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 - ACRL de 07-06-2018   Exoneração do passivo restante. Art. 239.º, n.º 3, al. b), do CIRE. Mínimo necessário ao sustento digno do devedor.
1. No regime de exoneração do passivo restante, e para efeitos do disposto no art. 239.º, n.º 3, al. b). do CIRE, devem considerar-se excluídos do rendimento disponível os montantes tidos por razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar até três vezes o SMN, exceto se, fundadamente, o juiz determinar montante superior.
2. O conceito de mecanismo necessário ao sustento digno do devedor tem por subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar na particularidade da situação do devedor em causa.
Proc. 21650/17.0T8SNT-A.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Ilídio Martins - Teresa Prazeres Pais - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Proc.° n° 21650/17.0T8SNT-A.L1
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
Jo..., em 24.11.2017, requereu a sua declaração de insolvência, bem como a exoneração do passivo restante.
Foi proferida sentença em 28-11-2017 que declarou a insolvência do requerente.
No relatório a que se refere o artigo 155° n° 1 do CIRE, o administrador da insolvência emitiu parecer quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, referindo que nada tem a opor à sua admissão liminar e posterior concessão.
Referiu ainda o seguinte: No que concerne à determinação do rendimento disponível, considerando a composição do agregado familiar do devedor e as despesas normais da vida corrente, entende-se que o montante equivalente a dois salários mínimos nacionais se afigura adequado para que aquele possa prover ao sustento do seu agregado familiar, de forma minimamente condigna, nos termos do disposto na ala i) do n° 3 do artigo 239° do CIRE - fls 44 v°.
Por despacho de 15 de Março de 2018, foi declarado que a exoneração do passivo restante será concedida findo o período de cinco anos, sendo determinado que durante o período de exoneração, o rendimento disponível que os devedores obtenham, em tudo o que exceder a quantia equivalente a um salário mínimo nacional e meio (actualmente com o valor de € 870,00), (...). Igualmente se considera como rendimento disponível para efeitos de entrega o correspondente a subsídios de férias e de Natal que venham a ser recebidos pelo devedor - fls 70 a 71.
Não se conformando com o referido despacho, dele recorreu o insolvente, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
a) O despacho proferido e notificado ao ora recorrente em 22/03/2018, deve ser revogado e substituído por outro que fixe o quantum da apreensão do rendimento do insolvente em valor equivalente a dois salários mínimos nacionais.
b) Porquanto, por um lado desprovido de qualquer fundamentação de facto ou de direito que o sustente.
c) Por outro, não se encontram no processo outros elementos para além das despesas devidamente comprovados pelo recorrente na sua PI, as quais não foram colocadas em crise, que permitissem o tribunal a quo aferir o quantum a ceder para a massa de outra forma que não tivesse por base aquelas.
d) E, portanto, na ausência de critérios objectivos de decisão, impõe-se ao julgador decidir casuisticamente com base nos elementos que dispõe, que no caso em apreço são rigorosamente os que foram carreados para os autos pelo aqui recorrente.
e) E terá que ser com base nestes que o tribunal a quo se deveria ter pronunciado fundamentadamente sobre qual o quantum que considerava por proporcional e justo à satisfação das necessidades do aqui recorrente.
f) Pelo que, e atento o supra exposto, deve o despacho proferido em 16/03/2018 ser revogado e em sua substituição ser fixado ao aqui recorrente um quantum de € 1.160,00 a acrescer um dos subsídios anuais (férias ou natal) para o sustento minimamente digno daquele e da sua esposa, porquanto considera que assegurava a satisfação das suas necessidades fundamentais e não os sujeitava a miserabilismos - vd. ala b) i) n° 3 art° 239° CIRE.
Termina, pedindo que seja revogado o despacho recorrido na parte em que quantificou o valor da apreensão do rendimento do recorrente a favor da massa insolvente.
Não houve contra-alegações. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II-FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
A matéria de facto a ter em conta é a seguinte:
1° - O requerente nasceu em 01 de Setembro de 1944, é casado e reside com a sua mulher.
2° - O agregado familiar tem como única fonte de rendimento a pensão de reforma do insolvente que ascende a € 1.574,69 mensais.
3° - Desse montante é retirado mensalmente a quantia de € 866,14, por força da penhora respeitante ao processo n° 38060/05.5YYLSB.
B) Fundamentação de direito
Importa apreciar do mérito da apelação, tendo em atenção o teor das conclusões atrás descritas.
O processo de insolvência tem como objectivo primeiro, como se extrai do preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004 de 18 de Março (ponto 3), a satisfação dos direitos dos credores por força do património do devedor.
O diploma em causa introduziu um regime diferenciado para as pessoas singulares declaradas em estado de insolvência, permitindo que, em determinadas circunstâncias necessariamente excepcionais, as suas responsabilidades ante os credores sejam atenuadas ou mesmo anuladas de modo a permitir que, volvido algum tempo, os insolventes possam retomar a sua actividade económica sem o constrangimento decorrente da situação pretensamente anómala que os conduziu à impossibilidade de cumprimento das suas obrigações e à insolvência.
Segundo o n° 45 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (...) é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante.
- ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (...), que afectará os montantes recebidos ao pagamento aos credores. No termo deste período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
Dispõe o art° 239° do CIRE:
1. Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (...).
2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário (...) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
(...)
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
Carvalho Fernandes e João Labareda' dizem que as conclusões previstas nas suas subals i) e ii) decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular. Em qualquer delas, embora em planos diferentes, está em causa essa função. Assim, a subal. i) refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. O legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional. Merece, pois aplauso esta solução, que tem ainda a vantagem de assegurar a actualização automática da exclusão. O valor assim calculado só pode ser excedido mediante decisão do juiz, devidamente fundamentada.
Não podemos concordar com esta interpretação, pois o sentido da norma é o de que o sustento minimamente digno será fixado até 3 vezes o salário mínimo nacional. Se esse sustento correspondesse ao montante fixo apontado (3 vezes o salário mínimo) não haveria lugar ao cálculo desse valor, como acrescentam os mencionados autores, dando a entender que não completaram anteriormente o seu raciocínio.
Acresce que a menção ao que seja razoavelmente necessário envolve claramente um juízo e ponderação casuística do juiz sobre o montante a fixar.
Neste sentido, se pronunciou Assunção Cristas que adopta também esta interpretação: o rendimento disponível engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, excluindo (...) os montantes que se consideram razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar (até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundadamente, o juiz determinar montante superior).
No acórdão desta Relação de 18.01.2011 decidiu-se que na determinação do rendimento indisponível a que alude a subalínea i) da al. b) do n° 3 do art° 239° do CIRE, o legislador estabeleceu dois limites: um mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; um limite máximo, obtido através de um critério quantificável e objectivo (o equivalente a três salários mínimos nacionais), o qual, excepcionalmente, poderá ser excedido em casos que o justifiquem. O conceito de mínimo necessário ao sustento digno do devedor tem por subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar na particularidade da situação do devedor em causa.
No âmbito da insolvência, a exclusão de entrega ao fiduciário prevista no art° 239° n° 3-b) (i) do CIRE também pode atingir montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional, o qual funciona igualmente como limite máximo (só podendo ser excedido por decisão fundamentada), competindo ao juiz fixar, com razoabilidade, até esse limite, o montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respectivo agregado familiar.
Como refere Menezes Leitão,a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía.
No caso dos autos, está provado que:
1° - A insolvente é casada e o seu agregado familiar é composto pelo seu marido e por duas filhas, uma delas de maior idade, mas a seu cargo.
2° - A insolvente é doméstica e aufere a quantia de € 90,69 por tomar conta de sua mãe. 3° Para a filha menor, a título de abono de família, recebe o valor de € 29,19.
4° - O seu marido aufere uma pensão de invalidez no valor mensal de € 486,80.
O valor global do rendimento do agregado familiar atinge o montante de € 606,68 para custear as despesas do dia a dia necessárias à sua subsistência e sobrevivência de sua família.
Nesta conformidade, afigura-se-nos justo que se fixe o rendimento não disponível para a insolvência em um salário mínimo regional e meio. Assim, procedem as conclusões das alegações da apelante.
SÍNTESE CONCLUSIVA
- No regime de exoneração do passivo restante e para efeitos do disposto no art° 239°/3- b) do CIRE, devem considerar-se excluídos do rendimento disponível os montantes tidos por razoavelmente necessários para o sustento do devedor e do seu agregado familiar até três vezes o salário mínimo nacional, excepto se, fundadamente, o juiz determinar montante superior.
- O conceito de mínimo necessário ao sustento digno do devedor tem por subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar na particularidade da situação do devedor em causa.
III - DECISÃO
Atento o exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, para se proceder em conformidade com o decidido.
Custas pela massa insolvente - artigo 304° do CIRE.
Lisboa, 07/06/2018
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida Costa
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