186° n° 2, al. i) do CIRE e, subsidiariamente, fundamentou-a na previsão da norma do art° 186° n° 3, al. b) do CIRE: incumprimento da obrigação de elaborar contas anuais, submetê-las à devida fiscalização e depositá-las na Conservatória Comercial.
É importante analisar esses dois fundamentos usados na sentença sob recurso para qualificar a insolvência como culposa.
Vejamos.
O art° 186° do CIRE recorre, na fixação do conceito de insolvência culposa, a duas vias: no n° 1, é dada a noção geral do instituto, que os IN 2 e 3 complementam e concretizam por recurso a presunções.
De acordo com o n° 1, a insolvência é culposa quando da sua criação ou agravamento resulte de comportamento doloso ou com culpa grave do devedor, mas também dos seus administradores, de direito ou de facto.
O art° 186° n° 2 do CIRE elenca situações de facto que, provadas, conduzem a uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa. Estabelecem-se, nesse preceito, presunções de insolvência culposa, visto que o legislador afirma que a insolvência se considera sempre culposa se se verificar algum dos comportamentos elencados nas diversas alíneas do n° 2. (Cf. Luís Carvalho Fernandes, A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, Themis, 2005, edição especial, Novo Direito da Insolvência, pág. 94).
Tem vindo a ser decidido que perante a verificação de cada uma das situações previstas nas diversas alíneas do n° 2 do citado art. 186°, a insolvência é sempre considerada como culposa, sem necessidade da demonstração do nexo de causalidade a que se reporta o n.° 1 do mencionado preceito, por aquela norma não presumir apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a actuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência. (Cf. TRP, de 27/02/2014, Leonel Serôdio; TRC, de 28/05/2013, Moreira do Carmo, ambos em www.dgsi.pt; na doutrina, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3a edição, pág. 248 e seg.)
Não obstante, afigura-se-nos que há necessidade de apreciação individual de cada uma das presunções tipificadas nas diversas alíneas do n° 2 do art° 186° do CIRE (Cf. Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, O problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português, 2009, pág. 373 e seg.).
Ora, no que toca à alínea i) do preceito, estamos perante causa puramente objectiva da insolvência culposa (Rui Estrela de Oliveira, Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, Julgar n° 11, Maio/Agosto de 2010, pág. 241). Para ...fazer funcionar a presunção da alínea i) do n° 2 basta que seja alegada e provada a literal factualidade com virtualidade para preencher a hipótese normativa da alínea, não sendo necessário invocar qualquer facto para preencher os pressupostos da insolvência culposa constantes da noção geral do n° I, designadamente o nexo de causalidade entre tais comportamentos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência. (Rui Estrela de Oliveira, Uma brevíssima incursão..., cit., pág. 242).
Essa presunção, inilidível da alínea i) do n° 2 do art° 186° do CIRE, consiste no incumprimento, de forma reiterada, do dever de colaboração, até à data do parecer referido no art° 188° n° 3 do CIRE.
No caso, apurou-se que nenhum dos visados respondeu ou prestou qualquer colaboração ao Administrador de Insolvência. O art° 83° do CIRE refere-se, precisamente, aos deveres de apresentação e de colaboração. O Administrador da Insolvência, no Parecer a que se reporta o art° 188° do CIRE, disse que os legais representantes da insolvente, apesar de terem sido notificados da sentença de declaração de insolvência e para procederem no sentido de cumprimento das obrigações legais que decorrem da declaração de insolvência, nada disseram.
A norma fala em reiteração do dever de apresentação ou de colaboração, que, como vimos, funciona como factor de presunção de culpa e de nexo de causalidade da insolvência culposa.
Pois bem, deve estabelecer-se o sentido e alcance da expressão de forma reiterada, lançando mão da teleologia do preceito e do espírito do sistema. Assim, cremos que essa reiteração deve ser interpretada não no sentido meramente quantitativo (o número de vezes de incumprimento do dever de apresentação ou de colaboração), mas, acima de tudo, em sentido qualitativo: relevante é a gravidade da violação do dever de apresentação ou de colaboração, aferida em termos de consequências para a insolvência. A omissão da obrigação de prestar informações, ainda que verificada por mais que uma vez, é irrelevante se essas informações não forem necessárias nem relevantes para o bom desiderato do processo falimentar. Aliás, o art° 83° do CIRE refere mesmo a obrigação de ...fornecer todas as informações relevantes para o processo... (art° 83° n° 1, al. a) do CIRE.
Ora, no caso dos autos apurou-se que nenhum dos visados respondeu ou prestou qualquer colaboração ao Administrador da Insolvência. O que significa uma ausência total de colaboração e, por isso, tem de considerar-se como uma omissão relevante e grave do dever de colaboração, permitindo preencher a previsão da norma do art° 186° n° 2, al. i) do CIRE.
Tanto basta para qualificar a insolvência como culposa.
Ainda assim, vejamos ainda o segundo argumento que, de resto, constitui questão a tratar em sede de objecto do recurso.
De acordo com a sentença sob escrutínio, a falta de elaboração de contas, sua submissão à fiscalização e depósito na Conservatória contribuiu, de modo significativo, para o arrastar da situação das dívidas, levando alguns parceiros a manter a confiança e, consequentemente, a praticar actos prejudiciais a o respectivo património.
Os apelantes insurgem-se contra este entendimento dizendo que não ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a falta de elaboração de contas, sua sujeição à fiscalização e depósito na Conservatória e a contribuição ou o agravamento da situação de insolvência.
Na sentença, a juíza a quo, aderindo a doutrina que indica, escreveu: ...pese embora o nexo entre essas omissões e a ocorrência da insolvência ou o seu agravamento não ser evidente e imediato, não é impossível estabelecer essa relação, na medida em que, por exemplo, a referida omissão pode contribuir para o desconhecimento, seja dos sócios seja dos parceiros no mercado, de uma eventual situação económica perigosa da devedora, que se fosse conhecida poderia ocasionar medidas correctivas, preventivas da insolvência ou atenuadoras dos seus efeitos. Ora. Foi justamente o que sucedeu no caso dos autos com o credor requerente que, sem acesso a informação, continuou a confiar.
Ora bem, de acordo com o art° 186° n° 3, al. b) do CIRE, Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto...tenham incumprido: A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete-las à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial.
A primeira pergunta que desde logo se coloca é saber se desta norma resulta a necessidade de alegação e prova do nexo de causalidade entre aquele comportamento omissivo e a criação ou agravamento da insolvência.
Vejamos.
As presunções elencadas no n° 3 do art° 186° do CIRE diferenciam-se das constantes do n° 2 do mesmo preceito porque tratando de presunções ilidíveis, facultam ao visado pela insolvência culposa, que produza prova em contrário, contrariando o pressuposto da noção geral do n° 1, a culpa grave.
E quanto ao nexo de causalidade?
Alinhamos com a posição de Rui Estrela de Oliveira (Uma brevíssima incursão pelos incidentes...cit., pág. 244). Assim, há que distinguir a presunção prevista na alínea a) daquela que consta da al. b) - e é esta que interessa para o caso dos autos. Olhando para a norma, da alínea b), é razoável concluir que o legislador prescindiu da alegação e da prova do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento do estado de insolvência. De facto, não se consegue vislumbrar que relação poderá existir, em termos de causalidade, entre o incumprimento de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de as submeter à devida fiscalização e de as depositar na conservatória do registo comercial competente e a criação ou o agravamento do estado de insolvência. A conduta tipificada na alínea, a ocorrer, poderá constituir um indício de que algo corria mal para os lados da sociedade em causa, mas nunca poderemos subsumi-la à causa da produção ou do agravamento do estado de insolvência. (...) Portanto, também aqui e por definição, não é possível estabelecer uma relação de causalidade entre a conduta tipificada e a produção ou o agravamento da situação de insolvência. Consequentemente, para pôr em funcionamento a presunção, deve ser alegada e provada a factualidade tipificada nessa alínea b).
Portanto, face a esta posição, irreleva no caso dos autos, a questão do nexo de causalidade entre a falta de elaboração das contas e seu depósito na Conservatória e a criação e/ou agravamento do estado de insolvência.
Por conseguinte, não pode qualificar-se a insolvência como fortuita.
3.5- Finalmente a última questão: Ilegalidade da sentença por aplicação retroactiva da Lei 16/2012, de 20 de Abril, quanto às consequências da declaração de insolvência culposa.
Para os apelantes a sentença aplicou retroactivamente a Lei 16/2012, de 20/04, condenando os visados na obrigação de indemnização dos credores e com a inibição de administração de patrimónios de terceiros, o que viola o art° 12° do CC.
Já a apelada entende que o art° 189° do CIRE estabelece normas de natureza processual e, por isso, são de aplicação imediata aos processos em curso. Além disso, defende a aplicação do art° 12° n° 2, 2a parte do CC.
Cumpre apreciar e decidir.
Em primeiro lugar convém ter presente que o art° 189° n° 2 do CIRE rege sobre os efeitos emergentes da declaração da insolvência culposa. Além disso, é conhecido que a Lei 16/2012 alterou, em alguns aspectos, os efeitos da qualificação da insolvência como culposa: modificou a alínea a) do n° 2 — passando a cominar com a interdição de gestão de patrimónios alheios — e acrescentou a alínea e) — vindo a responsabilizar os visados por indemnizarem os credores.
Pois bem, atendendo ao conteúdo e alcance do preceito, podemos dizer que se trata de normativo, em primeiro lugar dirigido ao juiz, determinando que ele deve identificar as pessoas afectadas pela qualificação da insolvência, decretar a respectiva inibição de administrarem patrimónios alheios, inibi-los para o exercício do comércio, determinar a perda de crédito sobre a insolvência ou sobre a massa e condená-las a indemnizar os credores. Apesar de ser normativo dirigido ao juiz — ...ojuiz deve, proémio do n° 2 do preceito — afigura-se-nos que nem todas as alíneas terão natureza de normas estritamente processuais.
Assim, apenas terá natureza de norma processual, a alínea a) que determina o dever de o juiz identificar os afectados pela qualificação da insolvência como culposa.
Já os restantes normas relativas aos efeitos dessa qualificação da insolvência como culposa, previstos na alínea b) (decretar a inibição para administração de patrimónios de terceiros) na alínea c) (inibir os visados para o exercício do comércio), na alínea d) (determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvente ou sobre a massa), e na alínea e) (condenar os visados a indemnizarem os credores do devedor), não são normas de direito processual. Entra-se assim, na problemática da aplicação das leis no tempo.
Como é sabido, é corrente a tese que entende que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções anteriormente instauradas.
A razão dessa aplicação imediata da lei processual radica na circunstância de as normas de natureza processual serem de interesse e ordem pública, acima dos interesses dos litigantes (Cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2' edição, pág. 45 e segs.).
Portanto, a esta luz, conclui-se que nada obsta à aplicação aos autos a norma do art° 189° n° 2, alínea a) do CIRE com a redacção dada pela Lei 16/2012.
Já quanto às alíneas b), e) d) e e) do n° 2 do art.º 189° do CIRE, que encerram normas de direito substantivo, porque nelas se determina o dever de o juiz inibir as pessoas afectadas de administrarem patrimónios de terceiros, exercerem comércio, perderem créditos e terem de indemnizar os credores do insolvente, importa averiguar a questão da aplicação da lei no tempo.
Pois bem, o art° 12° n° 1 do CC exprime o princípio geral de que a lei só dispõe para o futuro e estabelece ainda que mesmo que à lei nova seja atribuída eficácia retroactiva presume-se que essa retroactividade não afecta os efeitos já produzidos pela lei antiga.
O art° 12° n° 2 do CC distingue dois tipos de leis ou de normas: (i) aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (la parte), (ii) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam, sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2ª parte). As primeiras, só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas constituídas antes da lei nova mas subsistentes ou em curso à data da entrada em vigor da lei nova. (Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 25ª reimpressão, 2018, pág. 233).
O problema da aplicação da lei no tempo trata de determinar a lei competente (expressão de Batista Machado, Introdução...cit., pág. 235 e seg., lição que seguiremos de perto) e a distinção clara entre factos determinantes da competência da lei aplicável e factos abrangidos no campo de aplicação da lei competente. É que não são quaisquer factos que determinam a competência da lei aplicável, mas só os factos constitutivos (modificativos e extintivos) das situações jurídicas. Pelo que a teoria do facto passado, enquanto critério normativo da competência da lei nova e não dos factos a que se aplica, deverá ser formulada nos seguintes termos: a lei nova não se aplica a factos constitutivos (modificativos ou extintivos) verificados antes do seu início de vigência. Mas já nada impede que, uma vez determinada a competência da lei nova com fundamento na circunstância de o facto constitutivo da situação jurídica se passar sob a sua vigência, a mesma lei seja aplicada a factos passados que ela assume como pressupostos impeditivos ou desimpeditivos (isto é pressupostos negativos ou positivos) relativamente à questão da validade ou admissibilidade da constituição da situação jurídica, questão essa que é da sua exclusiva competência. Pertencem ao número de factos-pressupostos cuja localização no tempo não influi sobre a determinação da lei aplicável, ente outros, os efeitos inibitórios e outros de certas penas (relativas à aquisição de estatuto, de comerciante e relativas à inibições, etc.) quando não sejam obrigatoriamente ligados a condenação penal (Cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25a reimpressão, Almedina, pág. 235 e seg.).
Portanto, daqui resulta que nada impede a aplicação das alíneas b) e e) do n° 2 do art° 189° do CIRE na redacção dada pela Lei 16/2012 ao caso dos autos, apesar da insolvência haver sido decretada em data anterior à do início da vigência desta Lei.

III- Decisão.
Em face do exposto, decidem na Cível do em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
a)-Alteram a matéria de factos dos pontos 2° e 3° dos Factos Provados, que passam a ter a
seguinte redacção:
2°- Inicialmente eram sócios da ora insolvente BJT... e sua cônjuge SSG....
3°- Em 28/09/2006, BJT... e SSG... cederam as suas quotas, respectivamente a BJT... e a LFM….
b) No mais, julgam improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas: pelos apelantes.
Lisboa, 27/06/2019
(Gilberto Jorge)
Adeodato Brotas
Fátima Galante
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