Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 06-12-2017   Difamação Agravada. Ofendido órgão de autarquia Local. Chefe de Gabinete de Câmara Municipal.
I - Para que se verifique a agravação do crime de difamação, exige o artigo 184º, do CPenal, que a vítima possua uma das qualidades ou exerça uma das funções taxativamente previstas no artigo 132, n.º 2, alínea i), desse mesmo diploma legal.
II – Ora, perlustrando o elencado naquela alínea do artigo 132º, n.º 2, não sendo o ofendido membro de órgão de autarquia local, só pode ser enquadrado no conceito de funcionário público, o que nos remete para o artigo 386º, do CP.
III- Assim, para a lei penal, a expressão funcionário abrange não apenas o funcionário civil, como ainda o agente administrativo e outras pessoas chamadas a desempenhar ou a participar de uma actividade compreendida na função pública (n.º 1).
IV – No caso em apreço, o ofendido exercia à data dos factos, o cargo de chefe de gabinete de uma Camara Municipal, e nessa qualidade foi mencionado na mensagem de correio eletrónico que remeteu ao Senhor Presidente da Camara a propósito de um licenciamento urbanístico que afectava directamente aquele, e no qual ele terá tido intervenção. Ora tais funções compreendem-se no interesse público de ordenamento do território, da competência dos municípios e do seu Presidente tal como resulta dos artigos 33º a 35º da lei das autarquias Locais (Lei 75/2013, de 12.09).
V- Em suma o ofendido actuou como agente administrativo, ou seja no exercício de uma função administrativa pública legalmente atribuída à CM, ao serviço desta e sob a direção do respectivo Presidente, pelo que está preenchida a qualificação do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 184 do C. Penal.
Proc. 306/13.9TACSC.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Carlos Espírito Santo - Anabela Simões - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Proc. no 306/13.9TACSC.L1
Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No âmbito do Processo Comum Singular supra id., que corre termos na Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Lo cal Criminal de C... - Juiz 2, foi o arguido C..., com os demais sinais dos autos, condenado, pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts. 1800, no 1 e 184° do CP, na pena de 90 dias de multa, a € 8.00 diários, no total de € 720.00. Mais foi condenado, a título de indemnização civil a pagar ao demandante a quantia de € 1.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, indo absolvido quanto ao restante peticionado.
Inconformado com o teor de tal decisão interpôs aquele arguido o resente recurso pedindo a sua absolvição pelo crime pelo qual vem condenado, por não ter a qualidade de funcionário público ou qualquer outra ínsita nos arts. 386° e 132°, 2, 1), C. Pen., sendo certo que o ofendido não se constituiu assistente nem deduziu acusação particular.
Apresentou para tal as seguintes conclusões:
1. 0 presente recurso tem como objecto toda a matéria de direito da douta sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou o recorrente por um crime de difamação agravada, p. e p. pelo art. 180°, n.° 1 e 184° dc CP;
2. A acusação do Ministério Publico qualificou o crime de difamação pelo facto de ter considerado o ofendido como funcionário publico para efeitos do disposto nos artigos 386° e 132°, n° 2, al I) do CP, e com o qual não se conforma o recorrente;
3. Violou, assim, o Tribunal a quo o disposto no art. 285° do CPP, ex vi art. 386° e 132°, n.° 2, al. I) do CP ao ter considerado o ofendido como funcionário público;
4. O ofendido não tem a qualidade de funcionário público para efeitos do disposto no artigo 386° e 132°, n.° 2, al I) do CP, sendo apenas chefe de gabinete, que desempenha um cargo com funções de confiança politica;
5. Deveria o Tribunal a quo ter aplicado a norma contida no art. 5°, n.° 1 do DL 11/2012, e considerar que o ofendido ocupa um cargo de confiança politica não subsumível à função de funcionário público, e desta forma, absolver o recorrente do crime de difamação agravada de que vinha acusado, uma vez que o ofendido não se constituiu assistente e não formulou acusação particular;
6. O estatuto de chefe de gabinete é por via do disposto no n.° 5 do art. 43° da Lei 75/2013 equiparado aos de membro dos gabinetes de apoio dos membros de governo, previsto no DL 11/2012, de 20.01;
7. 0 art. 132°, n°2, ai. I) do CP faz uma enumeração taxativa: apenas as pessoas ali indicadas, para efeitos da agravação prevista no art. 184° dc CP, podem ser consideradas vítimas do tipo legal de crime de difamação;
8. Assim, para efeitos do art. 184°, ex vi art. 132, n.° 2, ai. I) do CP, apenas há lugar a agravação se a vitima for membro de órgão de autarquia local ou funcionário público e o crime for praticado no exercício das suas funções ou por causa delas;
9. O ofendido ocupava o cargo de chefe de gabinete, dessa forma, sendo um cargo de confiança política, não se enquadrando no artigo 368° do CP, podendo ser afastado a qualquer momento por uma decisão unilateral do Presidente da Câmara Municipal ou pelo terminus do mandato;
10. Atenta-se que o chefe de gabinete presta apoio ao presidente da camara: não toma decisões que influencie o interesse da comunidade;
11. Assim sendo, o regime jurídico a que estão sujeitos os membros do governo e por remissão, os chefes de gabinete dos órgãos de autarquias locais é definido em legislação especial pelo DL 11/2012, que é lei especial em relação à lei que tutela o regime do contrato de trabalho em funções públicas, não lhe sendo aplicável;
12. Assim sendo o cargo de chefe de gabinete é um cargo de confiança politica, que tem a sua funcionalidade definido no art. 50, n.° 1 do DL 11/2012, não desempenha funções públicas e não pode ser equiparado à de funcionário público, nem com o mesmo ser confundido, uma vez que não tem competência para tomar decisões que afectem o interesse público, nem executa funções compreendidas nesse âmbito;
13. A um chefe de gabinete apenas é exigido a direcção e coordenação do expediente normal como se de um escritório se tratasse, e, ainda, funções de ligação do Presidente de Câmara aos demais serviços camarários e munícipes;
14. Desta forma, e com o devido respeito, errou o MP ao ter qualificado o tipo legal de crime de difamação como agravado, uma vez que um chefe de gabinete não pode ser equiparado a funcionário publico nos termos do art. 386° do CP;
15.0 crime de difamação é um crime de natureza particular, dependente de queixa e de acusação particular, cfr art. 188° do CP, pressupondo a constituição de assistente; 16.0 ofendido não se constituiu assistente nem deduziu acusação particular, bem como não aderiu a acusação do MP, apenas formulando pedido de indemnização civil;
17.0 Recorrente não deveria ter sido submetido a julgamento por não se verificar os requisitos de que depende a submissão de um crime de natureza particular a julgamento;
18. Porém, tendo o Recorrente sido submetido a julgamento em virtude da acusação pública do MP, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o recorrente do crime de que vinha acusado por não estar preenchido a agravação do tipo legal do crime de difamação, e pela circunstância de se verificar que o ofendido não se constituiu assistente, que seria a única forma do Recorrente ter sido submetido a julgamento e ser proferida sentença de condenação;
19.0 recorrente não se conforma com a condenação pelo crime de difamação agravada, devendo a mesma ser alterada por este Douto Tribunal.
Termos em que e, com os mais de Direito que resultarão do douto suprimento de V. Exas, Venerandos Desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente RECURSO, e por via dele, reapreciada a matéria de direito e ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, o recorrente absolvido do crime de difamação agravada.
Respondeu o MP, pugnando pela improcedência do recurso, tendo para tal formulado as seguintes conclusões:
1. Nestes autos, o recorrente foi condenado pela prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180.°, n.º1 e 184.° do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, perfazendo o total de € 720,00.
2. O ofendido, J..., à data dos factos, exercia as funções de Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal de C....
3. O cargo exercido pelo ofendido reconduz-se ao desempenho de actividade na função pública administrativa, nos termos da alínea d) do n.01 do art. 386.° do Código Penal pelo que o ofendido tem a qualidade de funcionário nos termos e para os efeitos dos artigos 132.°, n.°2, alínea 1) e 184.° do Código Penal.
4. É irrelevante que se trate, ou não, de um cargo de confiança política posto que o que revela é que as funções inerentes a esse cargo sejam funções públicas, o que sucede no caso dos autos, pois a actividade desenvolvida por Chefe de Gabinete de um Presidente de Câmara Municipal corresponde a funções compreendidas na função pública administrativa.
5. Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida.
É o seguinte o teor da sentença recorrida, na parte que ora
releva:
Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No ano de 2005, o ofendido J... desempenhava funções de secretário do então Vice-Presidente da Câmara Municipal de C..., C...;
2. Desde 1.2.2011 e durante todo o ano de 2012, o ofendido desempenhou funções de chefe de gabinete do Presidente da CMC, C...;
3. No dia 24.7.2012, o arguido C..., redigiu e remeteu mensagem de correio eletrónico ao Presidente da CMC, alusivo ao processo de demolição n° 296/2005, do qual este tomou conhecimento, tendo determinado, em consequência, a instauração de processo de inquérito aos factos ali relatados, a final arquivado;
4. Nessa mensagem de correio eletrónico (fls. 7 a 9), o arguido, referindo-se ao ofendido, afirmou nomeadamente o seguinte:
É com bastante tristeza que constato que os objectivos a que se propôs quando assumiu a tarefa de Vice-Presidente e atualmente a de Presidente da CMC, não estão a ser cumpridos especialmente no capítulo de tratar os Munícipes e os problemas do Município de uma forma objectiva, justa e especialmente com equidade. (...)
Foi este princípio que foi prometido na reunião tida com o Sr. Eng. L... em representação do Vereador para o Urbanismo Sr. M..., e com o Sr. Arq. C..., no passado mês de Novembro. (...)
De notar que fui o único a tentar o licenciamento. (...)
Como é conhecimento de todos a queixa partiu do seu Chefe de Gabinete, J... que na altura era seu secretário e o Sr. Responsável pelo Urbanismo. Foi ele que tirou as fotografias e redigiu a carta que deu entrada na Policia Municipal (...).
Foi o seu chefe de Gabinete que manipulou como se de um favor pessoal se tratasse, todo o processo de licenciamento, chegando a incluir na alteração de alvará de loteamento por mim proposta e, sugerida pela Arq. S..., (ver anexo 4) três reclamações fora de prazo (ver anexo 5) de modo a inviabilizá-la. (...)
Tendo a pressão continuado pelo agora Dr. J... (que pelos vistos se licenciou tão rapidamente como alguns políticos da nossa praça), foi conseguida a Demolição coerciva passando por cima de soluções coletivas, equilibradas apresentadas pelo Sr. Arq. G... (...)
Espero que este Sr. Vereador bem como o Sr. Vereador M... atual Responsável pelo Urbanismo, dessa Câmara, mantenham a sua palavra e coerência e prossiga com TODAS AS ORDENS DE DEMOLIÇÃO de TODOS os lotes com situações irregulares neste Loteamento, e não sigam o caminho do Responsável pelo Gabinete da presidência dessa Câmara, que a troco de favores pessoais, enveredou por uma manipulação de situações e documentos por capricho pessoal. (...)
Será que as 15 obras ilegais existentes a tardoz de 15 dos 18 lotes deste loteamento, de grandes dimensões são susceptíveis de legalização, como é o caso das obras dos três reclamantes/queixosos (...) e suas respetivas demolições não constituem reconhecer prejuízo grave para interesse público urbanístico e do ordenamento do território ou estão protegidas pelo Secretário de Vossa Excelência, Sr. Presidente da Câmara Municipal de C...?
Ou será que vão ser arquivadas, de modo a fazer mais um favor á amiga do seu Secretário, Sr. Presidente?;
5. O mail referido foi enviado com conhecimento a:
- L…, Diretor do departamento do Urbanismo da CMC;
-L..., Adjunto do Vice-Presidente da CMC;
- J..., da Fiscalização da CMC;
- Câmara Municipal de C...;
- Provedor de Justiça;
- S..., vereador com o pelouro da fiscalização da CMC;
6. O arguido sabia que o ofendido desempenhava as funções de Chefe de Gabinete do Presidente da CMC e quis, no mail que remeteu, a ele referir-se nessa qualidade;
7. Relativamente às expressões Tendo a pressão continuado pelo agora Dr. J..., (que pelos vistos se licenciou tão rapidamente como alguns políticos da nossa praça)..., Espero que (...) não sigam o caminho do responsável pelo Gabinete da presidência dessa Camara, que a troco de favores pessoais, enveredou por uma manipulação de situações e documentos por capricho pessoal. e Será que as 15 obras ilegais existentes (...) não constituem reconhecer prejuízo grave para o interesse público urbanístico (...) ou estão protegidas pelo Secretário de Vossa Excelência (...)? (...) Ou será que vão ser arquivadas, de modo a fazer mais um favor á amiga do seu secretário, Sr. Presidente?, admitiu o arguido, ao escrevê-las e remeter nos termos referidos, a possibilidade de serem as mesmas suscetíveis de ofender a honra e consideração do ali visado J..., resultado com que se conformou;
8. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei;
9. Em consequência dos factos descritos, o queixoso sentiu-se ofendido na sua honra e consideração, profissional e pessoal, humilhado, magoado e diminuído, ficou abalado e mais reservado;
10. Em consequência dos factos comunicados no referido mail, o queixoso foi alvo de um inquérito na CMC, a final arquivado;
11. 0 arguido trabalha como oficial de operações aeroportuárias, auferindo € 2.200.00 mensais;
12. Vive com a mulher, que trabalha de forma remunerada, e com um enteado, a cargo, e um filho de uma relação anterior, em guarda partilhada;
13. O arguido tem mais 3 filhos que com ele não vivem e que ajuda financeiramente;
14. A arguida está desempregada desde fevereiro de 2015 e recebe € 400.00 de subsídio de desemprego;
15. Vive com os pais e tem dois filhos, um deles que vive com ela em guarda partilhada (com o arguido) e um outro filho que com ela não vive;
16. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
Dispõe o artigo 180, n° 1 do CP que comete o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivas da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, sendo punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira (art. 180, no 2 do CP).
Por sua vez, o art. 184 do CP prevê que a pena referida no art. 180 é elevada de metade no seu limite mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na al. 1) do n° 2 do artigo 1320, no exercício das suas funções ou por causa delas (...).
A difamação consiste na atribuição, perante terceiro, a outrem e mesmo que sobre a forma de suspeita, de um facto ou de um juízo (sobre o visado) que encerre em si uma reprovação ético-social, isto é, que sejam ofensivos da honra e da consideração do visado.
No caso concreto, o mail enviado tem a extensão de cerca de 2 páginas (fls. 7 a 9) e nele o arguido imputa ao queixoso factos e sobre o mesmo faz juízos de valor. Relativamente a alguns dos factos imputados, nomeadamente ter sido o queixoso a tirar as fotografias que instruíram a reclamação da tal Sra. D. M..., entende o Tribunal que a descrição das situações é adequada, está contextualizada, concretizada, explicada e integra-se dentro do direito que qualquer cidadão tem de expor uma situação relativamente à qual suspeita que alguma coisa não foi bem conduzida. 0 arguido quis expor as suspeitas que tinha e fê-lo, no entendimento do Tribunal, de forma adequada, dirigindo o mail em causa ao superior hierárquico do visado e dele dando conhecimento a outros intervenientes no processo e ao Provedor de Justiça. Até aqui nada a apontar, mormente tendo em conta que o queixoso, apesar de ter-se deslocado várias vezes a casa da tal Sra. D. M..., nunca esteve disponível para reunir com o arguido. O queixoso privilegiou a proximidade com os munícipes (como o próprio referiu em julgamento) para justificar as suas visitas a casa da tal Sra. D. M... que se queixava da obra do arguido, mas não cuidou de lançar mão dos mesmos critérios quando recusou, por várias vezes, reunir pessoalmente com o arguido na CMC.
Percebe-se a sensação de injustiça por parte do arguido. Percebe-se a necessidade que o mesmo teve de expor todas as suspeitas que tinha e que, tendo em conta principalmente o facto de nunca ter tido oportunidade de as esclarecer com o principal visado dessas mesmas suspeitas, sendo ele uma pessoa com responsabilidade públicas, se adensaram e mereciam ser investigadas e esclarecidas.
Há, contudo, ao longo do mail, algumas expressões que abandonam o plano de referência objetiva a que acima se aludiu a propósito do direito à crítica e à indignação e que passam para um plano de degradação pessoal do visado. Nessas expressões, o arguido deixa de ter como centro os atos que o queixoso objetivamente possa ter praticado no âmbito daquele processo que culminou em demolição, e passa a referir-se ao queixoso num tom de rebaixamento e de achincalhamento pessoal deste, no qual a crítica deixa de ser lícita. Essas expressões são as seguintes:
Tendo a pressão continuado pelo agora Dr. J..., (que pelos vistos se licenciou tão rapidamente como alguns políticos da nossa praça)..., Espero que (...) não sigam o caminho do responsável pelo Gabinete da presidência dessa Camara, que a troco de favores pessoais, enveredou por uma manipulação de situações e documentos por capricho pessoal. e Será que as 15 obras ilegais existentes (...) não constituem reconhecer prejuízo grave para o interesse público urbanístico (...) ou estão protegidas pelo Secretário de Vossa Excelência (...)? (...) Ou será que vão ser arquivadas, de modo a fazer mais um favor á amiga do seu secretário, Sr. Presidente? - sublinhado da subscritora.
Entende o Tribunal que estas expressões revestem já um ataque pessoal gratuito e mesmo descontextualizado dirigido ao queixoso, extravasando o exercício de qualquer direito de crítica, de qualquer direito à indignação ou da liberdade de expressão.
Tais expressões violam aquele mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da honra e consideração do visado e entende o Tribunal que justificam tutela penal, por serem idóneas a ofender o visado, facto este que o arguido, pessoa de inteligência média e com formação, não pode ter deixado de admitir como possível.
Apesar de estarmos perante um visado com alguma responsabilidade e exposição públicas, do qual também se exige uma maior capacidade para lidar com críticas mais virulentas e juízos de valor mais intensos, o certo é que, mesmo nesse contexto, as expressões utilizadas pelo arguido e acima referidas têm um significado conhecido pelo comum dos cidadãos e é sabido que suscitam censura e a consequente degradação da imagem do visado.
Como já se referiu, a todos os cidadãos é reconhecido o direito à indignação, o direito à revolta e o direito à livre expressão, um dos bastiões da sociedade democrática. Porém, o direito próprio não pode postergar o direito dos outros e o queixoso mantém o direito ao bom nome que viu afetado pelas afirmações do arguido.
O delinear de uma fronteira de risco permitido não afasta a obrigação de contenção verbal sob pena de empurrar a conduta para o plano do ilícito. No caso, entende o Tribunal que, com as expressões acima já referidas, essa fronteira foi violada, conduzindo à responsabilidade do arguido pelo crime de que vem acusado.
Conclui-se, do que se deixa dito, que as expressões referidas são difamatórias, porque adequadas a desacreditar, desprestigiar ou diminuir o bom nome do queixoso, pelo que se verifica o elemento objetivo do tipo em análise.
O queixoso desempenhava, à data, o cargo de Chefe de Gabinete do Presidente da CMC, donde resulta a agravação do tipo penal em causa, cfr. art. 184 e 132, no 2 - 1) do CP.
Com efeito, entende o Tribunal que aquele cargo se reconduz ao desempenho de atividade na função pública administrativa, cfr. ai. d) do n° 1 do art. 386 do CP, artigo que define o conceito legal de funcionário para todos os crimes do Código Penal (cfr. Comentário do Código Penal, 3a edição atualizada, Paulo Pinto de Albuquerque, pág. 1234, anotação 24), incluindo para densificação desse conceito quando referido na alínea 1) do n° 2 do art. 132 do CP, artigo para o qual o art. 184 remete.
Atendendo às circunstâncias acima mencionadas, tendo o arguido admitido como possível que tais expressões pudessem vir a ofender a honra e a consideração do queixoso, resultado com o qual se conformou, conclui-se ter, o arguido, agido com dolo eventual, pelo que se verifica igualmente o elemento subjetivo do tipo em apreço.
Não há causas de exclusão da ilicitude nem da culpa.
O arguido é, assim, jurídico-penalmente responsável pelo crime de difamação de que vem acusado, p. e p. pelos arts. 180, no 1, 184 e 132, no 2 - 1) do CP.
IV. DECISÃO
Assim sendo e em face do exposto, o Tribunal:
Condena o arguido C... pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts. 180, no 1 e 184 do CP, na pena de 90 dias de multa, a € 8.00 diários, no total de € 720.00.
Julgo parcialmente procedente o pedido civil deduzido e:
- condeno o demandado C... a pagar ao demandante a quantia de € 1.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, indo absolvido quanto ao restante peticionado.
A Digna PGA junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Respondeu a arguida A... pugnando pela procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
0 objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, é: saber se o ofendido, enquanto Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal de C... integra uma das categorias profissionais/ funcionais constantes do elenco do art. 132°, 2, 1), C., por remissão do art. 184°, ambos do C. Penal.

Insurge-se o recorrente ante a condenação de que foi alvo, na medida em que considera que o visado nos seus escritos não possui a qualidade de funcionário público ta/ qual a definição do art. 386º, C. Pen., nem qualquer das outras categorias ou cargos enumeradas no art. 132°, 2, 1), C. Pen., pelo que, na ausência de constituição de assistente e dedução de acusação particular por parte do ofendido, deve ser absolvido do crime em causa.
Vejamos:
0 recorrente admite a prática de um crime de difamação na pessoa de J..., à data, chefe de gabinete do Presidente da Câmara Municipal de C.... Entende, porém, que o cargo exercido pelo ofendido é meramente político, não tomando decisões no interesse da comunidade, carecendo de competência para tal e bem assim para executar funções compreendidas no âmbito do exercício de funções públicas.
A existência e função de chefe de gabinete de Presidente de Câmara Municipal está contemplada no art. 42º da Lei n° 75/2013, de 12-9, encontrando-se o seu regime previsto no art. seguinte. De tal resulta que ao regime dos chefes de gabinete dos Presidentes das Câmaras Municipais é aplicável, com as devidas adaptações, o Regime Jurídico dos Gabinetes dos Membros do Governo.
Ora, perlustrado o DL n° 11/2012, de 20-1 (Estabelece a natureza, a composição, a orgânica e o regime jurídico a que estão sujeitos os gabinetes dos membros do Governo), podemos constatar que:
De acordo com o seu art 2º - os gabinetes são estruturas de apoio directo à actividade política dos membros do Governo, que têm por função coadjuva-/os no exercício das suas funções -.
Acresce que nos termos do no 1 do art. 5º daquele diploma, compete ao chefe de gabinete dirigir e coordenar o gabinete e a ligação aos serviços e organismos dependentes do respectivo membro do Governo, aos gabinetes dos restantes membros do Governo e às demais entidades públicas e privadas.
Decorre, pois, do exposto, que o chefe de gabinete exerce funções de cariz manifestamente políticas, o que é reforçado (embora não decisivo, pois tal sucede vg. também com altos dirigentes da Administração Pública) com a confiança política que têm de merecer por parte do respectivo membro do Governo (e, bem assim do Presidente da Câmara Municipal), que os nomeia e exonera - arts. 11º, 1, do Dec.-Lei no 11/2012, de 20-1 e 43º, 4, da Lei no 75/2013, de 12-9
Sucede que, para além das apontadas funções, os chefes de gabinete exercem ainda competências, por delegação do titular do órgão que os nomeia, que podemos integrar no conceito, que adiante explanaremos, de função pública administrativa. Efectivamente, aos chefes de gabinete podem ser assacadas competências de gestão do gabinete e respectivo pessoal, inclusivamente a autorização de despesas a suportar pelo orçamento do gabinete, assim como as relativas a assuntos administrativos correntes (no caso específico do cargo do ofendido - prática de actos de administração ordinária) - cfr. Arts. 5°, n° 2 e 3 do DL 11/2012 e 42º, 6 da Lei 75/2013.
A Administração Pública é corrente e essencialmente definida pela doutrina em dois sentidos: material e orgânico. Assim, a administração pública, em sentido material, é o conjunto de decisões e operações mediante as quais o Estado e outras entidades públicas, procuram, dentro das orientações gerais traçadas pela Política e directamente ou mediante estímulo, coordenação e orientação das actividades privadas, assegurar a satisfação regular das necessidades colectivas de segurança e de bem-estar dos indivíduos, obtendo ou empregando racionalmente para esse efeito os recursos adequados. Já a Administração Pública em sentido orgânico é um sistema de órgãos do Estado e de pessoas colectivas que com ele cooperam por força da lei na satisfação das necessidades colectivas - Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo. Vol I, 10ª ed., 1980, pgs. 5 e 14. Se atentarmos em noções mais recentes, vejamos o que nos diz Freitas do Amaral no seu Curso de Direito Administrativo, vol I, 3a ed., 2006, a pgs. 33 a 34 e 36 a 37 - administração pública em sentido material é a actividade típica dos serviços públicos e agentes administrativos desenvolvida no interesse geral da colectividade, com vista à satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as formas mais convenientes. A Administração Pública em sentido orgânico é o sistema de órgãos,
serviços e agentes do Estado, bem como das demais pessoas colectivas públicas, que asseguram em nome da colectividade a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar.
Ora, do que acima se expôs, não restam dúvida de que os chefes de gabinete dos membros do Governo ou das autarquias locais, por um lado, integram a orgânica da Administração Pública, na medida em que se inserem na sua estrutura e, por outro lado, desempenham - por delegação - actividades inerentes à administração pública materialmente considerada.
Tal não invalida que possam ser considerados funcionários públicos ou agentes administrativos em sentido estrito, atentos os critérios ínsitos ao direito administrativo (cfr., as definições de Marcello Caetano, ob. Cit., vol. II, pgs. 641, 669 e 672 a 673 funcionário público, agente administrativo e agente político) como não é decisivo que se lhes possa aplicar subsidiariamente o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas - art. 14°, 2, da Lei n° 11/2012.
Deste modo, é apenas em atenção a um critério material/funcional que entendemos que os chefes de gabinete dos Presidentes das Câmaras Municipais são agentes administrativos.
Porém, sem descurar as noções supra expostas, o que aqui verdadeiramente importa é o conceito de funcionário para os estritos efeitos da lei penal, que é manifestamente mais amplo que a concepção administrativista. Como referem Leal-Henriques e Simas Santos, Código Pena/ Anotado, 2° vol., 3a ed., pg. 1651, a noção de funcionário para estes fins está intimamente ligada à ideia de função, que não propriamente ao formalismo da qualidade de
agente.
Refira-se, desde já, que para a Lei n° 34/87, de 16-7 (Regime dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos), os chefes de gabinete não são ali considerados ou equiparados, atenta a enumeração taxativa constante do seu art. 3º (embora aqui se cure apenas de agentes activos).
Para que se verifique a agravação do crime de difamação, exige o art. 184°, C. Pen., que a vítima possua uma das qualidades ou exerça uma das funções taxativamente previstas no art. 132°, 2, 1). Esta alínea, que não constava da versão original do Código, foi introduzida pelo DL 101-A/88, de 26-3, posteriormente alargada pelas reformas de 1995 e 1998, por forma a conferir uma protecção acrescida (pese embora o carácter exemplificativo e meramente indiciador de uma culpa agravada) às pessoas ali mencionadas, no exercício ou por causa das suas funções - cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, pgs. 40-41 e preâmbulo do cit. DL 101-A/88 -.
Ora, perlustrando o elencado naquela alínea do art. 132°, 2, não sendo o ofendido membro de órgão de autarquia local, só pode ser enquadrado no conceito de funcionário público, o que nos remete para o conceito expresso no art. 386°, C. Penal.
Assim, para a lei penal, a expressão funcionário abrange não apenas o funcionário civil, como ainda o agente administrativo e outras pessoas chamadas a desempenhar ou a participar de uma actividade compreendida na função pública (no 1), para além das equiparações que ainda aduz nos números seguintes. Este conceito legal e amplo de funcionário visa proteger não só todo o leque de pessoas que exercem uma actividade pública administrativa ou empresarial, jurisdicional, internacional ou, mesmo políticas, mediante previsão especial. E vale para todos os crimes do Código Penal, como se infere do seu elemento literal para efeitos da lei penal, como de uma interpretação histórica e teleológica, conferindo a necessária harmonização e segurança jurídicas ante uma plêiade de conceitos espalhados pelo Código Penal e legislação avulsa, que utiliza expressões muito próximas, nem sempre convergentes, e aplica-se quer para o caso de o funcionário ser agente do crime, quer para o caso de ele ser vítima do crime, a despeito da sua inserção sistemática - cfr. Eduardo Correia in Actas da Comissão de Revisão do C. Penal de 1966 e 1979, cit. por P. Pinto de Albuquerque no Comentário do Código Penal, 2a ed., pgs. 1027 a 1029.
No caso em apreço, o ofendido exercia à data dos factos, o cargo de chefe de gabinete do Presidente da Câmara Municipal de C... e, foi nessa qualidade que foi mencionado na mensagem de correio electrónico que remeteu ao sr. Presidente da CMC (com conhecimento a outras pessoas e entidades referidas em 5 dos factos provados) a propósito de um licenciamento urbanístico que afectava directamente o ora recorrente, em que aquele terá tido intervenção. Ora, tais funções compreendem-se no interesse público de ordenamento do território, da competência dos municípios e do seu Presidente, como resulta dos arts. 33° a 35° da Lei das Autarquias Locais (Lei n° 75/2013, de 12-9).
Destarte, não restam dúvidas que o ofendido actuou In casu como agente administrativo (para efeitos dos cit. arts. C. Penal), ou seja, no exercício de uma função administrativa pública legalmente atribuída à CMC, ao serviço desta e sob a direcção do respectivo Presidente. Por outro lado, o arguido actuou da forma descrita, precisamente por causa das aludidas funções desempenhadas pelo ofendido.
Está, assim, correcta a qualificação do crime de difamação que vem imputado ao arguido, mediante a aplicação do art. 184°, C. Pen., efectuada pelo tribunal a quo, e a condenação em conformidade, não se tornando necessária a constituição de assistente nem a dedução de acusação particular por parte do ofendido, para além da queixa (apresentada) dado que se trata de um crime semi-público - art. 188°, 1, a), C. Pen..
Pelo exposto:
Acordam, em conferência, os juízes da 5a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC,s.
Lisboa, 6-12-17
Carlos Espírito Santo
Anabela Simões Cardoso
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