Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 06-06-2018   Contra-ordenação. Falta de pagamento de subsídio de Natal e de subsídio de férias. Ónus da prova da possibilidade de cumprimento da obrigação.
Verificando-se que a arguida não procedeu ao pagamento de subsídios de Natal e de férias e perante as dúvidas quanto à capacidade de cumprimento de tais obrigações por parte da mesma, incumbia ao recorrente provar a possibilidade de a arguida cumprir as obrigações em causa, de forma a concluirmos pela verificação de ilícito contra-ordenacional.
Proc. 19843/17.0T8LSB.L1 4ª Secção
Desembargadores:  Francisca da Mata Mendes - Maria Celina Nóbrega - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Proc. n° 19843/17.0T8LSB L1 Acórdão
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:
I- Relatório
Ga..., Lda veio judicialmente impugnar a decisão proferida pela ACT, no âmbito do processo de contra-ordenação que lhe aplicou a coima única de 33 UC (3.366,00 €), pela prática de duas contra-ordenações p. e p. no art. 263° e art. 264° n° 2 do Código do Trabalho.
A recorrente invocou que:
- A decisão recorrida é inválida por falta de fundamentação;
- A decisão recorrida está ferida, quer quanto aos factos, quer quanto à imputação. subjectiva dos mesmos (relativamente à qual apenas é feita uma referência genérica);
- Foi carreada para os autos prova documental e testemunhal, que não foi valorizada;
- A existência da bomba de gasolina e seu encerramento é um facto notório; - A arguida é primária e não retirou qualquer benefício económico com os factos.
A autoridade administrativa não revogou a decisão.
O Ministério Público ordenou a remessa dos autos a este Tribunal.
Recebido o recurso, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento.
Na sentença recorrida foi consignada a seguinte fundamentação de facto:
«Uma vez que a recorrente não impugnou a matéria de facto objectiva descrita na proposta de decisão de fls. 82 a 86, consideram-se provados os factos objectivos aí descritos, sob o ponto III e epígrafe Fundamentação de facto , cujo teor aqui se dá por reproduzido, acrescentando-se, ainda, os seguintes:
1. Em data não concretamente apurada mas entre o final do ano de 2011 e princípio de 2012, a arguida perdeu o contrato de concessão da marca Renault.
2. A perda de concessão determinou a perda de um número não apurado de clientes individuais e de empresas, com inerente quebra da facturação e rendimento líquido.
3. A arguida explorava uma bomba de gasolina que foi encerrada pela ASAE em 2 de Março de 2012, por um período não concretamente apurado mas próximo de um ano.
4. O facto referido em 3, determinou uma quebra de receitas e a inactividade dos funcionários afectos ao serviço da bomba de gasolina.
(...) Matéria de facto não provada: Inexiste factualidade não provada.» Em sede de enquadramento jurídico refere a sentença recorrida:
« (...) À arguida foi imputada a prática de duas contra-ordenações p. e p. no art. 263° e art. 264° n° 2 do Código do Trabalho.
Subsídio de Natal Prescreve o art. 263° n° 1 do CT que O trabalhador tem direito a subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição, que deve ser pago até 15 de Dezembro de cada ano , cominando com contra-ordenação a violação do referido comando legal (n° 3).
Retribuição do período de férias e subsídio de férias
Nos termos do disposto no art. 264° n° 2 do CT (...) o trabalhador tem direito a subsídio de férias, compreendendo a retribuição base e outras prestações retributivas que sejam contrapartida do modo específico da execução do trabalho, correspondentes à duração mínima das férias. .
Vejamos se estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos das contraordenações imputadas.
Conforme decorre da factualidade apurada e que já constava de decisão administrativa recorrida, a arguida não procedeu ao pagamento do subsídio de Natal de 2011, e subsídios de férias e de Natal de 2012 aos seus trabalhadores. Dúvidas não subsistem relativamente ao preenchimento da tipicidade objectiva da contra-ordenações em causa.
Todavia, o cometimento da infracção não se basta com a falta objectiva do pagamento dos subsídios em causa. Mostra-se necessário imputar à arguida factos dos quais resulte demonstrada a sua responsabilidade pela falta de pagamento, isto é, que conhecia o dever de pagar e tendo condições financeiras para o fazer, não o fez (conduta negligente). No caso é indiscutível que a arguida estava consciente do dever que sobre ela impendia. A questão prende-se com a existência ou não de uma situação financeira que permitisse o pagamento.
A decisão administrativa construiu o elemento subjectivo (a culpa da arguida) com base no pressuposto errado: o de que incumbe à arguida demonstrar probatoriamente a sua falta de liquidez. Incumbia à ACT ter averiguado a situação financeira .da arguida para poder afirmar que a mesma procedeu de modo negligente. Quer o auto de notícia quer a decisão administrativa são totalmente omissas quanto a esses elementos fácticos (que a ACT assumidamente não averiguou).
No caso em apreço, tendo em consideração a factualidade dada por provada nos pontos 1 a 4, não é possível afirmar que a arguida não cuidou pagar quando podia fazê-lo ou que apenas por descuido ou incúria não adoptou as medidas necessárias para permitir o pagamento.
Por conseguinte, impõe-se concluir pelo não preenchimento da tipicidade subjectiva.
Nesta conformidade, impõe-se absolver a arguida dos ilícitos contra¬ordenacionais que lhe foram imputados, por falta de preenchimento dos elementos do tipo subjectivo.
Não estando demonstrada a prática das contra-ordenações imputadas à arguida, conclui-se pela total procedência do recurso.»
Com os indicados fundamentos, o Tribunal a quo absolveu a arguida da prática das contra-ordendações que lhe foram imputadas.
O Ministério Público recorreu desta sentença e formulou as seguintes conclusões:
1. A punição por negligência funda-se no poder-dever do agente de agir de outro modo, sendo a culpa o nexo de imputação ético jurídica que liga o facto ilícito à vontade do agente.
2. Uma quebra de rendimento líquido de uma empresa não configura uma necessária e absoluta incapacidade económica para pagamento, nomeadamente das prestações devidas aos trabalhadores, incluindo os subsídios de férias e ou de natal, e por si só, não constitui um facto susceptível de obstar ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional.
3. No que se refere ao regime laboral e, bem assim, quanto ao cumprimento da obrigação de pagamento de créditos por parte do empregador, mormente créditos retributivos devidos aos trabalhadores, o legislador veio estabelecer diversos mecanismos legais que visam, no essencial, permitir um equilíbrio entre a necessidade de sustentabilidade das empresas e a necessidade de sustentabilidade dos trabalhadores através da protecção do direito ao recebimento por estes da retribuição.
4. De facto, não havendo base legal que permita à entidade empregadora deixar de efectuar o pagamento da retribuição mensal, ou dos subsídios de férias e de natal, cabe-lhe diligenciar no sentido de encontrar formas legais de ultrapassar, ou fazer face, à situação económica difícil em que se encontra, desta feita prevenindo ou acautelando, por via legal os direitos e garantias dos trabalhadores, bem como a sã concorrência entre empresas.
5. Ainda que o não pagamento da retribuição aos trabalhadores tenha como causa uma relativa dificuldade/incapacidade financeira, ainda assim, o não pagamento da retribuição não pode estar desacompanhado do processo próprio aplicável às circunstâncias financeiras da empresa.
6. Dificuldades económicas não significam, necessariamente, impossibilidade absoluta de pagamento, ainda que, eventualmente, em prestações, obtido que fosse o acordo dos trabalhadores credores de tais prestações.
7. A arguida não diligenciou, de forma adequada e em tempo oportuno, pela obtenção de pertinentes soluções (maxime, acordos relativamente a todos os trabalhadores aos quais não pagara as devidas prestações).
8. A eventual celebração de acordos com os trabalhadores, ainda que num quadro de dificuldades económicas, permitiria à arguida demonstrar, com esse facto, da sua diligência para resolver o problema dos pagamentos em falta.
9. Demonstrado está, pois, que a arguida poderia ter agido de outro modo, bem sabendo quais poderiam ser as consequências dessa sua não acção ou diligência, nomeadamente uma eventual imputação, com culpa (negligência) na prática da infracção.
10. Cometeu, assim, a contra-ordenação que lhe vem imputada, a título de negligência por não ter agido de forma diligente para ou pagar ou encontrar soluções consentâneas, nomeadamente através da celebração de acordos de pagamento com os trabalhadores...
Nestes termos deve o presente recurso obter provimento e revogar-se a sentença ora impugnada, substituindo-se por outra que condene a arguida.
A Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso se estão verificados os elementos subjectivos dos ilícitos contra-ordenacionais em apreço.

III- Apreciação
Os factos provados são os seguintes:
- O volume de negócios do ano 2013 corresponde a €824 866,00;
- Até ao dia 28.02.2014, não foram pagos aos 15 trabalhadores identificados a fls. 84 o subsídio de Natal de 2011 os subsídios de férias e de Natal de 2012;
- A arguida regularizou o pagamento dessas quantias aos trabalhadores Al... e Nu... nos dias 27/01/2014 e 31/01/2014, respectivamente.
Resultou provado da audiência de julgamento:
1. Em data não concretamente apurada mas entre o final do ano de 2011 e princípio de 2012, a arguida perdeu o contrato de concessão da marca Renault.
2. A perda de concessão determinou a perda de um número não apurado de clientes individuais e de empresas, com inerente quebra da facturação e rendimento líquido.
3. A arguida explorava uma bomba de gasolina que foi encerrada pela ASAE em 2 de Março de 2012, por um período não concretamente apurado mas próximo de um ano.
4. O facto referido em 3, determinou uma quebra de receitas e a inactividade dos funcionários afectos ao serviço da bomba de gasolina.

Conforme refere a sentença recorrida, estão reunidos os elementos objectivos dos ilícitos contra-ordenacionais em apreço ( previstos nos arts. 263°, n°3 e 264°, n°4, do CT).
Resulta do disposto no art. 550° do CT que a negligência nas contra-ordenações laborais é sempre punível.
Em anotação a este artigo refere João Soares Ribeiro in Contra-Ordenações Laborais, 3a edição, pág. 329 :
«Haverá nas contra-ordenações uma presunção de negligência ?
Pensamos que não. A culpabilidade deve ser apreciada na instrução do processo de contra-ordenação, de acordo com os factos apurados, sendo certo que, na maioria dos casos, só poderá extrair-se das regras da experiência comum dos homens ou resultar de prova prima fatie extraída desses factos. Essencial é fazê-lo constar da decisão final.»
Dos factos provados não resultam elementos que nos permitam concluir pela verificação de uma conduta dolosa por parte da arguida.
Poder-se-á considerar a sua conduta negligente ?
Conforme resulta do disposto no art. 15° do Código Penal, para apurar a negligência é relevante determinar a capacidade de o arguido cumprir a obrigação estipulada por lei.
Ao apreciar uma situação com alguma similitudes com a situação presente refere o Acórdão da Relação de Évora, de 6.12.2017- www.dgsi.pt : « C..) é do conhecimento comum que sobretudo a partir do ano de 2012 se vivenciou uma crise económica que, infelizmente, afectou muitas empresas, assim como muitas famílias, e, enfim, de um modo geral o País, e que impossibilitou que muitas das respectivas obrigações pecuniárias fossem pontualmente cumpridas.
Foi, certamente, o que se verificou com a arguida: não se põe em causa que ela sabia, como qualquer outro empregador, que era sua obrigação pagar o subsídio de Natal dos trabalhadores; no entanto, para cometer a infracção não basta saber qual é a sua obrigação: é preciso mais, é também preciso que a empregadora possa cumprir essa obrigação.
Ora, no caso, perante a matéria de facto, verifica-se que a arguida não tinha possibilidade de cumprir essa obrigação; isto é, tendo em conta que a punição da contra-ordenação depende da prova de culpa do agente da infração (...), no caso o comportamento da arguida não se pode considerar culposo.»
No caso em apreço, não resultou apurada a impossibilidade de pagamento dos subsídios de Natal e de férias por parte da arguida.
Resultaram, no entanto, apurados os factos acima indicados sob 1 a 4 que apontam no sentido da verificação de dificuldades económicas por parte da arguida, o que nos permite colocar em dúvida a sua capacidade de cumprimento.
Perante tais dúvidas, resultantes da quebra de receitas e do encerramento de uma bomba de gasolina explorada pela arguida durante o período de cerca de um ano, incumbia ao recorrente o ónus da prova da possibilidade de cumprimento da obrigação.
É certo que não resulta dos autos uma situação de insolvência ou o recurso a procedimentos de natureza cível indicados pelo recorrente, designadamente a celebração de acordos de pagamento com os trabalhadores, mas, no âmbito contra-ordenacional, ao contrário do que sucede no plano do direito civil, não poderemos presumir a culpa do devedor.

IV- Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Junho de 2018
Francisca Mendes
Maria Celina de Jesus de Nóbrega

Sumário : Verificando-se que a arguida não procedeu ao pagamento de subsídios de Natal e de férias e perante as dúvidas quanto à capacidade de cumprimento de tais obrigações por parte da mesma, incumbia ao recorrente provar a possibilidade de a arguida cumprir as obrigações em causa, de forma a concluirmos pela verificação de ilícito contra-ordenacional.
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