Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 12-06-2018   Crime de falsificação de guia de substituição de documento de condução. Falso grosseiro.
1. Na situação em que o arguido rasurou a data de validade de guia de substituição de documento de condução, alterando-a para lhe dar a aparência de válida, apresentando-a a agentes de autoridade, durante uma fiscalização, que a apreenderam, emitiram guia de substituição daquela e contactaram posteriormente os serviços de viação para apurar o motivo da rasura, sem terem procedido à detenção do arguido, não se está perante um falso grosseiro, pois que para os agentes, naquele momento, não foi evidente que o documento fosse falso.
Proc. 3/16.3FASRQ 5ª Secção
Desembargadores:  Agostinho Torres - João Carrola - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
_______
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA 5a Secção
Recurso penal [5ª Secção -penal] Relator: Agostinho Torres
Proc° NUIPC 3/16.3FASRQ
Recorrente (s): Ministério Público
Sumário: Crime de falsificação de guia de substituição de documento de condução; falso grosseiro; tentativa impossível (inidónea)
ACORDAM EM CONFERENCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA - 5a SECÇÃO (PENAL)
I-RELATÓRIO
1.1- Por sentença de 24 de Janeiro de 2018, em proc° comum singular, foi decidido:
RELATÓRIO
O Ministério Público em processo comum e com intervenção de Tribunal Singular acusa o arguido
JO..., nascido a 7/1/1975, filho de J... e M…, natural de Vila …, Ilha de S. Miguel, residente na Rua …, n.s 5, Bandeiras, Madalena,
Imputando-lhe a prática dos factos descritos na acusação e que são aptos a integrar a prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256.°, n.° 1, al. b) do Código Penal (CP).

O arguido não apresentou contestação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.

Foi comunicado ao arguido que no decurso da produção de prova, se apurou o exercício da
condução do veículo ciclomotor, sem que o arguido se encontrasse munido de habilitação legal,
sabendo que a condução sem habilitação legal lhe era proibido por lei penal. Nessa sequência,
verificado que aqueles factos consubstanciam a alteração substancial dos factos autonomizável nos
termos preceituados nos artigos 359.5, ,,.5 1, n.º 2 e n.º 3 e artigo 1.8, al f) do CPP, determinou-se a
extracção de certidão de todo o processado com remessa para o Ministério Público, para os fins tidos
por convenientes.
O Tribunal é competente, inexistindo nulidades ou questões prévias.

- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1. - Matéria de Facto Provada: Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
2. 1. No dia 30 de Junho de 2016, cerca das 16h30, na Estrada Regional, freguesia e concelho da Madalena do Pico, o arguido conduzia o veículo ciclomotor com a matrícula ..., tendo sido fiscalizado por elementos da GNR; No decurso da fiscalização, o arguido apresentou a guia de substituição de documentos n.º ..., emitida pela Direcção de Serviços de Viação e Transportes Terrestres de Ponta Delgada, a qual substituía a Licença de Condução do arguido, com o n.º ..., até receber decisão do requerimento de prestações;
3. A referida guia foi emitida a 24 de Outubro de 2012, com validade até 31 de Dezembro de 2012;
4. Contudo, em data não concretamente apurada, o arguido rasurou a data de emissão da referida guia, substituindo 2012 por 2015, na data de emissão, e 2012 por 2016, na data de validade, tendo para o efeito usado uma caneta correctora branca e escrito por cima, usando uma caneta de cor semelhante;
5. O facto descrito em 4) foi imediatamente detectado pelos agentes fiscalizadores, pela análise visual - sem auxílio de qualquer instrumento - do documento.
6. Com a conduta descrita, o arguido agiu com o propósito de ludibriar as autoridades policiais, tendo rasurado e escrito dizeres em guia de substituição da sua licença de condução, alterando a sua data de validade;
7. Ao alterar as datas de emissão e de validade da guia de substituição n.º ..., o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;
8. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

2.2. - Matéria de Facto Não Provada:
Inexistem factos por provar essenciais para a boa decisão do caso sub judice.

2.3 - Motivação da Matéria de Facto Foram considerados os seguintes documentos para formar a convicção do tribunal no que concerne aos factos supra descritos, ponderados criticamente com a restante prova produzida em sede de audiência e julgamento, nomeadamente prova testemunhal, sem prejuízo das considerações ditadas pelas regras da experiência, tecidas em sede própria: Auto de notícia, de fls. 3-5; Guia de substituição de documentos n.s ..., de fls. 6; Auto de apreensão de documentos, de fls. 7; ofício do serviço do T.T., de fls. 9; CRC, de fls. 49.
. Foram relevados os depoimentos das testemunhas R..., Cabo de Infantaria da GNR e C..., Cabo de Infantaria da GNR, os quais esclareceram terem reparado logo na rasura colocada na licença apresentada pelo arguido, pelo que conhecedores que aquele tipo de documentos nunca costuma ter rasuras, oficiaram logo informação à DGV.
No mais, ouvido o arguido em sede de audiência de julgamento, este confirmou a prática dos factos que lhe estão imputados, tendo esclarecido ter utilizado uma caneta correctora e alterado a terminação dos anos, por forma a abarcar o período em que se encontrava a circular.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
3.1 - ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Atentos os factos apurados, cabe apreciar a sua relevância jurídico-penal e a eventual responsabilidade criminal dos arguidos pela sua prática.
Para que se possa imputar a alguém a prática de um crime, é necessário que se mostrem preenchidos um tipo-de-ilícito, um tipo-de-culpa e que o facto seja punível.
(...)
3.2-Do CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Vem imputado ao arguido, em autoria material, a prática de dois crimes de falsificação
de documento p.p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. b) por referência ao artigo 255.º, al. a) do CP. Prescreve o artigo 256.º do CP, sob a epígrafe Falsificação ou contrafacção de documento :
1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (...)
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram, (...) »--'é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

O artigo 255.º do CP, sob a epígrafe Definições legais prevê:
a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta;
(...)
3.3- Do NEXO DE IMPUTAÇÃO DO FACTO AO AGENTE
Descendo ao caso concreto, consta da factualidade julgada provada que o arguido em data não concretamente apurada rasurou o documento guia de substituição utilizando caneta correctora, alterando as datas apostas naquele documento, por forma a demonstrar, em caso de fiscalização que se encontrava abrangido pelo período de licença, tendo o documento assim forjado sido imediatamente apreendido pela GNR, em operação de fiscalização, por ser evidente a rasura e ser do conhecimento geral que a DGV não emite documentos rasurados.
Sem prejuízo do artigo 23.º n.° 1 do CP afastar a punibilidade se ao crime consumado corresponder pena até três anos de prisão, a punibilidade da falsificação de documento encontra-se expressamente prevista no artigo 256.º, n.º 2 do CP.
Prevista no 23.5, r/.° 3 do CP, nos termos do qual A tentativa não é punível quando. for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.
A inaptidão meio terá que ser aferida segundo uma teoria subjectiva-objectiva da impressão (ou da aparência) de perigo, utilizando um juízo de prognose póstuma, ex ante, o qual é objectivo, mas que tem em conta os especiais conhecimentos do agente. Ou seja, o julgador terá de se colocar na situação do agente no momento dos factos, tomando como aparente o que este então toma como aparente e conhecendo o que este conhece/possuindo os conhecimentos que este possui. Como explica Figueiredo Dias: um observador colocado no momento da execução e sabedor de todas as Circunstâncias conhecidas OU cognoscíveis do agente (Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral - Tomo I, 2007: 716). Mas, como alerta Figueiredo Dias, a representação do agente não poderá ser claramente errónea para a generalidade das pessoas (p. 718).
(...)
Sem prejuízo do crime de falsificação de documento ser um crime de perigo abstracto, o qual se consuma por mero efeito da criação do perigo de lesão para o bem jurídico protegido - a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental - cumpre precisar não se poder considerar que essa ideia de risco ou perigo de lesão do bem jurídico se tenha concretizado no caso sub judice.
Com efeito, doutrina e jurisprudência têm-se debruçado de forma essencialmente semelhante sobre situações denominadas de falso grosseiro (vide Ac. TRL de 17/3/2017, Proc. n.º 1286/08.8PCAMD.L1 3ª Secção e Ac. TRC de 23-11-2010, Proc. n.s 269/09.5TACBR.C1), concluindo que nas circunstâncias em que a falsificação seja facilmente detectável pela generalidade das pessoas a quem o documento possa ser presente, não se verifica a característica essencial que é idoneidade do documento para conferir a aparência de verdade, criar a impressão de genuinidade, não colocando em perigo os valores que a norma incriminadora tutela (vide também Helena Moniz, In Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, p. 689).
Com efeito, em face da matéria de facto julgada provada, impõe-se verificar se houve ou não perigo de lesão do bem jurídico protegido pela norma pela conduta do arguido e se à data da conduta do arguido era cognoscível objectivamente a idoneidade do meio. Assim, apurou-se que o arguido, com caneta correctora branca, fez substituir a data da validade da guia por outra que lhe era mais favorável. Apurou-se igualmente que a rasura era facilmente
visível a olho nu, por qualquer pessoa, que tendo em consideração o tipo de documento, e que o destinatário do documento seriam os agentes da PSP e GNR encarregues da fiscalização, os quais se encontram mais habilitadas para detectar falsificações.
Nestes termos, em face da enunciação dos factos relevantes, impõe-se concluir pela impossibilidade de ludibriar, com aquele meio, os agentes da GNR ou PSP, circunscrevendo-se a conduta do arguido em tentativa inidónea de falsificação de documento ou falso grosseiro.
IV- Nas situações de falso grosseiro, dentro da qual o caso sub judice se encontra abarcado, verifica-se uma situação de tentativa impossível inidónea, não punível, por se entender ser de tal modo manifesto a inaptidão do meio utilizado pelo agente, que o bem jurídico protegido nunca esteve em perigo, sendo o conhecimento da inaptidão do meio utilizado cognoscível por qualquer pessoa. Nestes termos, verificando-se não ter o arguido lesado o bem jurídico previsto pela norma, consubstanciando a sua conduta tentativa impossível inidónea de falsificação de documento, a qual não é punível - cfr. artigo 23.2, n.2 3 do CP - impõe-se absolver o arguido do crime de falsificação de documento pelo qual se encontra acusado.
DA RESPONSABILIDADE POR CUSTAS
Nos termos previstos nos artigos 513.2 a contrario e 514.2 a contrario do CPP, e atenta a
presente absolvição é o arguido João Paulo Carreiro da Ponte absolvido das custas criminais.

V- DECISÃO
Pelo exposto, decide este Tribunal:
1. Absolver o Arguido João Paulo Carreiro da Ponte pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de falsificação de documento, por referência a actos por si praticados no dia 30/6/2016;
II. Absolver o Arguido das custas da acção;
1.2 - Desta decisão recorreu o M° P°, dizendo em conclusões da motivação apresentada:
1. O arguido Jo... foi absolvido pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 2562, n.º 1, alínea b), do Código Penal por não ter o arguido lesado o bem jurídico previsto pela norma, consubstanciando a sua conduta tentativa impossível inidónea de falsificação de documento, a qual não é punível - cfr. artigo 23°, n.º 3 do Código Penal, uma vez que a rasura foi imediatamente detectado pelos agentes fiscalizadores, pela análise visual - sem auxílio de qualquer instrumento - do documento;
2. De facto, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, os agentes fiscalizadores detectaram uma rasura nas datas de emissão e validade do documento;
3. Contudo, os agentes desconheciam o motivo de tal rasura, daí que (conforme resulta dos depoimentos prestados e gravados no sistema multimédia do Citius), tenham apreendido o documento e emitiram uma guia de substituição do mesmo, contactando posteriormente os Serviços de Viação para esclareceram os motivos das rasuras;
4. Só após os Serviços de Viação terem remetido à GNR cópia do documento original é que os agentes fiscalizadores confirmaram que, efetivamente, o arguido lhes tinha apresentado um documento falsificado;
5. Motivo pelo qual o arguido não foi detido aquando da fiscalização, por existirem dúvidas; 62
6. Se as rasuras fossem ineptas a ludibriar os agentes fiscalizadores, estes teriam procedido à detenção do arguido, nos termos do artigo 255° do Código do Processo Penal, uma vez que lhes estava a ser exibido um documento falso;
7. Assim não aconteceu porque, para aqueles agentes, não era, naquela data, evidente que o documento apresentado fosse falso;
8. Acresce que o documento original tinha apostas as datas de 24 de outubro de 2012 e 31 de dezembro de 2012, respectivamente de emissão e de validade. A fidedignidade do documento em causa, que substituía a Licença de Condução do arguido, só veio ser colocada em causa no dia 30 de junho de 2016, numa fiscalização efetuada pela GNR no concelho da Madalena do Pico;
9. Ora, dificilmente se acredita que, durante três anos e meio, nesta Ilha do Pico, com fiscalizações rodoviárias realizadas pela PSP e pela GNR, o arguido não tenha exibido aquele documento em outras ocasiões - uma vez que aquele substituía um documento de uso obrigatório para os condutores;
10. Aliás, o próprio arguido, em sede de julgamento, confessou os factos, esclarecendo que falsificou o documento porque precisava de ir para o trabalho, acrescentando que anda de um lado para o outro porque tem obras em diferentes sítios, assumindo que tinha consciência que estava a praticar um crime e mostrando-se arrependido pelo mesmo;
11. Por outro lado, a absolvição do arguido decorre do entendimento de que, no caso, se trata de um «falso grosseiro», entendimento que apenas aparece formulado na fundamentação jurídica da decisão e que, de forma nenhuma, resulta dos factos provados;
12. Dos factos dados como provados resulta que o arguido exibiu aos agentes fiscalizadores um documento (guia de substituição da sua licença de condução) que tinha sido objeto de viciação no tocante aos campos indicativos da data de emissão e de validade, alterado por si em data não concretamente apurada, mediante a utilização de uma caneta corretora branca e escrevendo por cima com caneta de cor semelhante, com o propósito de ludibriar as autoridades policiais, agindo de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, sendo as rasuras detetadas pelos agentes fiscalizadores;
13. Nada foi dado como provado sobre as características da falsificação, nomeadamente, em termos de ela ser imediatamente reconhecida por qualquer pessoa medianamente conhecedora e informada, tornando, assim, o documento inapto a iludir a fé pública que lhe é própria;
14. Ou seja, na fundamentação jurídica da sentença incluem-se factos, com relevância para a decisão da causa, que não foram levados ao elenco dos factos provados e que, para poderem ser considerados, o deveriam ter sido;
15. Aliás, se o arguido vinha usando aquele documento há três anos e meio (o que resulta dos factos provados - o documento original era válido apenas até dezembro de 2012) é porque a falsificação não era de tal modo evidente que comprometesse irremediavelmente a sua utilização para a finalidade que lhe é própria - exibição perante as autoridades fiscalizadores do trânsito rodoviário;
16. A decisão de considerar que a guia de substituição foi objecto de uma falsificação grosseira - aquela que é fácil e imediatamente reconhecida - não só não se mostra sustentada nos factos provados como é, de certa forma, contraditória com os mesmos;
17. O que significa que dos factos fixados pelo tribunal a quo não se pode concluir pela existência de um falso grosseiro;
18. A afirmação de que o documento foi objecto de uma falsificação grosseira não se mostra sustentada. Uma análise desse documento não permite afirmar que a falsificação seria imediatamente reconhecida por qualquer pessoa, tanto mais se ponderáramos que as fiscalizações rodoviárias nem sempre são efetuadas à luz do dia e com o tempo necessário para verificar em pormenor cada um dos documentos apresentados pelos inúmeros condutores fiscalizados;
19. Segundo juízos de experiência comum, a exibição daquela guia de substituição, nas circunstâncias normais de uma operação STOP, efetuada à noite, em que estejam vários veículos a ser fiscalizados em simultâneo, na qual se prescinde de um exame com o cuidado e o rigor próprios de um exame pericial, era - e terá sido - de molde, ao contrário do que se vem a afirmar na fundamentação jurídica da sentença, a não levantar dúvidas sobre a sua genuinidade à generalidade das pessoas;
20. E assim sendo, o documento falsificado comporta a probabilidade de lesão da confiança e segurança que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico probatório documental;
21. O crime de falsificação de documento - em qualquer das modalidades da conduta típica - é um crime de perigo abstracto. Não é requerida a violação efectiva do bem jurídico - a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental;
22. O uso da guia de substituição falsificada não é, portanto, um caso de tentativa impossível; 232
23. Assim, ao absolver o arguido, o tribunal a quo violou o artigo 256°, n» 1, alínea b), do Código Penal, incorrendo a douta sentença em erro notório da apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP.
24. Dadas as razões atrás aduzidas, o Meritíssimo Juiz a quo não poderia chegar à conclusão de que o meio empregue pelo arguido era inidóneo e que o bem jurídico protegido pela norma não foi lesado.
25. Face ao supra descrito, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência revogar-se a decisão que absolveu o arguido Jo... substituindo-a por outra que determine a sua condenação. em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256°, n° 1, alínea b), do Código Penal.
1.3- O arguido não apresentou resposta.
1.4- Admitido o recurso e remetido a esta Relação, o M°P° emitiu parecer no sentido de o mesmo merecer provimento.
1.5- Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora decidir.
II- CONHECENDO
2.1-0 âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art.° 410.°, n.° 2 do CPP
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida .
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação.
2.2-Está em discussão para apreciação e em síntese:
A falsificação do documento apresentado pelo arguido às autoridades de fiscalização rodoviária era inidónea para demonstrar a sua autenticidade declarativa sendo manifesto que as alterações de rasura nas datas eram imediatamente detectáveis e incapazes de produzir os efeitos de engano visados pelo arguido?
2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL ad quem.
A questão em confronto no presente recurso atém-se a uma problemática de falso grosseiro e tentativa inidónea não punível.
Ficou provado que o documento de fls 6 apresentado pelo arguido aos srs agentes policiais da GNR, ao ser fiscalizado por estes e na tentativa de lhes demonstrar que tinha licença de condução (embora substituída por guia) estava rasurado nas datas relativas ao período de validade e que tal foi imediatamente detectado por aqueles.
Não se conhece se alguma vez o arguido foi fiscalizado similarmente durante o período de validade da guia de substituição aposto na sequência de rasura ( 24 de Out de 2015 a 31 de Dezembro de 2016).
É completamente desprovido de prova e de base fáctica esta asserção do MP° quando assinala que o arguido andou na posse da guia naquele período e isso lhe permitiu conduzir. Não se sabe minimamente se alguma vez o foi e se, tendo-o sido, apresentou a guia naquelas condições e se a mesma foi convincente da sua autenticidade aparente perante os agentes fiscalizadores.
Aquela guia destinava-se a comprovar o licenciamento caso fosse fiscalizado, como o foi, no exercício da condução. A utilização da mesma visava a apresentação predominantemente a autoridades policiais fiscalizadoras de trânsito, não se vislumbrando hipóteses de necessidade ou de obrigatoriedade de apresentação a outras entidades.
A alteração foi imediatamente detectada pelos srs agentes policiais dado ter sido manifesto a olho nu, a hora diurna da fiscalização, que as datas estavam rasuradas.
Na motivação da matéria de facto o tribunal a quo entendeu que: G.)
Foram relevados os depoimentos das testemunhas Rui Pedro da Silva Garcia, Cabo de Infantaria da GNR e Carlos Manuel Bettencourt, Cabo de Infantaria da GNR, os quais esclareceram terem reparado logo na rasura colocada na licença apresentada pelo arguido, pelo que conhecedores que aquele tipo de documentos nunca costuma ter rasuras, oficiaram logo informação à DGV.
CONSIDEROU O TRIBUNAL, AINDA, JÁ EM SEDE DE DISCUSSÃO DE DIREITO, QUE:
Prevista no art° 23°. n. ° 3 do CP, nos termos do qual A tentativa não é punível quando. for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. a inaptidão do meio terá que ser aferida segundo uma teoria subjectiva-objectiva da impressão (ou da aparência) de perigo, utilizando um juízo de prognose póstuma, ex ante, o qual é objectivo, mas que tem em conta os especiais conhecimentos do agente.
Ou seja, o julgador terá de se colocar na situação do agente no momento dos factos, tomando como aparente o que este então toma como aparente e conhecendo o que este conhece/possuindo os conhecimentos que este possui.
Como explica Figueiredo Dias: um observador colocado no momento da execução e sabedor de todas as Circunstâncias conhecidas OU cognoscíveis do agente (Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral - Tomo I, 2007: 716). Mas, como alerta Figueiredo Dias, a representação do agente não poderá ser claramente errónea para a generalidade das pessoas (p. 718).
No mesmo sentido, Cfr. Jescheck/Weigend (Tratado de Direito Penal, PG, versão em castelhano da ed. cornares, com tradução de Miguel olmedo Cardenete, 5.s ed, p. 569), consideram que existe uma tentativa inidónea quando a acção do autor dirigida à realização de um tipo penal, sob certas circunstâncias, não pode alcançar a consumação do facto por razões fácticas ou jurídicas. Isto sucede nos casos de inidoneidade do objecto, do meio ou do sujeito. Também pertencem aqui os casos em que o objecto da acção previsto pelo autor não se encontra no lugar do facto ou, contra a sua expectativa, permanece alheio a este (inidoneidade do meio), (cfr. igualmente Ac STJ o6-II-2oo8, relator cons. Arménio Sottomayor). (...)
Sem prejuízo do crime de falsificação de documento ser um crime de perigo abstracto, o qual se consuma por mero efeito da criação do perigo de lesão para o bem jurídico protegido - a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental - cumpre precisar não se poder considerar que essa ideia de risco ou perigo de lesão do bem jurídico se tenha concretizado no caso sub judice.
(....) nas circunstâncias em que a falsificação seja facilmente detectável pela generalidade das pessoas a quem o documento possa ser presente, não se verifica a característica essencial que é idoneidade do documento para conferir a aparência de verdade, criar a impressão de genuinidade, não colocando em perigo os valores que a norma incriminadora tutela (vide também Helena Moniz, In Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, p. 689).
Com efeito, em face da matéria de facto julgada provada, impõe-se verificar se houve ou não perigo de lesão do bem jurídico protegido pela norma pela conduta do arguido e se à data da conduta do arguido era cognoscível objectivamente a idoneidade do meio. Assim, apurou-se que o arguido, com caneta correctora branca, fez substituir a data da validade da guia por outra que lhe era mais favorável.
Apurou-se igualmente que a rasura era facilmente visível a olho nu, por qualquer pessoa. que tendo em consideração o tipo de documento, e que o destinatário do documento seriam os agentes da PSP e GNR encarregues da fiscalização, os quais se encontram mais habilitadas para detectar falsificações.
Nestes termos, Apurou-se igualmente que a rasura era facilmente visível a olho nu, por qualquer pessoal que tendo em consideração o tipo de documento, e que o destinatário do documento seriam os agentes da PSP e GNR encarregues da fiscalização, os quais se encontram mais habilitadas para detectar falsificações.
Em face da enunciação dos factos relevantes, impõe-se concluir pela impossibilidade de ludibriar, com aquele meio, os agentes da GNR ou PSP, circunscrevendo-se a conduta do arguido em tentativa inidónea de falsificação de documento ou falso grosseiro. Nestes termos, verificando-se não ter o arguido lesado o bem jurídico previsto pela norma, consubstanciando a sua conduta tentativa impossível inidónea de falsificação de documento, a qual não é punível - cfr. artigo 23.º, n.º 3 do CP - impõe-se absolver o arguido do crime de falsificação de documento pelo qual se encontra acusado. (...)
Por sua vez o recorrente MP° alinhou um conjunto de razões de discordância que passamos de seguida e em síntese a transcrever:
(...) os agentes fiscalizadores aperceberam-se que existia uma rasura nas referidas datas desconheciam o motivo de tal rasura. Tanto mais que, conforme resulta dos depoimentos prestados (gravados no sistema multimédia do CitiusJ, os referidos agentes procederam à apreensão daquele documento e emitiram urna guia de substituição do mesmo. contactando posteriormente os Serviços de Viação para esclareceram os motivos das rasuras. Só após os Serviços de Viação terem remetido à GNR cópia do documento original é que os agentes
fiscalizadores confirmaram que, efetivamente, o arguido lhes tinha apresentado um documento falsificado.
E tanto foi assim que o arguido não foi detido aquando da fiscalização.
Se as referidas rasuras fossem ineptas a ludibriar os agentes fiscalizadores, estes, certamente, teriam procedido à detenção do arguido, nos termos do artigo 255º do Código do Processo Penal, uma vez que lhes estava a ser exibido um documento falso. Ora, assim não aconteceu porque, para aqueles agentes, não era, naquela data, evidente que o documento apresentado fosse falso.
O documento original tinha apostas as datas de 24 de outubro de 2012 e 31 de dezembro de 2012, respectivamente de emissão e de validade. A fidedignidade do documento em causa, que substituía a Licença de Condução do arguido, só veio ser colocada em causa no dia 30 de junho de 2016, numa fiscalização efetuada pela GNR no concelho da Madalena do Pico. Ora, dificilmente se acredita que, durante três anos e meio, nesta Ilha do Pico, com fiscalizações rodoviárias realizadas pela PSP e pela GNR, o arguido não tenha exibido aquele documento em outras ocasiões - uma vez que aquele substituía um documento de uso obrigatório para os condutores.
A absolvição do arguido decorre do entendimento de que, no caso, se trata de um «falso grosseiro», entendimento que apenas aparece formulado na fundamentação jurídica da decisão e que, de forma nenhuma, resulta dos factos provados.
Nos factos provados nada mais se diz sobre as características da falsificação, nomeadamente, em termos de ela ser imediatamente reconhecida por qualquer pessoa medianamente conhecedora e informada, tornando, assim, o documento inapto a iludir a fé pública que lhe é própria.
Se o arguido vinha usando aquele documento há três ano e meio é porque a falsificação não era de tal modo evidente que comprometesse irremediavelmente a sua utilização para a finalidade que lhe é própria - exibição perante as autoridades fiscalizadores do trânsito rodoviário.
Uma análise desse documento não permite afirmar que a falsificação seria imediatamente reconhecida por qualquer pessoa, tanto mais se ponderáramos que as fiscalizações rodoviárias nem sempre são efetuadas à luz do dia e com o tempo necessário para verificar em pormenor cada um dos documentos apresentados pelos inúmeros condutores fiscalizados.
Segundo juízos de experiência comum, a exibição daquela guia de substituição, nas circunstâncias normais de uma operação STOP, efetuada à noite, em que estejam vários veículos a ser fiscalizados em simultâneo, na qual se prescinde de um exame com o cuidado e o rigor próprios de um exame pericial, era - e terá sido - de molde, ao contrário do que se vem a afirmar na fundamentação jurídica da sentença, a não levantar dúvidas sobre a sua genuinidade à generalidade das pessoas. E assim sendo, o documento falsificado comporta a probabilidade de lesão da confiança e segurança que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico probatório documental. o ilícito criminal de falsificação de documentos constitui um crime de perigo (perigo de violação do bem jurídico: a confiança pública e a fé pública já foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo), sendo esse perigo abstracto (consuma-se com o mero acto da falsificação, não sendo necessária a produção de um resultado lesivo), sendo também considerado como um crime formal ou de mera actividade, uma vez que não é necessária a produção de qualquer resultado.
O uso da guia de substituição falsificada não é, portanto, um caso de tentativa impossível.
Ao nível do tipo subjectivo, o tribunal deu como provado que o arguido era perfeitamente sabedor da viciação do documento e que agiu de livre vontade, conscientemente e com a perfeita noção da ilicitude e punibilidade da sua conduta, com o propósito de ludibriar os agentes da autoridade.
Analisados os argumentos a quo e os do M°P° assumimos sem reservas essenciais a razão deste último, excepto quanto à ilação de que (...) dificilmente se acredita que, durante três anos e meio, nesta Ilha do Pico, com fiscalizações rodoviárias realizadas pela PSP e pela GNR, o arguido não tenha exibido aquele documento em outras ocasiões - uma vez que aquele substituía um documento de uso obrigatório para os condutores.(...).
Trata-se de matéria não provada, embora se concorde que as regras da experiência e as características da região apontam para essa possibilidade, se bem que não se trate de um facto notório. Ademais, só faria sentido o arguido, quando muito, ter querido conduzir com aquela guia no período de validade (após rasurado) indicado entre 24 de Outubro de 2015 e 31 de Dezembro de 2016. Foi fiscalizado a 30 de Junho de 2016, logo, apenas teria conduzido com utilização daquela guia durante 8 meses e 6 dias e não, como diz o MP°, 3 anos e meio.
No restante, cremos dever dar inteira razão ao MP°
O documento foi verificado com detecção imediata de uma anomalia nas datas.
Mas, se tivesse sido mesmo evidente a falsificação, os agentes policiais teriam detido imediatamente o arguido para apresentação em tribunal ou elaborado imediatamente participação ao MP° em vez de pedirem esclarecimentos à DRV e nunca passariam nova guia de substituição de documentos ao arguido. Este foi à sua vida com a nova guia e, assim, conseguiu temporariamente as finalidades visadas.
Portanto, as rasuras apostas no documento não podem ser classificadas, desde logo, como falso grosseiro e tentativa inidónea impossível. Esta conclusão é reforçada pelo facto de que, analisado o documento em causa, duvida-se que seja desde logo imediatamente perceptível à maioria das pessoas a rasura em causa ou a sua natureza e autoria. Ainda que o documento seja destinado em regra a servir de prova perante autoridades policiais, o certo é que ele se apresenta em mau estão de conservação, sujo, amarelecido e que, numa situação de uso de menor cuidado por ocasião de fiscalização com má visibilidade nocturna e de vários veículos em simultâneo, admite-se com facilidade que pudesse passar despercebido ou não ser tão evidente a rasura como o foi para os srs agentes policiais à luz do dia.
Assim, apesar das doutas considerações de direito a quo acerca do falso grosseiro e das perspectivas jurisprudenciais e dogmáticas acerca desta figura e da tentativa impossível, o tribunal a quo lavrou em erro evidente na conclusão que retirou ao efectuar a subsunção jurídico-substantiva, por isso que este tribunal ad quem considera implicar uma análise de direito diferente, visando, como se propõe, a condenação do arguido pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de falsificação p.p. no art.° 256° , n°s 1,b) e 3, com referência ao art.° 255° a) do CP.
No entanto, para a determinação da medida da pena inexistem factos apurados acerca da condição social, económica e familiar do arguido, necessários à definição prudente dos critérios previstos no art° 70° e ss do CP.
Nestes termos, determina-se a revogação da decisão de absolvição, a remessa dos autos à 1 a instância para complementação de prova sobre aquela condição ao abrigo dos art° 340° e 369° ( mutatis mutandis) do CPP, proferindo-se condenação do arguido com fixação de pena proporcional ao grau de culpa, de ilicitude, ajustada às exigências de censura e de prevenção bem como tendo em conta o que se apurar acerca da referida condição socio familiar e financeira.
III- DECISÃO
3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão de absolvição e determinando-se a remessa dos autos à 1a instância para apuramento da condição social, familiar e financeira do arguido e, após isso, se proferir a devida condenação do arguido pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de falsificação p.p. no art.° 256° , n°s 1,b) e 3, com referência ao art.° 255° a) do CP e subsequente escolha da natureza e medida da pena adequadas pelo crime em causa.
Lisboa, 12 de Junho de 2018
Os Juízes Desembargadores
Agostinho Torres
João Carrola
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