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    Jurisprudência da Relação Cível
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 - ACRL de 07-11-2017   Despacho inicial sobre a exoneração do passivo. Atraso no despacho. Consequências.
Nos termos da lei, o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante deve ser proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos dez dias posteriores, devendo, nesse mesmo despacho, ser encerrado o processo.
Se o juiz não profere aqueles despachos no momento legalmente determinado, vindo a fazê-lo com mais de seis anos de atraso, tendo o insolvente, no decurso daqueles anos, cedido, mensalmente, os seus rendimentos no que ultrapassava € 700, não deve ser obrigado a ceder rendimentos durante mais cinco anos.
Nestas circunstâncias, o insolvente não deve sofrer as consequências do atraso, devendo reportar-se o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante à data em que devia ter sido proferido, para que o insolvente não fique privado do rendimento que ultrapassa o razoavelmente necessário paro o sustento minimamente digno por mais de cinco anos.
Proc. 21508/10.4T2SNT-E.L1 7ª Secção
Desembargadores:  Higina Castelo - José Capacete - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Tribunal da Relação de Lisboa 7.ª Secção Cível
Proc. n.º 21508/10.4T2SNT-E. L1
SUMÁRIO (ART. 663, N.º 7, DO CPC):
1. Nos termos da lei, o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante deve ser proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos dez dias posteriores, devendo, nesse mesmo despacho, ser encerrado o processo.
II. Se o juiz não profere aqueles despachos no momento legalmente determinado, vindo a fazê-lo com mais de seis anos de atraso, tendo o insolvente, no decurso daqueles anos, cedido, mensalmente, os seus rendimentos no que ultrapassava € 700, não deve ser obrigado a ceder rendimentos durante mais cinco anos.
III. Nestas circunstâncias, o insolvente não deve sofrer as consequências do atraso, devendo reportar-se o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante à data em que devia ter sido proferido, para que o insolvente não fique privado do rendimento que ultrapassa o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno por mais de cinco anos.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1. RELATÓRIO
M... e A..., insolventes nos autos à margem referenciados e aí melhor identificados, não se conformando com o despacho de 21/06/2017 relativo à exoneração do passivo restante, na parte que consigna que, «tendo apenas nesta data sido proferido o despacho inicial, não é viável considerar como cessão de rendimento as quantias que foram objeto de apreensão para a massa insolvente», dele interpõem o presente recurso.
A cabal compreensão do litígio impõe um pequeno excurso pelo processo:
Os recorrentes apresentaram-se à insolvência por requerimento de 04/10/2010, tendo logo requerido a exoneração do passivo restante.
A insolvência foi decretada em 07/10/2010.
Foi publicado o anúncio a que se reporta o art. 38 do CIRE em 03/11/2010.
A assembleia de credores de apreciação do relatório reuniu em 13/12/2010 (art. 156 do CIRE).
Na sentença foi decidido que o administrador apreenderia, durante o decurso do processo de liquidação do património, todo o rendimento auferido pelos insolventes que excedesse o montante de € 700 (sendo este valor entregue aos insolventes para seu sustento).
O AI apresentou o relatório, considerando que o processo de liquidação deveria estar concluído no prazo máximo de um ano, nos termos do art. 169 do CIRE, a que se seguiria o mandato do fiduciário para exercício das funções previstas no art. 241 do CIRE. Em 01/06/2016, não estando ainda proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, os recorrentes vieram mais uma vez requerer que o mesmo fosse proferido.
Nesse seu requerimento expressaram, ainda: «que uma vez proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, e na medida em que estão já os Insolventes a ceder parte do seu rendimento ao processo, que os efeitos da prolação do despacho inicial retroajam à data em que os Insolventes procederam à entrega do primeiro rendimento por si auferido, pois julgamos que atento o decurso do tempo já decorrido, não lhes poderá ser exigido que, por factos a que são alheios, permaneçam em situação de insolvência e em período de cessão por mais 5 anos, facto que a acontecer desvirtua, por completo, a intenção do legislação ao conceder aos Insolventes a possibilidade de se reabilitarem financeiramente após um determinado período de tempo - 5 anos - o que julgamos que no caso em apreço já se verificou».
O despacho inicial de exoneração do passivo restante foi proferido apenas em 21/06/2017, tendo, além do mais, o seguinte teor:
«Verificados os necessários pressupostos, declara-se que a exoneração do passivo restante será concedida findo o período de 5 anos após o encerramento do processo de insolvência - art. 237º, b), do CIRE.
Assim, determino que, durante esse período, o rendimento disponível que os devedores venham a obter, em tudo o que exceda a quantia global de € 1.392,50 mensais, equivalentes a 2,5 vezes o valor do SMN, se considera cedido ao fiduciário infra nomeado.
G.)
Durante o período da cessão, os devedores ficam ainda obrigados a:
a) Não ocultarem ou dissimularem quaisquer rendimentos que aufiram, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado;
b) Exercerem uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurarem diligentemente tal profissão quando desempregados, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que sejam aptos;
c) Entregarem imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informarem o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazerem quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e não criarem qualquer vantagem especial para algum desses credores. De acordo com o estatuído no art. 239º, n.º2, do CIRE, nomeia-se fiduciário o próprio administrador da insolvência, inscrito na lista oficial de administradores de insolvência. Adverte-se que a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo dos devedores - art. 240º, n.º1, do CIRE.
Qualquer alteração na composição do agregado familiar ou nos rendimentos auferidos deve ser comunicada pelo fiduciário aos autos.
Determina-se que as entregas ao fiduciário tenham o seu início decorridos 15 dias a contar da notificação deste despacho, data a partir da qual começa a contagem do prazo de 5 anos previsto no art. 239º, n.º2, do CIRE.
Notifique.
Consigna-se ainda que tendo apenas nesta data sido proferido o despacho inicial não é viável considerar como cessão de rendimento disponível as quantias que foram objeto de apreensão para a massa insolvente ao abrigo do disposto no art. 1499, do CIRE, e nos termos decididos na sentença de declaração de insolvência.
Sublinha-se que esta situação é completamente diversa da que é mencionada no excerto do acórdão citado pelos requerentes no requerimento de 01.06.2016 (apesar de se ter tentado pesquisa no site da DGSI, com os elementos fornecidos não foram encontrados resultados), que se refere a quantias entregues após o despacho inicial mas antes de proferido o despacho de encerramento.
Pelo que, indefere-se a pretendida atribuição de quaisquer efeitos retroativos ao despacho inicial supra referido.»
É deste despacho que vem interposto recurso.
Os recorrentes concluem as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1. O despacho inicial de exoneração do passivo restante proferido, na parte em que consigna que (...) tendo apenas nesta data sido proferido o despacho inicial não é viável considerar como cessão de rendimento as quantias que foram objeto de apreensão para a massa insolvente (...), não se pode manter.
II. Não podem os Recorrentes aceitar a posição emanada no despacho recorrido, porquanto, não obstante decorra da lei que o período de cessão apenas tem o seu início em momento posterior ao encerramento do processo, igualmente terá de ser verdade que uma vez iniciadas, pelos Insolventes, as obrigações decorrentes do despacho inicial de exoneração do passivo restante, mormente a obrigação de entrega do rendimento disponível, tal situação deverá merecer tutela jurídica.
III. Caso tal não ocorra corre-se o risco de o período de cessão se prolongar para prazo muito superior aos 5 anos legalmente previstos, facto que muito certamente não foi o pretendido pelo legislador, atentas inclusive as sucessivas alterações legislativas no sentido de agilizar o início do período de cessão.
IV. Os credores em nada ficam prejudicados com o facto de os Recorrentes terem iniciado a sua cessão de rendimentos antecipadamente ao encerramento do processo, pelo contrário, os credores com tal antecipação recebem adiantadamente o valor cedido, estando, desta forma antecipados e acautelados os prejuízos sofridos com a declaração de insolvência dos Recorrentes.
V. Os Recorrentes, já desde Janeiro de 2011 se encontram a entregar parte do seu rendimento.
VI. Não pode ser imputado aos Recorrentes o ónus de o Tribunal a quo ter demorado anos a proferir o despacho inicial de exoneração, deixando os Insolventes numa situação de incerteza quanto à cessão do rendimento.
VII. O lapso de tempo que o Tribunal a quo demorou a proferir o despacho inicial de exoneração foi demasiado longo e não pode tal facto, que é absolutamente estranho aos insolventes porque não depende de si, ser-lhes imputado de forma negativa, ao não se fazer retroagir à data da primeira apreensão o início do período de cessão.
VIII. Tal situação é injusta e viola a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 20, n.º 4, que determina que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
IX. Nos presentes autos tal não aconteceu, pois o despacho inicial de exoneração não foi proferido em tempo útil não acautelando os direitos e interesses dos Insolventes/Recorrentes, fazendo com que os Insolventes estejam já desde Janeiro de 2011- há pelo menos seis anos e meio - a ceder parte do seu rendimento, tendo apenas em Junho de 2017 sido proferido despacho inicial de exoneração.
X. A situação dos presentes autos merece tutela jurídica, devendo os efeitos da prolação do despacho inicial retroagir à data em que os Insolventes procederam à entrega do primeiro rendimento por si auferido, pois julgamos que atento o decurso do tempo já decorrido, não lhes poderá ser exigido que, por factos a que são alheios, permaneçam em situação de insolvência e em período de cessão por mais de 5 anos, facto que a acontecer desvirtua, por completo, a intenção do legislação ao conceder aos Insolventes a possibilidade de se reabilitarem financeiramente após um determinado período de tempo - 5 anos - o que julgamos que no caso em apreço já se verificou.
XI. Neste mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 547/10.OTJPRT.P1, em 4.09.2015, tendo determinado o seguinte:
Pese embora, o nosso convencimento não ter como fundamento a análise de ser necessário ou não o ato formal de encerramento do processo para o início do período da cessão e então só com a prolação do despacho de encerramento é que se inicia, jurídica e materialmente, a cedência do rendimento disponível do devedor que for fixado no despacho liminar, ou de que o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode ocorrer independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial. Apesar de ser claro que, em ambos os casos, o período de cessão nunca poderá exceder os 5 anos fixados na lei..
XII. Continua o referido aresto da seguinte forma:
Como se mostra assente nos autos o insolvente iniciou as entregas de cessão de rendimento disponível ao fiduciário antes de ser proferido o despacho a declarar encerrado o processo de insolvência. A questão que se coloca é se por via disso, terá o mesmo de continuar a fazer entregas até perfazer 5 anos após aquele despacho. Discorda o apelante que assim seja e discordamos nós. Efetivamente, o art. 2392, n9 2 estabelece que o período da cessão é, imediatamente, subsequente ao encerramento do processo de insolvência, mas a razão para tal, vem prevista na aI. e) do n9 1 do arte 230, que impõe ao juiz que declare o encerramento do processo de insolvência, quando tal encerramento não haja ainda sido declarado, no despacho inicial de exoneração do passivo restante a que se refere a al. b) do art. 2379 todos do CIRE. No entanto, não prevê a lei, qualquer ilegalidade caso não seja, simultaneamente, proferidos o despacho inicial de exoneração do passivo restante e de encerramento do processo de insolvência e, de imediato, o insolvente comece a ceder ao fiduciário o rendimento disponível de acordo com que foi decidido naquele despacho. Tanto é assim que tal pode ocorrer, como na situação em apreço. (...) Acrescendo que, entendemos que, por interpretação extensiva do disposto no artº 239º, nº 2 do CIRE, o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial..
XIII. De igual modo decidiu já o Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 1087/09.6TJPRT¬G.P1, tendo determinado o seguinte: 1- Não prevê a lei, nem em concreto o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, qualquer ilegalidade caso não sejam, simultaneamente, proferidos o despacho inicial de exoneração do passivo restante e de encerramento do processo de insolvência e, de imediato, o insolvente comece a ceder ao fiduciário o rendimento disponível de acordo com o que foi decidido naquele despacho. II - Por interpretação extensiva do disposto no art.º 239.º, n.º 2 do CIRE, o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial..
XIV. Nesta conformidade, e face ao exposto, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine que o período de cessão teve o seu início em data coincidente com a primeira entrega de rendimento por parte dos Recorrentes, devendo ser proferido despacho de exoneração do passivo restante porquanto não se encontram preenchidos nem tão pouco foram invocados no decurso do processo, os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, do artigo 243.º do CIRE, que poderiam fundamentar uma eventual recusa.
XV. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 239.º, n.º 1 e 2, do CIRE. Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve o despacho de que se recorre ser substituído por outro que determine que o período de cessão teve o seu início em janeiro de 2011, devendo ser proferido despacho de exoneração do passivo restante porquanto não se encontram preenchidos nem tão pouco foram invocados no decurso do processo, os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, do artigo 243.º do CIRE, que poderiam fundamentar uma eventual recusa.»
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
OBJETO DO RECURSO
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se, tendo o tribunal proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante cerca de 7 anos após ele ter sido requerido com a petição inicial, e estando os insolventes a ceder a parte do seu
rendimento além de € 700 desde 2011, se não deve ser desde já considerado ultrapassado o período de cessão do rendimento disponível.
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes são os que constam do relatório.
III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A exoneração do passivo restante é uma inovação do CIRE (DL 53/2004, de 18 de março) que corporiza o expresso objetivo de conjugação do princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, permitindo-lhes a sua reabilitação económica.
Como se lê no n.9 45 do preâmbulo, «O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da 'exoneração do passivo restante'».
No instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor (recuperação da sua liberdade económica, produtividade, bem-estar), desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor (Ana Filipa Conceição, «Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas», in 1 Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, pp. 29-62 (48 e passim)).
A exoneração do passivo restante não é necessária e absolutamente incompatível com o interesse dos credores. Como bem nota Paulo Mota Pinto, enquanto o devedor não estiver exonerado, o seu acesso ao crédito está limitado, pelo que os credores terão «interesse em que o devedor peça uma exoneração do passivo restante, caso não lhe seja possível pagar, até para voltar a ter incentivo para o exercício de uma atividade profissional, e para poder voltar a recorrer ao crédito» (Paulo Mota Pinto, «Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade», in 111 Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pp. 175-195 (179)). Deste modo, incentiva-se a inclusão socioeconómica do devedor e propicia-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia.
A recuperação da liberdade económica do devedor é conseguida pelo decurso de dado período (cinco anos). Durante este, porém, o devedor terá de se empenhar ativamente na obtenção de rendimento e terá de contribuir para a satisfação dos seus credores. Essa contribuição não é feita à custa de todo o seu rendimento. O CIRE permite-lhe reter parte dele, nomeadamente o necessário à sua existência com um mínimo de dignidade. A razão da exclusão de certos rendimentos, di-lo Carvalho Fernandes, «radica na chamada função interna do património - base ou suporte da vida do seu titular - e na sua prevalência sobre a função externa - garantia geral dos credores» (Luís A. Carvalho Fernandes, «A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito português», in Colectânea de Estudos sobre Insolvência, Quid Juris, 2009, pp. 275-309 (295)). Essa prevalência apenas existe dentro de apertados limites, devemos acrescentar, balizada pelos critérios das alíneas do n.2 3 do art. 239 do CIRE. De resto, e à semelhança do que dissemos para a exoneração do passivo restante, também o facto de ser garantido ao devedor um reduto de rendimento que não será disponibilizado ao fiduciário (durante o período de cessão) não deverá ser entendido como antagónico ao direito do credor. Esse reduto permite ao devedor manter o ânimo necessário ao desenvolvimento de uma atividade produtiva.
O instituto está previsto e regulado nos arts. 235 a 248 do CIRE, para devedores singulares em relação a dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência nem nos cinco anos subsequentes ao seu encerramento (art. 235 do CIRE).
Nos termos do disposto no art. 238 do CIRE, o pedido de exoneração será liminarmente indeferido se se verificar algumas das circunstâncias elencadas nas alíneas do seu n.° 1. Como é jurisprudência pacífica (v.g., Ac. STJ de 21/01/2014, proc. 497/13.9TBSTR-E.E1.S1, Ac. TRL de 12/12/2013, proc. 1367/13.6TJLSB-C.L1-6, Ac. TRL de 03/10/2013, proc. 147/13.3TBLNH-A.L1-2, Ac. TRC de 16/04/2013, proc. 2488/11.5TBFIG-J.C1, e Ac. TRL de 24/04/2012, proc. 14725/11.1T2SNT-C.L1-7), e ao encontro da melhor leitura da norma, não tem o insolvente de demonstrar a não verificação dos requisitos negativos ali listados.
A ocorrência de alguma das circunstâncias descritas nessas alíneas constitui facto impeditivo ou extintivo do direito do insolvente, pelo que o respetivo ónus de prova impenderá sobre os credores ou o administrador (art. 342, n.° 2, do CC).
No caso sub judice, o tribunal a quo deu por verificados esses requisitos, que não são, portanto, objeto deste recurso, pelo que sobre eles nada mais diremos.
Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, o qual determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (o designado período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido para ulterior satisfação dos credores - art. 239, n.°s 1 e 2, do CIRE.
Nos termos do n.2 3 do art. 239 do CIRE, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
No caso dos autos, e em correspondência com a norma acima transcrita, foi entendido em 1.ª instância que, para ambos os insolventes, o valor de duas vezes e meia o salário mínimo nacional mensal é razoavelmente suficiente para o sustento minimamente digno daqueles. Os recorrentes não puseram em causa esta parte do despacho. Discordam apenas do facto de, estando a ceder rendimento há cerca de seis anos, não se considerar desde já definitivamente concedida a exoneração, pois não lhes é imputável que o tribunal tenha levado sete anos a para encerrar o processo.
Quid juris?
0 art. 230 do CIRE diz-nos quando se encerra o processo, caso este prossiga após a declaração de insolvência. Apresenta várias hipóteses, entre elas, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento, quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º (ai. e) do n.º 1 do art. 230).
Portanto, o mais tardar no despacho inicial do incidente de exoneração, o juiz declara o encerramento do processo.
0 despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante (o mesmo despacho em que deve ser declarado o encerramento do processo) deve ser proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos dez dias subsequentes (art. 239, n.º 1, do CIRE). Tal assembleia, no caso dos autos, teve lugar em 13/12/2010. No entanto, o tribunal a quo, apenas veio a proferir o despacho inicial do incidente de exoneração e a declaração de encerramento do processo cerca de seis anos decorridos, em 2017. E desde 2011 a 2017, foi sendo apreendida parte dos rendimentos dos insolventes.
Ou seja, o tribunal devia ter proferido o despacho inicial da exoneração na assembleia de apreciação do relatório que teve lugar em 13/12/2010, e devia, nesse mesmo despacho, ter encerrado o processo e não o fez. Vem a fazê-lo quase sete anos depois, sendo que desde 2011, os insolventes deram parte do seu rendimento, no que excedeu € 700 por mês, como lhes foi determinado.
Pode ser-lhes agora imposto que continuem a ceder rendimento por mais cinco anos, como decidiu o juiz a quo?
Ou deve, como pretendem, ser considerado findo o período de cessão uma vez que, de facto, cederam rendimento durante cinco anos (até mais)?
Foi determinado aos insolventes que cedessem os seus rendimentos no que excedesse € 700, o que fazem desde 2011. Afirma o tribunal a quo que tal cessão foi feita ao abrigo do art. 149 do CIRE, pretendendo que a partir de agora tenham mais cinco anos de cessão de rendimentos ao abrigo do art. 239 do mesmo código. Não podemos concordar.
Na economia do CIRE, a cessão de rendimentos tem lugar apenas nos termos do art. 239, não podendo o disposto no art. 149 ser aproveitado para alargar o tempo máximo de cessão que a lei permite. Tempo já de si bastante longo, como tem sido notado, entre outros, por Ana Filipa Conceição: «Como afirmámos, num modelo de fresh start, o devedor estará consciente da perda dos seus bens, que serão liquidados, pelo que não se compreende a sujeição a um longo período de cessão, que poucos ou nenhuns resultados trará aos credores» («A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores sobre exoneração do passivo restante - breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular», Julgar Online, 14/06/2016, p. 15).
O art. 149 do CIRE estabelece que, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente. A letra da norma remete-nos para uma apreensão material de coisas. «Procura-se impedir o devedor de praticar atos que conduzam à diminuição do ativo ou ao aumento do passivo, defendendo-se assim o património do insolvente, com vista a garantir o direito dos credores ao ressarcimento dos seus créditos» (Luís M. Martins, Processo de Insolvência, 4.0 ed., Almedina, 2016, p. 404). E continua mais adiante: «Entendemos que o salário ou outro tipo de remuneração laborai não podem ser apreendidos para a massa insolvente pois contrariamente ao processo executivo onde o devedor está tutelado pelo princípio da suficiência dos bens executados, tal princípio não existe no processo de insolvência». Subscrevemos. Remetemos melhor fundamentação para o texto do Acórdão do TRP de 05/03/2013, proc. 654/12.5TBESP-D.P1 (Rui Moreira), assim sumariado: «Num processo de insolvência de pessoa singular, depois de decretada a insolvência, não está sujeito a apreensão para a massa insolvente o valor do vencimento ou de qualquer outra remuneração laborai do insolvente, até ao encerramento do processo, ocorrendo este com a realização do rateio ou, havendo recurso do despacho inicial que determina a cessão do rendimento disponível, com o trânsito em julgado da respectiva decisão».
No caso dos autos não foi esse o entendimento do tribunal a quo que, durante mais de cinco anos sujeitou os insolventes à apreensão dos seus rendimentos no que excedeu € 700 mensais. Não está em causa que isso foi feito nem tal decisão é objeto de recurso. Objeto deste é que, tendo-se assim procedido, ainda se possa sujeitar os insolventes a mais cinco anos de cessão de rendimentos. Tal não nos parece possível por todas as razões expostas.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido na parte em que indeferiu o termo do período de cessão e declarando findo o aludido período.
Custas pelos recorridos (sem prejuízo de não deverem taxa de justiça).
Lisboa, 07/11/2017
Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira
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