Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 07-02-2019   Obrigações do devedor. Cessação antecipada do procedimento de exoneração. Dolo. Culpa grave ou grosseira.
1-Resulta do art° 239° n° 4 do CIRE que as obrigações que impendem sobre o devedor durante o período da cessão se podem agrupar em três áreas: (i)- Obrigações destinadas a garantir transparência da situação patrimonial e pessoal do devedor (als. a) e d); (ii)-Obrigações destinadas a assegurar a diligência do devedor na procura da manutenção dos rendimentos (als. b) e d); (iii)- Obrigações destinadas a assegurar a probidade e a lisura de comportamento do devedor (als. a) c) e e);
2- Visa-se assegurar que, nesse período da cessão, o devedor não pratique actos, de maior ou menor importância, que possam colocar em causa os objectivos previstos com a cessão do rendimento disponível.
3-A cessação antecipada do procedimento de exoneração pode ser determinada sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração, o que ocorre quando, entre outros, o devedor tiver incumprido dolosamente ou com grave negligência alguma das obrigações que lhe incumbiam em relação à cessão do rendimento disponível.
4 - O dolo, em direito civil, assemelha-se ao dolo em direito penal, corresponde à intenção do agente praticar o facto; já na negligência o agente descura a diligência a que estava obrigado.
5 - A culpa grave ou grosseira corresponderá à conduta do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa.
6 - Da comparação da previsão da al. a) do art° 243° n° 1 com o art° 246° n° 1, ambos do CIRE, resulta que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração basta que se verifique um prejuízo para os créditos da insolvência, independentemente da quantificação desse prejuízo.
(elaborado pelo relator)
Proc. 657/14.5YXLSB-D.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Adeodato Brotas - Gilberto Jorge - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
_______
Proc. 657/14.5YXLSB-D.L1
Sumário (elaborado pelo relator)
1-Resulta do art° 239° n° 4 do CIRE que as obrigações que impendem sobre o devedor durante o período da cessão se podem agrupar em três áreas: (i)- Obrigações destinadas a garantir transparência da situação patrimonial e pessoal do devedor (als. a) e d); (ii)-Obrigações destinadas a assegurar a diligência do devedor na procura da manutenção dos rendimentos (als. b) e d); (iii)- Obrigações destinadas a assegurar a probidade e a lisura de comportamento do devedor (als. a) c) e e);
2- Visa-se assegurar que, nesse período da cessão, o devedor não pratique actos, de maior ou menor importância, que possam colocar em causa os objectivos previstos com a cessão do rendimento disponível.
3-A cessação antecipada do procedimento de exoneração pode ser determinada sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração, o que ocorre quando, entre outros, o devedor tiver incumprido dolosamente ou com grave negligência alguma das obrigações que lhe incumbiam em relação à cessão do rendimento disponível.
4- O dolo, em direito civil, assemelha-se ao dolo em direito penal, corresponde à intenção do agente praticar o facto; já na negligência o agente descura a diligência a que estava obrigado.
5- A culpa grave ou grosseira corresponderá à conduta do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa.
6- Da comparação da previsão da al. a) do art° 243° n° 1 com o art° 246° n° 1, ambos do CIRE, resulta que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração basta que se verifique um prejuízo para os créditos da insolvência, independentemente da quantificação desse prejuízo.

Proc. 657/14.5YXLSB-D.L1 — vindo do J 8 da instância local cível da comarca de Lisboa.
Espécie: Apelação em separado.
Apelante: RMF... e, AIC....
Apelados: CGD..., SA e outros.
Relator: Desembargador Adeodato Brotas
1° Adjunto: Desembargador Gilberto Jorge
2a Adjunta: Desembargadora Maria de Deus Correia.

Acordam na 6ª Secção Cível do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
1-Relatório.
1-RMF... e, AIC..., insolventes, notificados do despacho que declarou a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, dele vieram interpor recurso, formulando as seguintes
-CONCLUSÕES:
A). Vem o presente recurso interposto da sentença notificada via citius nos autos referenciados, por o mesmo ter, nos termos do art.° 244 do C.I.R.E, no qual decidiu pela cessação antecipada do pedido de exoneração do passivo restante dos aqui apelantes.
B). Crê-se, porém que, e salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão recorrida não fez a correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, nomeadamente o art.° 243 n.° 1 a) e art.° 239 ambos do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas — CIRE devendo, por conseguinte, ser revogada e substituída por outra decisão que aplique o direito ao caso concreto.
C). No presente processo, a exoneração foi recusada pelo facto de no decorrer do segundo ano do período de cessão do rendimento disponível, não terem os insolventes entregue a totalidade dos valores a que estão obrigados por força dessa cessão.
D). A questão principal e que reveste fundamental importância para aplicação da norma é o facto de inexistir, do comportamento dos insolventes, qualquer comportamento doloso ou com negligência grave.
E). Acresce que os insolventes não demonstraram indisponibilidade em repor as quantias em falta, pelo contrário, conforme se verá informaram os Autos que iriam proceder a essas entregas até final do período de cessão do rendimento disponível.
F). Ora, não pode colher o argumento do Tribunal recorrido que, com o devido respeito, erra na aplicação do Direito.
G). Vejamos, os insolventes tal como resulta do requerimento que levaram aos Autos em Novembro de 2017, encontram-se divorciados desde Junho de 2017, ainda que tenham-se separado anteriormente a isso tendo posteriormente juntado aos Autos Requerimento no qual requerem a alteração dos valores de cessão do rendimento disponível, face a uma nova realidade familiar, Requerimento no qual informam na parte final que irão proceder à entrega dos valores a título de cessão em divida até à data final desse período, tendo a 29 de Março de 2018 por Requerimento sublinhado novamente que irão proceder à devolução das quantias em atraso e não entregues a título de cessão, e requerem, ademais, que se pronuncie o Tribunal sobre o pedido por si levado aos Autos de revisão do valor fixado a título de cessão.
H). Ou seja, tal como resulta do alegado e comprovado pelos insolventes, o seu enquadramento familiar e composição do agregado sofreu uma alteração significativa no período de cessão do rendimento disponível.
I). Alteração que implicou uma reorganização da economia familiar (passando a existir duas famílias) e que não justificando completamente o incumprimento da obrigação de cessão, justifica as maiores dificuldades em cumprir a cessão.
J). Cessão essa que, não é demais dizer, foi fixada com a premissa da existência de uma só estrutura familiar (uma casa apenas) ao contrário da que passou a existir, duas famílias, duas casas, despesas a dobrar.
K). E nesse sentido, por isso, em Fevereiro de 2018, os insolventes requereram junto do Tribunal a alteração do valor a titulo de cessão no qual individualizam e separam as despesas dos dois insolventes, pedido do qual não resultou qualquer decisão por parte do Tribunal.
L). Para além disso, os insolventes por diversas vezes (conforme se atesta pelos documentos aqui junto) manifestaram a sua intenção de repor as quantias em falta, não tendo negado que o iriam fazer, aguardavam sim uma decisão por parte do Tribunal no que ao valor a ceder diz respeito, para iniciarem a cessão tendo em consideração o seu novo contexto familiar, comprometendo-se a liquidar os valores em falta.
M). Não se podendo, de modo algum apurar que o comportamento do devedor foi doloso nem ter ocorrido negligência grave do devedor e, sempre, se isso vier a produzir um prejuízo avultado para os credores.
N). Entende-se a negligência grave como a atuação do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa.
O). A questão essencial é que nos presentes Autos os devedores comprometeram-se a entregar o valor em falta na fidúcia.
P). Não tendo efectivamente concretizado o quando e quando na medida em que para o fazer estava dependente a decisão do Tribunal em alterar (tal como requerido pelos insolventes em Fevereiro) o valor de cessão.
Q). Como poderiam os insolventes comprometer-se a pagar uma determinada quantia mensal se não sabem qual será o valor fixado pelo Tribunal se considerar o que é alegado no Requerimento de Fevereiro de 2018.
R). Mas, repita-se, sempre demonstraram vontade de o fazer devendo o Tribunal ter dado a oportunidade de o fazerem, após ter procedido à apreciação do pedido pelos insolventes formulados em Fevereiro, o de revisão das quantias a ceder.
S). Só após essa revisão e eventual alteração, os insolventes estão em condições de propor um acordo prestacional dos valores em divida na fidúcia.
T). Pelo que, pelo exposto, concluem em primeira linha deve ser anulada a decisão de cessação antecipada do pedido de exoneração do passivo restante.
U). Para além dessa anulação, deve ser ordenado que o Tribunal a quo se pronuncie sobre o Requerimento de Fevereiro (doc. 2) no qual peticionam os devedores a alteração dos valores de cessão por forma a que, posteriormente a essa decisão, possam, junto do Sr. Fiduciário e com o conhecimento do Tribunal e demais intervenientes processuais (credores) celebrar um acordo de pagamento prestacional dos valores em dívida na fidúcia.
2- Não foram apresentadas contra-alegações.

II-Questões a Decidir.
1-Objecto do Recurso.
É sabido que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, nos termos
preceituados pelos artigos 635°, n° 4, e 639°, n° 1, do CPC/13.
Assim, face às conclusões apresentadas é a seguinte a questão que importa analisar e
decidir:
a)-Saber se há fundamento para revogar a decisão recorrida ordenando-se ao Tribunal a quo que se pronuncie sobre o Requerimento de Fevereiro no qual peticionam os devedores a alteração dos valores de cessão para que, posteriormente a essa decisão, possam, junto do Sr. Fiduciário e com o conhecimento do Tribunal e demais intervenientes processuais (credores) celebrar um acordo de pagamento prestacional dos valores em dívida na fidúcia.

2-Factualidade Relevante.
Com relevância para a decisão do recurso considera-se a seguinte factualidade,
resultante da certidão junta e da consulta electrónica dos autos:
1°-O recorrentes, RMF... e, AIC... apresentaram-se à insolvência e foram declarados insolventes por sentença de 13/07/2014 (sentença de declaração da insolvência junta com a certidão de instrução da apelação).
2°- Por decisão de 09/01/2015, foi admitida liminarmente a exoneração do passivo restante, solicitada pelos insolventes e declarada indisponível para a cessão a parte do rendimento dos insolventes que não exceda dois salários mínimos e meio, considerando o rendimento disponível que os devedores viessem a auferir cedido ao fiduciário pelo período de cinco anos.
Os devedores, ora apelantes, foram advertidos que durante o período da cessão ficavam obrigados ao cumprimento do art° 239° n° 4 do CIRE (certidão junta).
3°- Por decisão de 12/07/2016, foi declarar encerrado, nos termos do art° 230° n° 1, als. a) e e) do CIRE, o processo da insolvência dos ora recorrentes. (certidão junta)
4°- Em 01/09/2016, os devedores invocando necessidade de adquirirem livros escolares para os filhos, solicitaram fossem autorizados a abater no rendimento disponível o valor desses livros (Consulta electrónica ao processo).
5°- Ouvido o Fiduciário, não se opôs — em 08/09/2016. (Consulta electrónica ao processo).
6°- Em 12/09/2016, foi proferido despacho no sentido de as despesas extraordinárias deverem ser reflectidas no relatório do Fiduciário e apreciadas a final. (Consulta electrónica ao processo).
7°- Em 20/10/2017 o Fiduciário notificou os devedores para informarem sobre os respectivos rendimentos e empregos. (Consulta electrónica ao processo).
8°- Os devedores nada disseram. (Consulta electrónica ao processo).
9°- Em 31/10/2017 o Fiduciário apresentou relatório anual sobre o estado da cessão e solicitou se notificassem os devedores sobre a causa do incumprimento da cessão. (Consulta electrónica ao processo).
10°- Em 22/11/2017 os devedores vieram dizer que não cumpriram a obrigação de entregarem os rendimentos disponíveis por se encontrarem separados desde o início do período da cessão e divorciados desde Junho de 2017 e que iriam diligenciar para reporem os valores em atraso até ao final do período da cessão. (Consulta electrónica ao processo).
11°- Em 06/02/2018, os devedores vieram alegar alteração das composições dos respectivos agregados familiares em consequência do divórcio e invocar que ela passou a ter despesas de 1625€ e rendimentos de trabalho de 1200€ mais 225€ de pensão de alimentos para os filhos e, ele, dizer que tem despesas de 805€ e rendimentos de 1150€. Requereram fosse fixado o valor mensal de cessão de rendimentos que cada um teria de pagar. (Consulta electrónica ao processo).
12°- Em 15/03/2018, o MP promoveu no sentido de serem notificados os devedores para, mais uma vez, esclarecerem a causa do incumprimento da cessão. (Consulta electrónica ao processo).
13°- Em 29/03/2018 os devedores reiteraram que a razão do incumprimento foi a separação do casal e o consequente divórcio. (Consulta electrónica ao processo).
14°- O MP, os credores e o Fiduciário pronunciaram-se no sentido da cessação antecipada da exoneração do passivo restante. (Consulta electrónica ao processo).
15°- Em 01/08/2018 foi proferido despacho a declarar antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante, ora sob recurso, com o seguinte teor:
Em 19.01.2015 foi proferido despacho a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelos insolventes, tendo sido determinado que o rendimento disponível dos insolventes seria cedido ao Fiduciário o montante por si auferido, com exclusão de 2 salários mínimo nacional e meio do seu vencimento liquido — cf fls. 209/215.
Em 12.07.2016 foi proferido despacho a declarar encerrado o processo — cf. fls. 317/318.
O Senhor Fiduciário veio através do requerimento de fls. 361 e segs. Dar conhecimento aos autos de que apesar das notificações que efectuou aos insolventes, estes não estão a cumprir o acordado.
Os insolventes notificados para esclarecerem o que tivessem por conveniente, vieram dizer que se encontravam separados, tendo o divórcio sido formalizado em Junho de 2017, e propondo, de forma genérica, repor os valores em falta até ao fim do período de cessão, sem contudo apresentarem qualquer plano concreto — cf fls. 386, 401 e 466.
Notificado, o Senhor Fiduciário veio informar que os insolventes apenas lhe entregaram o montante de e 625,18, encontrando-se em incumprimento desde Agosto de 2016 a 2017 o valor de € 7 210,62 —cf fls. 478/479.
Notificados a Digna Magistrada do Ministério Público e os credores, os mesmos pronunciaram-se no sentido de ser recusada antecipadamente a exoneração —cf. fls. 470/471 e 481 a 488, respectivamente.
Cumpre decidir:
A cessação antecipada do procedimento de exoneração encontra-se regulada no artigo 243° do CIRE, dispondo o n°1 que Antes ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) o devedor tiver dolosa mente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239°, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; ( .. ).
Do referido artigo 239° do CIRE resulta como obrigações do insolvente, entre outras, informar o Tribunal e o Fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e prazo em que isso lhe seja requisitado [alínea a) do n°4], bem como entregar imediatamente ao Fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão [alínea c) do n°4 do citado artigo].
Do exame dos autos, conclui-se assim que os insolventes não procederam à entrega ao Fiduciário de qualquer valor desde Agosto de 2016 até à presente data, a título de cessão.
Pelo exposto, impõe-se concluir que se encontra preenchida a previsão do artigo 243° do CIRE, tendo os insolventes violado as obrigações que lhe foram impostas com a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante e, em consequência, declara-se a cessação antecipada da exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, recusando-se a requerida exoneração.
Custas pelos insolventes.
Notifique e registe.
Lisboa, 01-08-2018.

3- O Direito.
Como se referiu, a questão que se coloca consiste em saber se há fundamento para revogar a decisão que declarou antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante.
Segundo os devedores/apelantes a decisão de cessação antecipada deve ser revogada e, ordenado que o tribunal a quo se pronuncie sobre o pedido de redução dos valores de cessão para que possam negociar com o Fiduciário e credores o pagamento em prestações dos valores em dívida na fidúcia.
Terão razão?
É o que cumpre decidir.
3.1- O Instituto da Exoneração do Passivo Restante: Breves Linhas.
Antes de mais, importa, em breves linhas, recordar o Instituto da Exoneração do Passivo Restante.
Pois bem, a Reforma do Regime Falimentar levada a cabo pelo DL 53/2004, de 18/03, que instituiu o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), trouxe consigo novidades no que toca à insolvência de pessoas singulares: introduziu a Exoneração do Passivo Restante adoptando a figura do direito alemão, Restsculdbefreiung, com base no modelo americano fresh start, destinada a conferir ao devedor (pessoa singular) uma segunda oportunidade de começar de novo.
O legislador do CIRE justificou, no ponto 45 do preâmbulo do DL 53/2004, a introdução do instituto referindo O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da 'exoneração do passivo restante'.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal beneficio supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o beneficio da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores.
Perante esta justificação do legislador e face ao regime adoptado nos ares 235° a 247° do CIRE, a generalidade da doutrina e da jurisprudência concordam que o Instituto da Exoneração do Passivo Restante se destina a conferir uma segunda oportunidade ao devedor, pessoa singular, de recomeçar a sua vida económica e financeira libertando-o
do jugo de dívidas que não poderia solver e que assim são consideradas extintas (Cf. entre outros, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6' edição, 2014, Almedina, pág. 320; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7' edição, 2017, Almedina, pág. 341; Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, 2013, Almedina, pág. 648; Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, 2005, edição especial, Novo Direito da Insolvência, AAVV, pág. 165 e segs.; Catarina Cabete de Oliveira, A Exoneração do Passivo Restante, Dissertação de mestrado, 2014, edição on-line, pág. 17 e segs; Daniel Filipe de Sousa, Questões controversas que se colocam em torno da exoneração do passivo restante, Dissertação de mestrado, Maio de 2016, edição on-line, pág. 8 e segs.; Acs. Do STJ de 03/11/2011, Maria dos Prazeres Beleza e de 21/10/2010, Oliveira Vasconcelos; da Rel. Guimarães, de 24/07/2014, Fernando Fernandes Freitas e de 14/01/2016, Maria Cristina Cerdeira; da Rel. Coimbra, de 07/04/2016, Sílvia Pires, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
É, pois, importante que se perceba esta razão de ser da figura de exoneração do passivo.
3.2- Síntese do Regime da Exoneração do Passivo Restante: os dois momentos processuais normais da intervenção judicial.
Em termos sintéticos, a Exoneração do Passivo Restante inicia-se (sempre e somente, legitimidade activa exclusiva) com um pedido do devedor (pessoa singular), deduzido, além do mais, no requerimento de apresentação à insolvência (art° art° 236° n° 1, 1 parte, CIRE).
Desse requerimento deverá constar, expressamente, a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes (art° 236° n° 3 do CIRE).
Formulado o pedido, o juiz deve apresenta-lo na assembleia de apreciação do Relatório a que se refere o art° 155° do CIRE, o que constitui uma formalidade essencial, (Cf. Carvalho Fernandes/João Labareda, CIRE Anotado, vol. II, 2005, Quid Juris, pág. 186) com a vista a dar aos credores e ao administrador a possibilidade de se pronunciarem sobre o pedido formulado, conforme decorre do art° 236° n° 4 do CIRE, sendo esse o momento e local próprio para a manifestação da oposição à pretensão do devedor (c. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, cit., pág. 344).
Com ou sem oposição, compete ao juiz proferir despacho de admissão ou de indeferimento do pedido de concessão de exoneração do passivo (restante). Este é um dos dois momentos normais, o primeiro, da intervenção do juiz no processamento do incidente de Exoneração do passivo: decidir se admite, ou não, a pretensão exoneratória das dívidas restantes do devedor.
Atente-se, melhor dizendo, saliente-se que o despacho inicial não representa qualquer decisão relativamente à (futura) concessão da exoneração do passivo restante: corresponde apenas ao início de uma nova fase processual, caso seja (liminarmente) admitida a pretensão do devedor, de ser exonerado das dívidas que não solver no período de cinco anos após o encerramento do processo de insolvência (art° 239° n° 2, 1a parte do CIRE).
Da conjugação dos art's 238° n° 1, 239° n° 2 e 244° do CIRE, decorre que há um segundo momento normal na vida do incidente de exoneração: justamente, o despacho final a conceder ou a rejeitar o perdão das dívidas não pagas no período de cessão, proferido cinco anos após a admissão liminar do incidente.
Com efeito, não tendo havido lugar à cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período de cessão conceder, ou não, a exoneração do passivo restante do devedor, ouvindo-o, bem como ao fiduciário e aos credores (art° 244° n° 1 do CIRE).
Este é o segundo (e último) momento normal do incidente de exoneração.
3.3- As Obrigações do Devedor Durante o Período da Cessão.
Admitido o procedimento de exoneração do passivo restante, resulta do art° 239° n° 2 do CIRE que o período de cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência é designado por período de cessão, durante o qual o devedor está obrigado a entregar ao fiduciário o rendimento disponível que aufira.
Integram o designado rendimento disponível, todos os rendimentos que advenham, a qualquer título ao devedor, com excepção dos créditos a que se refere o art° 115° do CIRE (cessão e penhor de créditos futuros) e do que seja razoavelmente necessário para: sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, exercício pelo devedor da sua actividade profissional, outras despesas ressalvadas no despacho inicial ou em momento posterior a requerimento do devedor (art° 239° n° 3, do CITE).
No caso dos autos foi estabelecido no despacho inicial que seriam indisponíveis para a cessão valores correspondentes a duas vezes e meia o ordenado mínimo.
Portanto, todos os restantes rendimentos auferidos pelo devedor, deverão ser entregues ao fiduciário.
Ora estabelece o n° 4 do art° 239° do CIRE que durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Deste normativo decorre que as obrigações que impendem sobre o devedor durante o período da cessão se podem agrupar em três áreas: (i)- Obrigações destinadas a garantir transparência da situação patrimonial e pessoal do devedor (als. a) e d); (ii)- Obrigações destinadas a assegurar a diligência do devedor na procura da manutenção dos rendimentos (als. b) e d); (iii)- Obrigações destinadas a assegurar a probidade e a lisura de comportamento do devedor (als. a) c) e e). (Cf. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor...cit., pág. 172)
Visa-se assegurar que nesse período da cessão o devedor não pratique actos, de maior ou menor importância, que possam colocar em causa os objectivos previstos com a cessão do rendimento disponível.
Todas estas obrigações do devedor têm por base o princípio da boa fé (Cf. Menezes Leitão, apud Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2 edição, 2016, Almedina, pág. 610, nota 65; Catarina Cabete Oliveira, A Exoneração...cit., pág., 56) pelo que o devedor deverá
informar de imediato o tribunal e o fiduciário se lhe advieram novos rendimentos, não lhe sendo permitida uma atitude puramente passiva. Durante esse período exige-se um
comportamento exemplar ao devedor revelador da sua boa fé (Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, Código da Insolvência...cit., pág. 666).
3.4- A Cessação Antecipada da Exoneração do Passivo.
Durante a vigência do período de cessão, o incumprimento das obrigações a que o devedor fica adstrito podem ter por consequência a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
O art° 243° n° 1 do CIRE estabelece:
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência,.
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e J do n.° 1 do artigo 238.°, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Dos preceitos decorre que a cessação antecipada do procedimento de exoneração pode ser determinada sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração, o que ocorre quando: a)- O devedor tiver incumprido dolosamente ou com grave negligência alguma das obrigações que lhe incumbiam em relação à cessão do rendimento disponível; b)- Vier a ser apurado supervenientemente algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos nas als, b), e) e f) do art° 238° do CIRE; c)- A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência.
No caso dos autos, não está em causa aplicação das situações previstas nas als. b) e c) do preceito.
Impõe-se que se analise a al. a).
Resulta dessa al. a), transcrita supra, que são requisitos da cessação antecipada da exoneração: i)- A violação dolosa ou com negligência grave de alguma das obrigações relativas à cessão dos rendimentos disponíveis; ii)- Que essa violação prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Vejamos cada um destes requisitos.
Começando pelo segundo: que a violação das obrigações impostas pelo art° 239° do CIRE prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Pois bem, da comparação da previsão da al. a) do art° 243° n° 1 com o art° 246° n° 1, ambos do CIRE, resulta que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração basta se verifique um prejuízo para os créditos da insolvência, independentemente da quantificação desse prejuízo. Na verdade, o art° 246° n° 1 exige, para a revogação da exoneração (já concedida) que a violação das obrigações durante o período da cessão tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores; ou seja, esse prejuízo deve ser aferido em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência. A razão de ser dessa diferença prende-se com a circunstância de a revogação ser mais grave, nas suas consequências, por fazer cessar efeitos jurídicos já produzidos (Cf. Carvalho Fernandes/João Labareda, CIRE Anotado...cit., pág. 208 e seg.)
No que toca ao primeiro daqueles requisitos: violação dolosa ou com negligência grave de alguma das obrigações relativas à cessão dos rendimentos disponíveis.
Resulta do preceito que não basta a violação das obrigações relativas à cessão de rendimentos disponíveis, exigindo-se uma conduta dolosa ou com negligência grave.
O dolo, em direito civil, semelhantemente ao que sucede no direito penal, corresponde à intenção do agente praticar o facto; já na negligência o agente descura a diligência a que estava obrigado.
É conhecida a graduação do dolo, entre dolo directo, necessário e eventual. Na primeira modalidade, o agente quer a verificação do facto, sendo a sua conduta dirigida directamente a produzi-lo; na segunda modalidade, o agente não dirige a sua actuação directamente a produzir a verificação do facto, mas aceita-o como consequência necessária da sua conduta; na terceira modalidade, o agente representa a verificação como consequência possível da sua conduta e actua, conformando-se com a sua verificação. (Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 7° edição, Almedina, pág. 319).
A culpa, enquanto juízo de censura ao comportamento do agente é apreciada em abstracto, exigindo a lei ao agente a diligência padrão dos membros da sociedade, isto é, a diligência que normalmente um homem médio, o bonus pater familias, coloca na sua actuação (art° 487° n° 2 do CC).
Distinguindo a doutrina entre culpa grave, culpa leve e culpa levíssima, a negligência ou culpa grave ou grosseira corresponderá à conduta do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa. (Cf. Ac. TRP, de 08/02/2018, Freitas Vieira, www.dgsi.pi).
3.5- O Caso do Recurso.
No caso em apreço, resulta da factualidade apurada que os devedores/apelantes, deixaram de cumprir mais que uma das obrigações que sobre eles impendiam em consequência da admissão do procedimento de exoneração do passivo restante.
Com efeito, em primeira análise, decorre que deixaram de entregar, de Agosto de 2016 e Novembro de 2017, 7 210,62 €, tendo apenas entregado, logo no início do período da cessão, 625,18€. Este comportamento, é violador da obrigação de entrega imediata ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto da cessão, prevista no art° 239° n° 4, al. c) do CIRE.
Violaram ainda a obrigação de informar prontamente qualquer mudança de domicílio ou das condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência. Com efeito, os vencimentos declarados pelos devedores/apelantes aquando do pedido de concessão da exoneração do passivo restante, eram 485€ ele e de 749€ ela (veja-se a sentença de declaração de insolvência) e, no requerimento de Fevereiro de 2018, alegam receber mensalmente, respectivamente, 1 200€ e 1 150€. Além disso, não informaram prontamente sobre a alteração da sua união conjugal, nem da alteração de residência (pelo menos o devedor). Violaram ainda a obrigação de informar sobre os seus rendimentos e de fornecer, no prazo fixado, informações que comprovem o cumprimento das obrigações, visto que notificados pelo fiduciário em 20/11/2017, sobre respectivos rendimento e emprego, os devedores/apelantes, nada disseram.
Portanto, os devedores/apelantes violaram diversas obrigações que sobre eles impendiam decorrentes de situação de submissão ao período de cessão.
Acrescente-se que os devedores/apelantes foram advertidos para o dever de observarem as obrigações do art° 230° n° 4 do CIRE, como decorre da decisão que deferiu inicialmente o procedimento de exoneração do passivo restante.
Por outro lado, mesmo que a actuação dos devedores/apelantes não possa qualificar-se como dolosa, deve ser qualificada como culpa grave ou grosseria, visto que estavam conscientes dos deveres a que estavam vinculados (deles foram advertidos) e não os cumpriram, sendo certo que o homem médio, ou bom pai de família, teria cumprido esses deveres ou, informado prontamente o fiduciário e o tribunal das alterações que ocorreram.
Por conseguinte e concluindo: ocorrendo violação com culpa grave de deveres que incidiam sobre os devedores/apelantes e resultando dessa violação prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, deve ser cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante.
Por outro lado, não há fundamento para revogar a decisão recorrida e ordenar a apreciação da pretensão deduzida em Fevereiro de 2018 visto que, nessa data, já se verificavam os pressupostos da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo.
O recurso improcede.

III- Decisão.
Em face do exposto, acordam na 6ª Secção Cível do em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas: pelos apelantes, sem prejuízo de apoio judiciário.
Lisboa, 7 de fevereiro de 2019
(Adeodato Brotas, Relator)
(Gilberto Jorge, 1° Adjunto) (1.ª Adjunta)
(Maria de Deus Correia) (2ª Adjunta)
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