Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Jurisprudência da Relação Cível
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 27-06-2019   Processo de protecção e promoção. Medida de acolhimento protector em instituição. Pedido de segunda perícia.
1 - O processo de protecção e promoção a menor é de jurisdição voluntária e compete ao juiz decidir das provas a produzir.
2 - Tendo sido aplicada medida de acolhimento protector em instituição, a partir da prática de factos integrantes de crime de maus tratos a menor de 8 anos, pela mãe e padrasto, tal instituição não pode ser vista como parte contrária à mãe, nem pode considerar-se que um relatório de psicoterapeuta é uma prova produzida, ou pelo menos não independente, da instituição de acolhimento, apenas porque foi pedido pela instituição.
3 - O pedido de segunda perícia porque no relatório do psicoterapeuta se invoca serem feitas afirmações não justificadas sobre a prática de violência e sobre a falta de empatia no seio familiar, sobre a falta de capacidade parental e porque nele se refere que o menor expressa o desejo de permanecer na instituição e se recomenda o afastamento do padrasto, que aliás veio a ser condenado em pena de prisão efectiva pelo crime de maus tratos ao menor por sentença transitada em julgado, não se afigura útil nem necessário, tanto quanto a violência física está estabelecida no processo-crime por prova mais que abundante e que não se limita às declarações do menor, tal como nele consta que a criança não viveu com a mãe senão nos dez meses antecedentes à prática das violências, tanto quanto não é a criança capaz de fazer a avaliação das competências parentais da mãe e do padrasto.
(Sumario elaborado pelo Relator)
Proc. 1210/17.7T8CSC-C.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Eduardo Petersen Silva - Cristina Neves - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
_______
Processo n° 1210/17.7T8CSC-C.L1
Apelação
Relator: Eduardo Petersen Silva
1ª Adjunta: Desembargadora Cristina Neves
2º Adjunto: Desembargador Manuel Rodrigues
Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
Iniciaram-se os presentes autos de processo de promoção e protecção ao menor AGT..., filho de LA... (nascido na R…2008 e ali residente com os avós maternos até Junho de 2016,altura em que a mãe e o padrasto o foram buscar e trazer para com eles residir em Portugal) após sinalização à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de C…, em 31.3.2017, pelo Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovem em Risco do Hospital de C…, ao qual o mesmo menor foi levado por iniciativa escolar, em virtude das lesões físicas que apresentava e que levaram a escola a suspeitar de maus tratos por parte da mãe, LA..., e do padrasto, VA..., tendo o menor ficado internado até que a …2017 a CPCJ decidiu aplicar cautelarmente medida de acolhimento residencial na instituição denominada CE..., à qual o menor recolheu após alta, em 10.4.2017.
Tendo-se a mãe e o padrasto recusado a assinar acordo de promoção e protecção, o processo foi remetido ao Ministério Público junto do tribunal recorrido, que requereu a instauração de procedimento judicial urgente para confirmação da medida de acolhimento, a qual teve lugar por despacho de 12.4.2017, que aplicou a medida de acolhimento a favor do menor, cautelarmente, por seis meses, medida que veio a ser revista, a 3.11.2017, com acordo da mãe e do padrasto, por um ano, e que tem sido sucessivamente mantida.
Foram juntos aos autos relatórios e informações prestados pela CPCJ, pela EMAT, pela CE..., pela Escola e pelo psicólogo RM... do CC....
Notificada do relatório clínico do CC..., subscrito pelo referido psicólogo, a mãe veio aos autos em …2019 invocar que o referido relatório (...) faz referência a uma dinâmica familiar anterior do menor, caracterizada por violência física e psicológica, falta de empatia, responsabilidade e competências parentais reduzidas, e que o mesmo relatório refere que o menor terá sido capaz de verbalizar o desejo de permanecer na instituição, o medo do companheiro da mãe, a expectativa e a desilusão em relação às visitas, tanto as que se realizavam como as que não aconteciam, e que o relatório termina recomendando que o menor se deve manter afastado do padrasto, não fazendo uma única recomendação que permita o reagrupamento familiar.
Invocou a mãe que as afirmações constantes deste relatório não se encontram justificadas, mesmo que minimamente, com elas não se querendo conformar, impondo-se submeter o menor a uma avaliação psicológica por parte de entidade cuja capacidade técnica seja inquestionável.
Concluiu requerendo que o Tribunal se dignasse oficiosamente determinar que seja realizada uma avaliação psicológica ao menor, junto do INMLCF, I.P., disponibilizando-se desde já a mãe do menor, e o seu padrasto, a participarem/submeter-se a qualquer avaliação que se mostre também necessária ao desejado reagrupamento familiar. Em alternativa, caso o INMLCF não consiga dar resposta urgente a esse pedido de avaliação, a mãe do menor não se opõe a que a mesma possa ser efectuada pelo Psicólogo Clínico do Hosp….
Sobre este requerimento foi proferido o despacho judicial de 04.03.2019, do seguinte teor:
Requerimento da mãe de 30.01 (requer avaliação psicológica do menino, pelo INML, tendo em vista um eventual futuro reagrupamento familiar):
O menor AGT... tem vindo a ter acompanhamento psicológico pelo CC..., entidade isenta e desinteressada, sendo a recomendação do profissional que o acompanha no sentido de o menor continuar a beneficiar desse acompanhamento.
O menino não manifesta desejo nem vontade de regressar à família da mãe.
As recomendações do psicólogo que acompanha este menino são, em suma: que o AGT... se mantenha afastado do padrasto, com quem a mãe vive; desenvolver um projecto de vida que assegure um contexto familiar securizante para o AGT....
Ademais, a equipa técnica da CE... e a EMAT não consideraram, em algum momento de todo este percurso, que a diligência agora requerida pela mãe fosse necessária ou benéfica para o menor. O Tribunal, por outro lado, entende que os exames periciais apenas devem ter lugar quando há sinais ou indícios que o aconselhem, o que não é o caso dos autos.
Entende o Tribunal, assim e em conformidade com a promoção que antecede, que a avaliação psicológica da criança, requerida pela mãe, não é necessária nem útil, pelo que a indefiro.
Inconformada, a mãe LA... interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1 - A recorrente foi notificada do teor do relatório clínico efectuado ao menor na CC..., em 30/01/2019. No referido relatório clínico foram efectuadas várias afirmações sobre a vida do menor, as quais, não foram minimamente justificadas.
2 - O menor iniciou acompanhamento terapêutico na CC... em 28/06/2017 A PEDIDO da Instituição C… — CE..., a quem foi confiado pelo Tribunal recorrido (cfr. relatório notificado à mãe do menor).
3 - Não se conformando com o teor do referido relatório, e não acreditando no mesmo, a aqui recorrente solicitou nesse mesmo dia (30/01/2019) uma nova perícia a efectuar pelo INML ou pelo Hospital de C….
4 - Ao manifestar-se contra aquele relatório, e não aceitando o que ali se refere, pretendia a recorrente fazer o contraditório dessa prova, o que, convenhamos, só com nova avaliação clínica a produzir por entidade distinta da que elaborou a do Tribunal, seria possível, tanto mais que, como se disse, o acompanhamento terapêutico e os relatórios produzidos naquela clínica foram efectuados a pedido da instituição de acolhimento do menor.
5 - Sucede que, inacreditavelmente, o pedido de nova perícia/relatório a efectuar por entidade distinta, foi agora indeferido por despacho de 27/02, notificado à recorrente em 08/03, o que significa que, neste momento, a prova em poder do Tribunal foi toda ela produzida APENAS por uma das partes, sendo que, a posição da mãe do menor é totalmente fragilizada pela circunstância do menor se encontrar há QUASE DOIS ANOS sujeito a medida de internamento na CE....
6 - Cumpre registar que, já antes a mãe do menor se tinha pronunciado sobre o primeiro relatório clínico que lhe foi notificado (o que agora está em causa será o segundo relatório, ou pelo menos, o segundo a ser-lhe notificado) referindo nessa altura que, aquele relatório não constituía documento sério que possa ser considerado por este Tribunal, uma vez que os factos ali vertidos não se encontravam minimamente comprovados.
7 - Lamentavelmente, essa denúncia não foi, contudo, suficiente para o Tribunal ordenar oficiosamente nova perícia ao menor!
8 - Mais referiu que, as informações constantes desse relatório eram manifestamente desprovidas de qualquer prova susceptível de colocar em crise o bem-estar e desenvolvimento integral do menor, e baseou-se unicamente na opinião de quem o produziu, e que, salvo melhor opinião, se mostra demasiado parcial nas apreciações que faz, ao afirmar designadamente ... acresce-nos ainda salientar que este casal, não se apresenta nada permeável à intervenção técnica, adota uma postura de boicote, alegando dificuldades de expressão e de compreensão da língua portuguesa....
9 - Face a tudo isto, não percebe a mãe do menor, como é que o Tribunal apenas pretende considerar a prova produzida pela instituição de acolhimento do menor, recusando a produção de uma perícia que no caso concreto se revela ESSENCIAL para uma justa decisão da causa!
10 - O contraditório de perícias está previsto no artº 485º do CPCivil, com a reclamação contra a perícia, e ainda a possibilidade de uma segunda perícia, prevista no artº 487º e segs. do mesmo diploma.
11 - Embora estes autos constituam um processo de jurisdição voluntária — cfr. Art.º 100º da LPCJP — só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias
(cfr. Artº 487º nº 2 e 986º nº 2, última parte, ambos do CPCivil), tal não significa, naturalmente, que se afaste a possibilidade de, em via de recurso, se sindicar o julgamento feito quanto à (des)necessidade de novo relatório clínico/psicológico.
12 - Sim, dizemos um dos lados porque, como supra se referiu, o acompanhamento terapêutico e produção de relatórios clínicos pela CC..., foi efetuado A PEDIDO da instituição C… — CE..., e não do Tribunal.
13 - Não é razoável que o Tribunal recorrido afirme que ...a equipa técnica da CE... e a EMAT não consideraram, em algum momento de todo este percurso, que a diligência agora requerida pela mãe fosse necessária ou benéfica para o menor. O Tribunal, por outro lado, entende que os exames periciais apenas devem ter lugar quando há sinais ou indícios que o aconselhem, o que não é o caso dos autos. (cfr. despacho recorrido).
14 - Naturalmente que, quer a CE..., quer a EMAT, atento todo o processado, que desde o início parecem apenas ter por objectivo que o menor seja entregue para adoção, não consideraram que a perícia pedida pela respectiva mãe, fosse necessária ou benéfica para o mesmo.
15 - Não se compreende, é, como é que é possível que o Tribunal tenha igual entendimento!
16 - Salvo melhor entendimento, tal posição do Tribunal, atento o teor do seu despacho, afigura-se-nos, aliás, como todo o respeito (que é muito), susceptível de suspeição!
17 - É que, como decorre do despacho recorrido, o Tribunal parece acreditar cegamente no relatório clínico junto aos autos, uma vez que se opõe à contradita, ignorando, ao que parece (também) que não deve ter qualquer interesse numa ou noutra solução do litígio que é chamado a regular, por ser sua função decidir, de acordo com a lei.
18 - Além do mais, cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, tendo em vista a igualdade das partes consagrada no artº 4º do CPC.
19 - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respectivo enquadramento jurídico.
20 - O princípio da igualdade de armas ou da igualdade das partes consagrado nos art.ºs 13º e 20 da CRP consiste em estas serem postas em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas probabilidades de obter a justiça que lhes seja devida.
21 - Ao decidir de modo contrário à Lei, sem nada que o justifique, pois, apenas dispõe no processo de relatórios pedidos por uma das partes, e consequentemente, estando afastado o contraditório por parte da mãe do menor, o Tribunal a quo violou, salvo melhor opinião, entre outras disposições legais, o disposto no artº 4º e nº 1 do artº 487º, ambos do CPCivil e artºs. 13 e 20 da CRP.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido, substituindo essa decisão por outra que determine a realização de uma segunda perícia clínica ao menor, a realizar pelo Hospital de C….
O recurso não foi admitido, tendo a recorrente apresentado reclamação para este tribunal, que o ora relator decidiu deferir, determinando ao tribunal recorrido a organização do apenso de recurso, instruído com as peças mencionadas pela recorrente e ainda com aquelas que o tribunal entendesse convenientes em vista do esclarecimento cabal e completo desta Relação de quanto se discute no processo, o que foi cumprido conforme certidão remetida.
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, a questão a decidir é a de saber se deve ser deferido o requerimento da mãe, LA..., de realização de uma avaliação psicológica ao menor.
III. Matéria de facto
Além do acima relatado e conforme consta da certidão remetida, resulta dos autos:
A) Por sentença proferida em 13.7.2018 no processo …/17.6GACSC, confirmada por acórdão desta Relação proferido em 10.10.2018, transitada em julgado, e de que foi interposto recurso de revisão que o Supremo Tribunal de Justiça denegou, foi a mãe do menor condenada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. d) e nº 2 do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, cuja execução foi suspensa por três anos, com regime de prova, e foi o padrasto do menor condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punidos nos termos dos mesmos preceitos legais, na pena de dois anos e dez meses de prisão efectiva.
No referido processo, o Tribunal da Relação manteve integralmente a decisão sobre os factos provados e não provados proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, que é, quanto aos factos provados, a seguinte:
1 - Os arguidos são casados entre si e residem, pelo menos desde junho de
2016, na R…;
2 - O ofendido AGT... é filho da arguida LA... e nasceu na R…2008;
3 - O ofendido viveu na R... com os seus avós maternos até junho de 2016, altura em que veio para Portugal, passando a integrar o agregado familiar dos arguidos;
4 - Pelo menos desde o início de março de 2017, com periodicidade variável e por diversas vezes, no interior do domicilio comum (nomeadamente na sala e na casa de banho, onde o arguido pedia ao ofendido que se despisse previamente), o arguido (...) infligiu maus tratos físicos ao ofendido, agredindo-o em várias partes do corpo, o que fez brandindo um cinto nas costas, barriga, braços e pernas do ofendido, causando-lhe dores e vergões nas regiões atingidas;
5 - O que aconteceu, designadamente no dia 29 de março de 2017 e em datas anteriores não apuradas desse mesmo mês de março de 2017, com o conhecimento e sem oposição da arguida (...), mãe do ofendido;
6 - No dia 29.03.2017, no interior do domicilio comum, a hora não apurada, a arguida (...) desferiu número não apurado de bofetadas violentas nas duas faces do ofendido, causando-lhe dores e hematomas nas zonas atingidas;
7 - Em consequência das condutas dos arguidos, o ofendido sofreu equimoses bilaterais na face, incluindo no pavilhão auricular esquerdo, equimoses com 5/6 cm de comprimento, principalmente na região inferior do abdómen, no dorso e coxas, riscas vermelhas paralelas extensas com cerca de 15 cm de comprimento, aos pares, nas coxas e braços, lesões que lhe determinaram 15 (quinze) dias de doença, 11 (onze) dos quais com incapacidade;
8 - O ofendido recebeu assistência médica no Hospital de C…. no dia 31.03.2017, onde ficou em internamento protector até ao dia 10.04.2017, data em que foi acolhido na CE..., onde ainda se encontra;
9 - Em consequência dos factos praticados pelos arguidos, o ofendido sentiu-se desprotegido, humilhado, nervoso e teve medo, sentimentos que ainda manifesta quando recorda os episódios vividos;
10 - O ofendido gosta de estar na CE... e não tem vontade de voltar a residir com (...) os arguidos, o que expressa de forma clara e inequívoca;
11 - Bem sabiam os arguidos que, agindo como descrito, atingiam a integridade física, magoavam e causavam lesões e dores a AGT..., então com 8 (oito) anos, o que quiseram e conseguiram;
12 - Ao atuar do modo acima descrito, cadaum dos arguidos quis maltratar AGT... Timos, ofendendo-o na sua dignidade pessoal, humilhando-o, amedrontando-o e perturbando-o no seu sentimento de segurança, o que decidiram fazer no interior do domicilio comum e conseguiram, muito embora soubessem que, na qualidade de mãe e padrasto do ofendido, sobre eles impendia um dever acrescido de respeito para com este, bem com de cuidar do seu bem-estar físcio e psíquico;
13 - Bem sabiam os arguidos que, por força dos seus 8 (oito) anos de idade e da sua dependência emocional e económica, AGT... não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à atuação dos arguidos, circunstância de que se aproveitaram no sentido descrito;
14 - Os arguidos agiram de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo praticarem atos proibidos e p8unidos por lei;
15 - Os arguidos são casados um com o outro e vivem com 2 filhos a cargo (2 anos e 9 meses);
16 - A arguida trabalha como empregada de limpeza, auferindo €580,00 mensais;
17 - O arguido trabalha na construção civil e aufere cerca de €1.000,00 mensais;
18 - A arguida não tem antecedentes criminais;
19 - O arguido tem os antecedentes criminais que consta do CRC de fls. 389 e seguintes, tendo sido condenado: em 2011, por crime de condução em estado de embriaguez em pena de multa, que pagou; em 2014 e em 2016, por crimes de condução sem habilitação legal em penas de multa, a primeira das quais já paga.
B) Na respectiva motivação de facto, escreveu-se na sentença, relativamente ao arguido: Negou, contudo, a essência dos factos (...). O arguido negou toda e qualquer agressão física ao menor (afirmou não lhe ter batido com um cinto porque não usa cintos), referiu-se a ele como se já fosse um rapaz crescido e que, provavelmente, as lesões (que referiu nunca ter visto ou dado conta) teriam sido feitas na escola ou com colegas, o que tendo em conta toda a demais prova produzida (nomeadamente fotografias de fls. 17 e 49 e o facto de ter sido claro que o menor, na escola, era pacífico, bem comportado e não se envolvia em brigas) não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal. (...) No mais, o arguido mostrou-se sempre distante, frio e sem qualquer ligação aos factos imputados, como se fossem nada, como se não tivessem importância e isto fosse tudo um exagero, não tendo esboçado qualquer emoção ou reacção (nem ele nem a arguida), quando o Tribunal lhe comunicou por súmula o conteúdo do depoimento do menor. Foi igualmente evidente algum ascendente que o arguido tem sobre a arguida, mãe do menor (visível quando se preparava para responder a perguntas que foram feitas a ela). Relativamente à arguida escreveu o Tribunal: (...) não tendo prestado declarações sobre os factos imputados e mantendo-se imperturbável durante toda a produção de prova. Relativamente ao menor, escreveu o Tribunal: — depoimento de AGT..., hoje com 9 (nove) anos e que, de forma expressiva, sentida, emocionada e espontânea, tudo relatou ao Tribunal. Referiu, em suma: que a mãe lhe deu, uma única vez, as bofetadas na cara que o deixaram marcado naquele dia e nos seguintes, tendo sido por causa dessas marcas visíveis que a mãe e o padrasto não quiseram que ele fosse à escola no dia seguinte (30.03.2017), mais tendo dito que isso aconteceu porque ele não respondia logo; que o padrasto lhe bateu muitas vezes, em casa (na sala, entre a sala e a cozinha, na casa de banho) com um cinto e que ele (menino) lhe pedia que não lhe batesse, que lhe doía muito e que, muitas vezes, o padrasto ia com ele para a casa de banho, ali lhe pedia que se despisse e que era depois de o menino estar despido que o padrasto lhe batia com um cinto; referiu que a mãe assistia e sabia e não fazia nada, não interferia nem dizia ao padrasto para não fazer aquilo. O menor esteve, ao olongo de todo o depoimento, choroso, com os lábios a tremer, nervoso, a mexer a e puxar com força a ponta da camisola que vestia, mas foi seguro, lúcido, claro e isento em tudo o que referiu. Franzino, magro e inteligente, referiu gostar de estar na CE... e não querer voltar a viver com os arguidos;.
C) Do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, clínica forense, elaborado em 5.4.2017, no Hospital de C…, consta, ao exame objectivo: (...) O examinando apresenta as seguintes lesões: Face: várias equimoses em diferentes estádios de absorção dispersos por ambas as hemifaces; equimose arroxeada do pavilhão auricular esquerdo. Abdómen: várias equimoses em diferentes estádios de absorção, de cor castanho-esverdeadas, na região lateral do tórax e abdómen lateralmente. Membro superior esquerdo: equimose acastanhada na face posterior do 1/3 proximal do braço, oblíqua ínfero-medialmente; duas lesões lineares moduladas e paralelas entre si que distam cerca de 1 cm, estendendo-se entre a face lateral do 1/3 distal do braço e a face póstero-lateral do antebraço, com eritema nas margens, sem relevo, medindo 20 cm de comprimento. Membros inferiores: várias equimoses em diferentes estádios de absorção, em ambas as regiões nadegueiras; várias equimoses em diferentes estádios de absorção interessando a face lateral da coxa e joelho direitos; várias equimoses em diferentes estádios de absorção interessando o terço proximal da face lateral e terço médio da coxa esquerda; equimose/lesão modulada no terço distai da face lateral da coxa, oblíqua ínfero-medialmente. O relatório é complementado pela fotografia de fls. 34 destes autos.
D) Dão-se por reproduzidas todas as informações e relatórios constantes dos autos.
E) Nos autos principais, em 31.05.2019, foi lido o acórdão de cuja parte dispositiva, e para o que aqui releva, consta:
Pelo exposto, decide-se:
1 - aplicar, em favor da criança AGT..., a medida de promoção e protecção de confiança a instituição — nomeadamente ao CAT CE..., C…., Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família, sito em C…., com vista a futura adoção;
2 - designar como curador(a) provisório(a) do menor AGT... o(a) Sr(g) Diretor(a) do CAT CE..., C…, Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família, sito em C…;
3 - inibir os progenitores do menor AGT... do exercício das responsabilidades parentais;
4 - proibir as visitas por parte da família natural e do padrasto ao AGT....
Registe e notifique, mais se consignando que a presente decisão é susceptível de recurso, sendo o prazo de recurso de 10 dias (...)
IV. Apreciação
Para contextualizar a questão sob recurso, pode-se dizer, em síntese, que a postura da recorrente é a de uma mãe que não se conforma com as sucessivas menções da instituição de acolhimento e dos relatórios sociais e periciais de que o menor seu filho não tem com ela uma relação afectiva relevante e que prefere por isso vir a ter uma nova família, isto é, ser encaminhado para adopção, do mesmo modo que não se conforma ser acusada de não ter competências parentais, e por isso, em suma, luta pelo reagrupamento familiar.
Note-se também que esta mãe acusa a instituição de acolhimento e até, nas menções de suspeição, o tribunal, de lhe condicionarem e prejudicarem a relação com o filho, não só pela duração da medida de acolhimento como pelo facto das visitas não poderem decorrer a sós, estando sempre presentes técnicos, e sendo proibido o uso da sua língua natal, sendo que ela não domina a língua portuguesa.
Ora bem, o presente colectivo leu com atenção todos os documentos e requerimentos e despachos constantes dos autos. É verdade, com o devido respeito, até pelo esforço das instituições, que não se pode extrair uma conclusão de boicote cooperativo pelo facto das invocações de que não se compreende a língua portuguesa, tanto quanto é referido que o próprio menor brinca com a mãe, nas visitas, com palavras portuguesas que ela não domina, e tanto quanto não é verdade, ou não está demonstrado que o seja, que a mãe viva em Portugal há oito anos, ao contrário do padrasto. Também nos causa alguma estranheza que o menor, que viveu pelo menos até aos sete anos de idade na R..., rapidamente tenha esquecido a língua R.... Também nos causa alguma estranheza que os sucessivos relatórios, e desde o princípio, logo tenham começado a apontar para a adopção.
Mas, e é esta a verdadeira tarefa do julgador, se ligarmos todos os dados, essa estranheza dissipa-se.
Expliquemos: a criança é filha duma ligação ocasional da mãe, a criança (segundo se apurou em terapia psicológica denominada história de vida) não viveu com a mãe e os pais dela, mas só com estes, tinha como figura de referência um tio que se suicidou, a mãe nem sempre o visitava em casa dos avós quando fazia anos ou no Natal. A razão da mãe e do padrasto terem ido buscar o menor à R... prende-se com a avançada idade dos avós maternos, tanto que o avô materno veio a falecer na pendência dos autos. Os avós maternos não souberam que o menor tinha sido acolhido em instituição de acolhimento. Portanto, a ligação afectiva da mãe com o menor é no mínimo pautada por esta distância, que a vivência conjunta em Portugal permitiria reparar. Apesar do padrasto e da mãe serem da mesma cidade e se conhecerem desde sempre, não está demonstrada relação do padrasto com o menor anterior a esta vivência.
As mencionadas posturas em julgamento podem ser interpretadas também como uma condição cultural, do sul, latino e patriarcal e é relativamente claro que é bastante diverso dominar perfeitamente a língua do país onde se vive ou não, e que as comunidades estrangeiras residentes não só conservam a sua cultura, sobretudo quando residem há pouco tempo, como, pela dificuldade de comunicação, tendem a apresentar desconfiança em relação às instituições, cuja linguagem, espírito e sentimento, ou seja também valores dominantes se revelam ainda de mais difícil compreensão.
Portanto, seria perfeitamente legítimo que a mãe quisesse falar R... nas visitas ao filho. Como seria legítimo que o padrasto também o visitasse. O que os autos porém documentam é que não só a mãe e o padrasto negaram, sempre negaram, e até ao recurso de revisão, continuaram a negar a prática dos factos, até imputando suspeições ao tribunal, como consequentemente nunca demonstraram qualquer espécie de arrependimento, como ainda procuraram influenciar o menor a dar outra versão. Daí a menção ao recebimento de telefonemas em R... ainda durante o internamento hospitalar, que deixaram o menor muito incomodado. Repare-se que, na versão da mãe e do padrasto, o menor teria caído de bicicleta e por isso teria equimoses na face (versão fraca, porque não se revelariam na face, como revelaram, as marcas de dedos de adulto), e quanto às demais lesões, de que não tinham dado conta, teria sido um colega de escola (versão fraca, porque as lesões apresentavam diferentes estádios de absorção, o que significa que foram produzidas por várias vezes em tempos diferentes, e porque foram produzidas em partes do corpo que em Março nunca estariam expostas e evidenciavam claramente o uso de um cinto, e tudo isto quadra muito mal a um colega de escola, sobretudo quando, numa tal situação, e perante um menor com poucos meses de residência e experiência aqui, seguramente se teria queixado em casa se um colega lhe batesse com um cinto, repetidamente ao longo de vários dias). Daí que a proibição de falar R... durante as visitas tenha algum fundamento razoável. Como teve a proibição, decidida pelo tribunal recorrido, do padrasto visitar o menor, porque este ficava muito incomodado com isso, digamos que, compreensivelmente). Como ainda se evidencia que a mãe, ao invés de cooperar, como quando a deixaram visitar a sós o menor, no espaço exterior, após o falecimento do avô materno, aproveitou para chamar à vedação o padrasto já proibido de ver o menor.
Portanto, digamos, para aquilo que poderia parecer um exagero, a partir da equação cultura diferente, prática de violência física, episódio passado e tentativa da sua ultrapassagem, isto é, para as restrições a falar em R..., para a retirada do telemóvel ao menor, para as recomendações de proibição de visitas por parte do padrasto, que assim, segundo a mãe, deliberadamente, tentariam impossibilitar a continuação da hipótese de resgate e reagrupamento, que cortariam o desejo do menor de estar com a mãe e a felicidade que ele demonstra ao colo dela nas fotografias de telemóvel tiradas durante as visitas, falta um elemento chave: - o arrependimento, e antes dele, a aceitação da prática dos maus tratos. E este elemento em falta é ainda mais gravoso quando falta outro: - a aceitação, pela mãe, bem se sabe difícil, do ascendente do padrasto sobre ela, quando está também demonstrado que a própria mãe, já tendo nascido o último e terceiro filho, apresentou queixa por violência doméstica contra o padrasto, então alcoolizado, foi acolhida ela própria por uma noite numa instituição e foi-lhe atribuído estatuto de vítima.
Ora, uma cultura diversa não explica o desconhecimento da inaceitabilidade dessa cultura — se é que a prática de violências físicas sobre menores integra a cultura R..., e duvidamos — no contexto de país estrangeiro onde se optou por residir. Aliás, parece claro que a mãe e o padrasto tinham boa consciência de que não podiam praticar os actos que praticaram, como se revela precisamente pela sua negação persistente. Ao menos, poderia o casal ter avançado qualquer razão de erro de conduta por parte do menor que tornasse a violência num castigo, e nem isso fizeram, é das palavras do menor que se vem a perceber que lhe bateram porque ele era lento nas respostas às perguntas que lhe faziam — e é o menor que explica que era lento porque tendo medo de não dar a resposta certa, demorava a pensar nela.
E depois, note-se, se é aceitável (não é, mas pode admitir-se) negar em tribunal, já não é aceitável pressionar o menor a mudar versões, nem dos autos resulta — isto é, a mãe não faz a isso nenhuma referência — que ela própria tenha pedido desculpa ao filho.
Vêm todos estes considerandos apenas para explicar à recorrente que mesmo que estivéssemos num processo de partes e não num processo de jurisdição voluntária ou que mesmo que a um processo de jurisdição voluntária se apliquem, na medida da não contrariedade dos princípios fundamentais destes processos, as regras básicas do processo de partes e as regras básicas da defesa e acesso à Justiça, a instituição de acolhimento, nem outros a mando dela, não é a parte contrária à mãe, desde logo porque não estamos a falar duma discussão sobre a propriedade do filho.
E posto isto, passemos aos argumentos concretos do recurso.
Notificada do relatório clínico efectuado pela CC..., elaborado pelo psicoterapeuta que acompanha o menor a pedido da instituição de acolhimento, porque no seu teor se lê que No decorrer do acompanhamento, foi igualmente importante ajudar o AGT... a lidar com as emoções negativas decorrentes da dinâmica familiar anterior, caracterizadas por violência física e psicológica, falta de empatia, responsabilidade e competências parentais reduzidas (negrito nosso), e se lê No decorrer do processo, o AGT... foi capaz de se sentir mais confiante e seguro, como impacto na sua vida diária, no relacionamento com pares e com adultos e mais capaz de verbalizar o desejo de permanecer na instituição, o medo do companheiro da mãe, a expectativa e a desilusão em relação às visitas, tanto as que se realizavam como as que não aconteciam (novo negrito nosso), e que recomendava que o menor se mantivesse afastado do padrasto, veio a mãe invocar que tais afirmações não eram minimamente justificadas e que com elas não concordava — o que significa, que não eram, para si, verdadeiras. Em conformidade requereu segunda perícia, para contraditar esta, a primeira, invocando que a realização duma avaliação psicológica ao menor por uma entidade competente (supõe-se, que não fizesse afirmações não minimamente justificadas) e isenta, independente e sem relação com a instituição de acolhimento, seria a única maneira que tinha de provar que tais afirmações não eram verdadeiras.
O tribunal recorrido denegou o pedido, considerando que o mesmo não era útil nem necessário, que só ordenava exames quando achasse que eram úteis e necessários, e considerou que a instituição de acolhimento, além de outras, não tinham entendido que fosse necessário.
As declarações produzidas por um tribunal, sejam considerandos, seja decisão, estão sujeitas a interpretação, nos termos do artigo 236º do Código Civil. Interpretando a fundamentação do tribunal recorrido temos dois pontos: 1° ponto, só mando fazer exames quando eles forem úteis e necessários, 2° ponto acho que este exame não é útil nem necessário, e isto porque também as instituições que acolhem e estão seguindo o menor, não desconfiaram da justeza e correcção do relatório do
psicoterapeuta em causa, pedindo a outro psicoterapeuta ou a outro profissional da área psicológica ou psiquiátrica que fizesse novo exame. É este o sentido. E não pode ser aquele que a recorrente dá: como é que haviam de pedir, se estão desde o princípio a tentar retirar-me o filho e a mandá-lo para adopção?. A instituição de acolhimento, as demais instituições que produziram informações e relatórios, quer da situação inicial, quer do acolhimento, dos termos das visitas, dos progressos ou evolução do menor, não são a parte contrária da mãe, pelo contrário, são instituições que por via do seu estatuto, têm como missão auxiliar e proteger menores em risco e o que fazem, e as decisões e medidas que tomam, integram-se nessa missão. Diga-se aliás que há muitas crianças adoptáveis e que as que apresentam maior possibilidade de o serem não são crianças de 8 anos, mas bebés e crianças de colo, que além do mais têm a vantagem, para os adoptantes, de não virem carregadas de traumas psicológicos.
Onde a recorrente consiga, senão na desconfiança em relação ao país de acolhimento, entender que o CC... não é independente porque o relatório do psicoterapeuta foi pedido pela instituição de acolhimento, não logramos alcançar, ou dito de outro modo, para se concluir por essa falta de independência, haveria a recorrente de nos fornecer dados concretos.
A recorrente justifica a sua oposição ao relatório alegando, na conclusão 82 do recurso, as informações constantes desse relatório eram manifestamente desprovidas de qualquer prova susceptível de colocar em crise o bem-estar e desenvolvimento integral do menor, e baseou-se unicamente na opinião de quem o produziu, e que, salvo melhor opinião, se mostra demasiado parcial nas apreciações que faz, ao afirmar designadamente ... acresce-nos ainda salientar que este casal, não se apresenta nada permeável à intervenção técnica, adota uma postura de boicote, alegando dificuldades de expressão e de compreensão da língua portuguesa....
Acima abordámos esta última parte, parecendo-nos de facto um exagero, embora ela não tenha sido produzida originalmente pelo psicoterapeuta, antes é repetida em todos os relatórios de avaliação social, mas justificámos, pela postura da recorrente e do padrasto do menor, e voltamos a dizer, pela falta de arrependimento que a mãe demonstra, como apesar disso não pode afirmar-se essa demasiada parcialidade. Colaborasse a mãe, admitisse, como nem fez na reclamação do despacho que não admitiu o recurso, ter praticado o crime pelo qual já está inelutavelmente condenada com trânsito em julgado, e era mais fácil ver um ponto de partida, uma alteração, que permitisse pensar na possibilidade da sublimação do trauma familiar e no reagrupamento.
Quanto ao mais, as afirmações são feitas com base nos elementos que também estão disponíveis nestes autos e mais não tem o psicoterapeuta de justificar, porque na verdade o que ele faz é relatar aquilo que lhe surgiu, que apreendeu, durante o processo da psicoterapia, que é um processo individual em que o psicoterapeuta está apenas em relação com o menor. Como é claro, o psicoterapeuta que relata o desenvolvimento do processo de psicoterapia, só tem, e só pode, basear-se na sua própria opinião. E o psicoterapeuta não é um julgador nem tem de decidir ou relatar de acordo com provas.
Mas adiante: sendo certo que se pode admitir o contraditório de perícias, sendo certo que, ainda que fora do processo de partes, a parte tem o direito de impugnar em recurso o juízo que levou o julgador a não admitir determinada prova que lhe foi requerida, nos termos dos preceitos da lei ordinária e da lei constitucional que a recorrente invoca e que não é necessário discutir, porque o que é necessário discutir é se o tribunal recorrido errou ao não considerar útil nem necessária a segunda perícia — esse foi o fundamento, repare-se, o tribunal recorrido não negou a perícia requerida por entender que no processo de jurisdição voluntária não podia haver segunda perícia ou por entender que a mãe não tinha direito a pedi-la — e se é ou não, como afirma a recorrente, essencial que se faça essa segunda perícia para uma decisão justa, não da causa, assim abstractamente referida, mas sim para uma decisão que com justiça melhor sirva o interesse do menor.
Ainda antes de prosseguir, uma observação sobre a conclusão 17ª: Não, não parece que o tribunal recorrido acredite cegamente no relatório porque se opõe à contradita, e não, não trouxe a recorrente ao tribunal, nem sequer deduziu na primeira instância, argumento e facto algum para insinuar uma suspeição da Mm2 Juiz recorrida, nem se nota, porque a recorrente nada trouxe sobre isso, que o tribunal recorrido esteja a ignorar que não deve ter qualquer interesse na decisão da causa. E é justamente porque a sua função é decidir de acordo com a lei, que a decisão tem de passar por saber qual é a solução, final, ou nas medidas intermédias a tomar, que melhor sirva o interesse do menor. E não parece, justificamos, porque conforme se relatou, há elementos mais que abundantes, e que não provêm apenas da casa de acolhimento, que habilitam a decidir, logo a começar pela fotografia das lesões que o menor apresentava quando foi levado ao Hospital, pelos exames médicos que lhe foram feitos no tribunal, pela postura que a mãe e o padrasto sempre assumiram, pelo seu comportamento durante a audiência de processo-crime, e sobretudo pela sua condenação no processo-crime.
Quanto à menção, na conclusão 18Ê, de que cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, tendo em vista a igualdade das partes consagrada no artº 4º do CPC, voltamos a dizer, a instituição de acolhimento não é a parte contrária à recorrente, e não, não estamos num processo de partes.
É útil e necessário fazer a segunda perícia?
Em primeiro lugar, um processo psicoterapêutico não decorre numa única sessão, mas ao longo de várias. Portanto, o que o psicoterapeuta relata sobre esse processo e os seus resultados para o menor, não é o mesmo que pode ser obtido por uma avaliação psicológica realizada numa única sessão. Nem se está à espera que o menor, que vai desenvolvendo alguma proximidade ou à-vontade com o psicoterapeuta, justamente porque o processo decorre em várias sessões, manifeste a mesma disponibilidade, o mesmo à-vontade, com o profissional, que nunca viu antes, que lhe venha a fazer a avaliação psicológica.
Em segundo lugar, não é através de perguntas ou jogos que se vai conseguir obter do menor, na segunda avaliação, a falha de competências parentais da mãe e do padrasto, a falta de empatia entre a mãe e o filho, nem as violências físicas e psicológicas.
Ou melhor dizendo, a utilidade da segunda perícia não é levar o menor a desmentir o que disse em julgamento no processo-crime, não só porque a decisão deste processo é definitiva, porque, de resto, nem o tribunal criminal apenas se baseou nas declarações do menor. Que as violências físicas e a afectação psicológica subsequente foram exercidas foram, e com esta afirmação a recorrente terá de se conformar.
Relativamente à empatia mãe-filho, por mais industriada que tivesse sido a criança, na suposição de que se tratava duma criança com grande potencialidade de adopção, ou duma antipatia notável de todos os profissionais que se ocuparam do caso para com a mãe, ela já manifestou, em desenho, o lugar que a mãe ocupa no seu coração, que é bem abaixo do tio e dos avós, o que é perfeitamente coerente com uma mãe que nunca, afinal, viveu com o filho até o ter trazido para Portugal, e cuja relação empática lhe permitiu assistir, não interferir e não se opor a que o marido batesse no filho, por diversas vezes, com um cinto, apesar das dores e dos pedidos da criança para que isso não acontecesse.
Quanto às competências parentais, como se percebe, não é uma criança, nem que actualmente tenha 11 anos, que consegue avaliá-las.
Finalmente, o objectivo da perícia podia ser o de demonstrar, com as dificuldades que já assinalámos de falta de à-vontade entre o examinando e o examinador, que não era verdade que a criança desejasse permanecer na instituição, que não era verdade que tinha medo do padrasto, e que não sentia nenhuma desilusão relativamente às visitas da mãe. Portanto, no suposto duma alta perícia técnica e subtileza do perito, conseguir-se-ia que o menor dissesse que tinha saudades da mãe, que gostava muito das visitas dela, que eram os melhores momentos da sua vida na instituição, em que se sentia infeliz por estar separado da mãe e do padrasto e dos irmãos, que ansiava por voltar para casa da mãe.
Vamos, por dever de ofício, admitir a hipótese de que seja tudo mentira, que as versões coincidentes do psicoterapeuta, da professora, das técnicas ou técnicos da instituição de acolhimento, da psicóloga que faz a terapia história de vida, todos, que seja tudo a mais refinada das mentiras.
E vamos, por dever de ofício, considerar que não podemos admitir que é mentira quanto consta da sentença e acórdão proferidos no processo-crime, na medida em que devemos respeito à força do caso julgado obtida através do trânsito em julgado da sentença condenatória.
O resultado é o seguinte: - não é razoável nem normal que uma criança, que viveu com os avós maternos até ser trazida para Portugal, que não teve nenhum relacionamento relevante com a mãe até então, que aqui chegado e dez meses depois, foi vítima das agressões físicas que foi, com a conivência da mãe, cuja mãe não confessou nem demonstrou qualquer arrependimento, esteja ansioso para voltar para casa da mãe e do padrasto, que não tenha medo do padrasto, que esteja, aos 11 anos, ansioso para poder brincar com os irmãos mais novos (o mais novo dos quais praticamente não conhece) e que não sinta, enquanto tal pedido de desculpas não vier, enquanto a mãe não se libertar da autoridade do padrasto, desilusão nas visitas duma pessoa que afinal, se o amava, não conseguiu demonstrar esse amor por protecção, que se o ama ainda não lhe conseguiu pedir desculpa, ou seja, que não ocorra, na visita por parte de quem assim se comportou, sempre a incomodidade do erro cometido.
É por tudo isto que, num mínimo objectivo (sem considerar a demais prova bem abundante, por mero dever de ofício na colocação da hipótese de falta de verdade em todas as informações prestadas pelas instituições sociais), se afigura a pura desnecessidade e inutilidade da segunda perícia requerida — ela não conseguirá abalar a primeira perícia nem as afirmações nela contidas, nem a recomendação de não contacto com o padrasto, razão pela qual deve confirmar-se a decisão recorrida.
Em suma, improcede o recurso.
Sem custas.
V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam integralmente a decisão recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 27.06.2019
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Sumário (a que se refere o artigo 663° n° 7 do CPC):
I - O processo de protecção e promoção a menor é de jurisdição voluntária e compete ao juiz decidir das provas a produzir.
II - Tendo sido aplicada medida de acolhimento protector em instituição, a partir da prática de factos integrantes de crime de maus tratos a menor de 8 anos, pela mãe e padrasto, tal instituição não pode ser vista como parte contrária à mãe, nem pode considerar-se que um relatório de psicoterapeuta é uma prova produzida, ou pelo menos não independente, da instituição de acolhimento, apenas porque foi pedido pela instituição.
III - O pedido de segunda perícia porque no relatório do psicoterapeuta se invoca serem feitas afirmações não justificadas sobre a prática de violência e sobre a falta de empatia no seio familiar, sobre a falta de capacidade parental e porque nele se refere que o menor expressa o desejo de permanecer na instituição e se recomenda o afastamento do padrasto, que aliás veio a ser condenado em pena de prisão efectiva pelo crime de maus tratos ao menor por sentença transitada em julgado, não se afigura útil nem necessário, tanto quanto a violência física está estabelecida no processo-crime por prova mais que abundante e que não se limita às declarações do menor, tal como nele consta que a criança não viveu com a mãe senão nos dez meses antecedentes à prática das violências, tanto quanto não é a criança capaz de fazer a avaliação das competências parentais da mãe e do padrasto.
Eduardo Petersen Silva
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator
   Contactos      Índice      Links      Direitos      Privacidade  Copyright© 2001-2024 Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa