Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 06-12-2017   Questão de particular importância. Participação em programa televisivo.
A requerente não só partiu do pressuposto errado que estava em causa uma questão que não carecia de autorização de ambos os progenitores, como não concretizou quais as vantagens e benefícios que o menor iria retirar da participação no programa televisivo, no sentido de promover o seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral, bem como a sua estabilidade emocional, tendo em conta a idade, e o seu enraizamento no meio sócio-cultural, em suma, o «interesse superior do menor».
Consequentemente, o tribunal recorrido valorou correctamente a situação que lhe foi apresentada, e não tinha a obrigação de convidar a requerente ao aperfeiçoamento da petição, perante a omissão quase total de factos essenciais para aferir o interesse superior da criança, e tendo ponderado como ponderou que «a exposição televisiva do jovem poderá ter repercussões para o mesmo, tanto mais que, no caso, implica a deslocação entre esta ilha e o continente em dias escolares».
A tramitação prevista nos artigos 35.º a 40.º- do RGPTC só deve ser seguida depois do tribunal concluir que está perante uma «questão de particular importância», sobre a qual os progenitores não estejam de acordo, e que serve o interesse superior da criança. Se assim não for, há o risco de intromissão constante nos assuntos familiares, com todas as desvantagens daí inerentes, quer na perspetiva do desenvolvimento do menor, como dos interesses dos próprios progenitores.
Proc. 661/13.0TMFUN-I.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Ana Paula Carvalho - Manuela Gomes - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA 6ª SECCÀO
Processo Nº 661/13.OTMFUN-I.L1 do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira Juízo de Família e Menores do Funchal - Juiz 2, procedimento cautelar
Recorrente: F... e M...
Recorrido: F...
Relatora: Ana Paula Albarran Carvalho
Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
F... e M... interpôs, por requerimento apresentado em juízo a 6 de Setembro de 2017, providência susceptível de integrar-se nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 44.º do RGPTC, contra F... e relativamente ao filhos de ambos, peticionando ao Tribunal que autorize que o menor possa participar no programa de TV a realizar-se no dia 11 de Setembro, assim como nos dias que se vierem a designar, se o menor passar a primeira fase do programa, uma vez que o progenitor já manifestou junto da E... que não deu autorização para o menor participar e o programa aguarda por resposta.
Foi proferida decisão que por manifesta improcedência indeferiu liminarmente a petição inicial, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 33.º, n.º 1, do RGPTC.
Não se conformando, a requerente interpôs recurso de apelação pedindo a revogação da decisão, seguindo-se os trâmites legais nos termos do artigo 35° e ss. do RGPTC, uma vez que existe a possibilidade de o menor ainda vir a participar do referido programa.
A apelante formula as seguintes conclusões das alegações:
«1) O presente recurso tem por objeto o despacho de indeferimento liminar proferido no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais, por falta de acordo dos pais em questões de particular importância, nos termos do artigo 44.° RGPTC.
1) A decisão julgou manifestamente improcedente e infundada a pretensão da Recorrente quanto a participação do menor Francisco Mendonça num programa de talentos, da RTP denominado Os Extraordinários.
2) A decisão refere que a recorrente não alegou factos donde se extrai o interesse real da criança na participação num programa de talentos, e ainda que o início do ano escolar coincide com a participação do programa, pelo que considerou que ainda que provado os factos alegados, pela procedência da pretensão da requerente.
3) O progenitor foi informado da intenção de participação do menor no programa em início de agosto de 2017, com toda a informação fornecida pela E....
4) Requereu o progenitor informações até vésperas do programa, com vista a esgotar o efeito útil de qualquer ação que viesse a ser interposta.
5) Inclusive quando o menor esteve na sua companhia a passar férias de verão disse ao filho que dava a sua autorização para participar, criando largas expectativas ao menor da sua participação no programa.
6) O recorrido pôs em dúvida as capacidades do seu filho.
7) O progenitor/Recorrido foi informado de toda a informação solicitada, e ainda foi dada todas as instruções para que o progenitor estivesse presente no programa.
8) Na petição inicial apresentada no tribunal ad quo, ao contrário do que foi alegado na decisão, foram deduzidos argumentos e factos donde se extraia o interesse real da criança, na participação num programa de talentos.
9) Estamos perante um programa de televisão que tem uma pré-seleção dos candidatos.
10) Concorrem crianças de todo Portugal.
11) O menor Francisco Mendonça, foi selecionado entre milhares de crianças, para participar na 1.ª fase do programa.
12) Por ser dotado de um talento especial.
13) O programa premeia as mentes mais espantosas e brilhantes, de crianças extraordinárias.
14) As idas a Lisboa seriam se ele passa-se a primeira fase.
15) Existem inúmeros voos diários, que ligam Lisboa a Madeira.
16) Pelo que não assiste nenhuma razão ao progenitor em tudo o que invocou, uma vez que o programa foi feito para crianças e todas estudam.
17) A E... ao criar o programa, não tem como intenção de afetar, denigrir os participantes, nem agendar gravações em épocas de teste escolares, ou seja, é um programa estudado e adaptado as necessidades dos participantes.
18) Nos termos do nº 2 do artº 44º do RGPTC, Autuado o requerimento, seguem-se os termos previstos nos artigos 35º a 40º, por conseguinte, determinando a lei se tramite o Incidente em causa, previsto no art° 44º, segundo as regras processuais aplicáveis á Regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas, relativamente a este regime dispondo o nº1 do artº 35º que autuado o requerimento os pais são citados para uma Conferência, e, mais dispondo o nº3 do artº 44º, em referência, que o Tribunal decide uma vez realizadas as diligências que considere necessárias.
19) Decorre do exposto que a lei tutelar, relativamente ao Incidente em causa, não prevê a legal possibilidade de indeferimento liminar da petição inicial, no art.º 33º, a possibilidade de aplicação subsidiária das normas do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.
20) Ao decidir como decidiu, violou o Mo Juiz, com a douta decisão recorrida, entre outros, o disposto nos artigos 1.885°, 1.915°, 1.918°, 1.919°, do Cód. Civil, artigos 26°, 36° da Constituição da República Portuguesa, 9° da Convenção dos Direitos das Crianças, 186°, 590°, 987°, do Cód. Proc. Civil, 44° ss da RGPTC.
21) Face ao que dispõe o n.° 2 do artigo 986.º do CPC, o indeferimento liminar do requerimento de alteração da regulação do poder paternal, para além de não encontrar suporte nas normas processuais aplicáveis, não se revela admissível por razões formais, na medida em que o poder/dever conferido ao juiz pelo citado n.º 2 do artigo 986.º do CPC, permitirá em regra superar eventuais obstáculos que possam pôr em causa a possibilidade de prolação de decisão de mérito.
22) Só após a audição da parte contrária, ou do decurso do prazo que a lei confere para o efeito, poderá o juiz apreciar eventuais nulidades formais do requerimento, podendo nomeadamente determinar o arquivamento do processo.
23) Considerando-se que os factos alegados pela recorrente na petição inicial do incidente eram os essenciais, nunca poderia o tribunal ad quo concluir pela manifesta improcedência do pedido.
24) Uma vez que se trata dum programa de televisão, cujos participantes são todas crianças.
25) A petição podia ser porventura uma peça inábil, mas nunca inepta.
26) Quanto muito, face a eventual dúvida sobre o verdadeiro interesse real do menor, sempre se poderia socorrer o tribunal ad quo, do convite legal para aquela aperfeiçoar o seu articulado.
27) Perante tal dúvida devia a Sra. Juiz devia ter convidado o requerente a aperfeiçoar a petição ou ter designado dia para a realização de uma conferência e aí averiguar qual o interesse real da participação do menor no programa de TV, nos termos do disposto art.° 986.º do CPC.
28) Na eventualidade de o requerimento apresentado suscitar dúvidas sobre a sua interpretação ou conteúdo, o M.º Juiz poderia ter proferido despacho a determinar a notificação do ora recorrente, com vista a aperfeiçoar o seu requerimento.
29) Ao decidir como decidiu, violou o Mo Juiz, com a douta decisão recorrida, entre outros, o disposto nos artigos 1.885°, 1.915° 1.918°, 1.919°, do Cód. Civil, artigos 26°, 36° da Constituição da República Portuguesa, 9° da Convenção dos Direitos das Crianças, 186°, 590°, 987°, do Cód. Proc. Civil, 44° ss da RGPTC.»
Foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar.

Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, n° 4, e 639º, nº 1, do CPC, importa decidir em síntese se a sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 1.885° 1.915°, 1.918°, 1.919°, do Cód. Civil, artigos 26°, 36° da Constituição da República Portuguesa, 9° da Convenção dos Direitos das Crianças, 186°, 590°, 987°, do Cód. Proc. Civil, 44° ss da RGPTC.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Dispõe o nº 1 do Artigo 44.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.° 141/2015 de 8/9) que, quando o exercício das responsabilidades parentais seja exercido em comum por ambos os pais, mas estes não estejam
de acordo em alguma questão de particular importância, pode qualquer um deles requerer ao tribunal a resolução do diferendo.
No essencial, a decisão recorrida entendeu não haver dúvidas de «que a questão submetida pela progenitora a juízo trata-se de questão de particular importância, já que a exposição televisiva do jovem poderá ter repercussões para o mesmo, tanto mais que, no caso, implica a deslocação entre esta ilha e o continente em dias escolares», para se pronunciar no sentido de que, no caso, «a progenitora não alega factos donde se extrai o interesse real da criança na participação num programa de talentos, e sendo certo que o inicio do ano escolar coincide com a participação em tal programa não pode concluir-se, ainda que provados os factos alegados, pela procedência da pretensão da requerente».
A apelante defende, em primeiro lugar, que a petição contém todos os elementos factuais, pois é alegado que «Estamos perante um programa de televisão que tem uma pré-seleção dos candidatos. Concorrem crianças de todo Portugal. O menor Francisco Mendonça, foi selecionado entre milhares de crianças, para participar na 1.2 fase do programa. Por ser dotado de um talento especial. O programa premeia as mentes mais espantosas e brilhantes, de
crianças extraordinárias.» E que as idas a Lisboa seriam se ele passasse a primeira fase. Existem inúmeros voos diários, que ligam Lisboa a Madeira.
A petição inicial não só não contém estas alegações, como se baseia no pressuposto de que não está em causa uma questão de particular importância (artigos 42 e 192) e que não será «necessária a autorização de ambos os progenitores» (artigo 5º).
Conforme é bem realçado no Acórdão da Relação de Lisboa, de 03.02.2015 (disponível no sítio da internet do IGFEJ), o «superior interesse da criança» é «um conceito indeterminado, que tem vindo a ser determinado à luz
dos instrumentos legislativos, quer de direito internacional quer nacional, radicando na ideia de procura da solução mais adequada para a criança, aquela que melhor a salvaguarde, melhor promova o seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral, bem como a estabilidade emocional, tendo em conta a sua idade, o seu enraizamento ao meio sócio-cultural, mas também a disponibilidade e capacidade dos progenitores em assegurar tais objetivos».
As considerações feitas pela requerente na petição inicial são, na verdade, pouco ou nada elucidativas sobre as vantagens concretas que o menor irá retirar da participação no aludido programa televisivo, pois apenas enfatizam o «talento especial» da criança ao conseguir ser selecionado entre os muitos candidatos de todo o país, do que não se duvida, bem como ter ficado «orgulhoso por ter sido escolhido» (artigos 16º e 17º). Concorda-se, portanto, com a conclusão consignada na decisão recorrida de que faltam os elementos fácticos necessários para a demonstração de que a participação serve «o interesse superior da criança».
Em segundo lugar, a apelante defende que mesmo a entender-se que a «petição é inábil», o tribunal devia ter convidado a requerente a aperfeiçoar a petição ou ter designado dia para a realização de uma conferência e aí averiguar qual o interesse real da participação do menor no programa de TV, nos termos do disposto art.º 986.º do C.P.C., por se tratar de um incidente inserido num processo de jurisdição voluntária, e tendo ainda presente que a lei tutelar não prevê a possibilidade legal de indeferimento liminar da petição inicial, remetendo no artigo 33º para a aplicação subsidiária das normas do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.
Verificando-se um diferendo quanto a uma questão de particular importância, é incumbência do progenitor que requer a resolução pela via judicial alegar os factos essenciais que, na sua perspectiva, alicerçam a decisão que entende mais conveniente. Tal como é assinalado na decisão recorrida, «o juiz deverá atender em primeiro lugar ao interesse da criança (...), tendo presente que o processo em causa é de jurisdição voluntária (actual artigo 12º do RGPTC e artigo 150º da OTM) e por conseguinte na decisão a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar a solução que julgue ser mais conveniente e oportuna para o caso concreto (artigo 987º do Código de Processo Civil)».
Dispõe o artigo 33º n° 1 do RGPTC que «nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores». Na anotação a este artigo, Tomé d'Almeida Ramião refere que «todas as questões não expressamente reguladas no RGPTC, serão resolvidas através das regras previstas no Código de Processo Civil, devidamente adaptadas, e cuja solução não contrarie os fins da jurisdição de menores» (RGPTC - Anotado e Comentado, Quid Iuris, 2ª Edição, Junho de 2017).
Sempre que a petição inicial é apresentada a despacho liminar, o nº 1 do artigo 590º do C.P.C. prevê a possibilidade de indeferimento quando o pedido seja manifestamente improcedente.
Nas palavras de Abrantes Geraldes, a rejeição liminar do requerimento inicial com base em razões substanciais ligadas à manifesta antevisão da inviabilidade da pretensão parte de «um julgamento antecipado do mérito da
providência que se justifica apenas nos casos de evidente inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior» e o «juiz deve reservar esta decisão apenas para os casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência» (in Procedimento Cautelar Comum, III Volume, 4ª ed. Almedina, pág. 188).
Na situação vertente, a requerente não só partiu do pressuposto errado de que estava em causa uma questão que não carecia de autorização de ambos os progenitores, como não concretizou quais as vantagens e benefícios
que o menor iria retirar da participação no programa televisivo, no sentido de promover o seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral, bem como a sua estabilidade emocional, tendo em conta a idade, e o seu enraizamento no meio sócio-cultural, em suma, o «interesse superior do menor».
Consequentemente, o tribunal recorrido valorou correctamente a situação que lhe foi apresentada, e não tinha a obrigação de convidar a requerente ao aperfeiçoamento da petição, perante a omissão quase total de factos essenciais para aferir o interesse superior da criança, e tendo ponderado como ponderou que «a exposição televisiva do jovem poderá ter repercussões para o mesmo, tanto mais que, no caso, implica a deslocação entre esta ilha e o continente em dias escolares».
Por último, não se vislumbra em que medida a decisão impugnada violou o disposto nos artigos 1.885°, 1.915°, 1.918°, 1.919°, do Cód. Civil, artigos 26°, 36° da Constituição da República Portuguesa, e artigo 9° da Convenção dos Direitos das Crianças. A tramitação prevista nos artigos 35º a 40º do RGPTC só deve ser seguida depois do tribunal concluir que está perante uma «questão de particular importância», sobre a qual os progenitores não estejam de acordo, e que serve o interesse superior da criança. Se assim não for, há o risco de intromissão constante nos assuntos familiares, com todas as desvantagens daí inerentes, quer na perspetiva do desenvolvimento do menor, como dos interesses dos próprios progenitores.
Conclui-se, assim, que as objeções suscitadas pela apelante não merecem acolhimento, pelos motivos expostos.
DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Lisboa, 06.12.2017
(Ana Paula Albarran Carvalho)
(Maria Manuela Gomes)
(Fátima Galante)
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