Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Cível
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 - ACRL de 02-11-2017   Art.º 171.º, n.º 1, do cire. Dispensa de liquidação. Iniciativa processual.
Dispõe o art.o 171.o, n.o 1, do CIRE, que ‘’Se o devedor for uma pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação,”
Este regime encontra justificação na interseção de três vetores: economia processual, celeridade e tutela mínima do devedor, com igual salvaguarda dos interesses dos credores.
Embora caiba ao juiz a última palavra na decisão sobre a aludida dispensa de liquidação, ela está subordinada à iniciativa processual do administrador de Insolvência, a quem cabe solicitá-la, com o acordo prévio do devedor.
Tendo o juiz autorizado, no processo de Insolvência, na sequência de requerimento nesse sentido apresentado pelos insolventes, a dispensa de liquidação de duas quotas sociais tituladas pelos insolventes e fixado prazo para que estes entregassem o respetivo valor ao administrador de insolvência, sem atentar que essas quotas já haviam sido liquidadas três meses antes, do que o administrador de insolvência havia dado conhecimento no apenso de liquidação, deve o juiz, após o administrador de insolvência, notificado do despacho de dispensa da liquidação das quotas, ter chamado a atenção para a anteriormente comunicada liquidação das quotas, e cumprido o direito ao contraditório pelos insolventes, reformar o aludido despacho, dando-o sem efeito.
Proc. 17451/15.9T8SNT-D.L1 2ª Secção
Desembargadores:  Jorge Leal - Ondina Alves - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Proc. n.° 17451/15.9T8SNT-D.L1
Sumário (art.° 663.° n.° 7 do CPC)
1. Dispõe o art.° 171.°, n.° 1, do CIRE, que Se o devedor for uma pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.
II. Este regime encontra justificação na interseção de três vetores: economia processual, celeridade e tutela mínima do devedor, com igual salvaguarda dos interesses dos credores.
III. Embora caiba ao juiz a última palavra na decisão sobre a aludida dispensa de liquidação, ela está subordinada à iniciativa processual do administrador de insolvência, a quem cabe solicitá-la, com o acordo prévio do devedor.
IV. Tendo o juiz autorizado, no processo de insolvência, na sequência de requerimento nesse sentido apresentado pelos insolventes, a dispensa de liquidação de duas quotas sociais tituladas pelos insolventes e fixado prazo para que estes entregassem o respetivo valor ao administrador de insolvência, sem atentar que essas quotas já haviam sido liquidadas três meses antes, do que o administrador de insolvência havia dado conhecimento no apenso de liquidação, deve o juiz, após o administrador de insolvência, notificado do despacho de dispensa da liquidação das quotas, ter chamado a atenção para a anteriormente comunicada liquidação das quotas, e cumprido o direito ao contraditório pelos insolventes, reformar o aludido despacho, dando-o sem efeito.
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
1. Em 28.7.2015, em processo pendente perante o Juiz 4 do Juízo de Comércio de Sintra, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi declarada a insolvência de V... e de M....
2. Em 16.9.2015 realizou-se assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art.° 156.° do CIRE, tendo sido proferido despacho determinando que o processo prosseguisse para a fase de liquidação e admitido
(liminarmente) o requerimento de concessão do benefício de exoneração do passivo restante.
3. Foram apreendidas, como bens integrantes da massa insolvente, as quotas tituladas por cada um dos insolventes na sociedade por quotas Célebre Geração Lda, no valor, cada uma, de € 1 250,00, ficando as apreensões registadas mediante as menções Dep 14/2016-01-20 09:51:16 UTC e Dep 15/2016-01-20 10:20:49 UTC.
4. Em 26.01.2016 os insolventes requereram, no processo de insolvência, que, atendendo ao diminuto valor da quota da empresa Célebre Geração Lda, (2500,00€), versus a possibilidade dos insolventes prestarem o seu trabalho nesta empresa e, afetarem os rendimentos que dela provenham quer à ajuda do seu sustento quer ao pagamento aos credores, não seja esta quota alienada.
5. Em 12.02.2016 foi proferido o seguinte despacho:
Configurando o requerimento apresentado pretensão de dispensa de liquidação ao abrigo do disposto no art. 1710, do CIRE, antes de mais, notifiquem-se os insolventes para, no prazo de 10 dias, indicarem o valor que pretendem entregar à massa insolvente como contrapartida.
6. Em 10.4.2016 os insolventes informaram que pretendiam, conjuntamente, entregar à massa insolvente a quantia de € 2700,00, e ainda que pretendiam ir fazendo entregas à massa insolvente, de todos os valores de lucro que se retirassem da empresa, superiores ao salário mínimo nacional, salvaguardando para os insolventes um montante igual ao salário mínimo nacional.
7. Em 01.6.2016 foi proferido novo despacho, com o seguinte teor:
Perante a natureza do mecanismo em causa, a pretensão dos devedores tem de ser traduzida na entrega de um valor fixo para obterem a dispensa da liquidação da quota social que integra o seu património.
Assim sendo, notifiquem-se novamente os devedores para proporem um valor global e único.
Prazo: 10 dias.
Subsequentemente, notifiquem-se os credores e o AI para pronunciarem-se quanto à proposta apresentada.
Prazo: 10 dias.
8. Em 06.6.2016 os insolventes informaram que pretendiam, conjuntamente, entregar à massa insolvente a quantia de € 2 700,00.
9. Em 16.3.2017 foi proferido o seguinte despacho, no processo de insolvência:
Inexiste oposição a que os insolventes entreguem a quantia de C 2.700,00, por forma a que a quota da Célebre Geração, Lda. possa ser dispensada de liquidação.
Assim, no prazo de cinco dias, devem os insolventes proceder à efectiva entrega do valor em causa ao Sr. AI, nos termos e com os efeitos constantes do artigo 171.° do Cire.
Em dez dias, deve o Sr. AI comunicar aos autos se a referida entrega foi efectivada.
Notifique.
10. Em 24.4.2017 o Sr. Administrador de Insolvência veio aos autos de insolvência dizer o seguinte:
P..., administrador de insolvência, nomeado nos autos à margem identificados, notificado do Requerimento apresentado pela Ilustre Mandatária dos insolventes vem sobre o mesmo dizer o seguinte:
A Assembleia de apreciação do Relatório decorreu em Setembro de 2015. Assim, deveria o signatário concluir a liquidação no espaço de um ano.
Os insolventes, através da sua Ilustre mandatária pediram ao signatário que suspendesse Em janeiro de 2016 e na sequência de interpelação dos insolventes o signatário alertou A Ilustre Mandatária dos insolventes dizendo-lhe, assim que o auto de arrolamento entrar terá de fazer um requerimento ao Tribunal requerendo que a quota da sociedade seja dispensada da liquidação, já que eu não posso deixar de a alienar se o Tribunal não decidir de outra forma .
Em 22 de janeiro de 2016 o signatário juntou aos autos o Auto de arrolamento e apreensão e em Fevereiro ordenou a publicação do anúncio de venda de todas as verbas, incluindo as referidas participações sociais, anúncio de que deu conhecimento a todos os Mandatários.
É certo que o signatário teve conhecimento do requerimento pelo qual os insolventes pretendiam dispensa de liquidação da quota, mas não só o referido requerimento omitia um aspecto fundamental, o valor que os insolventes estavam dispostos a pagar pela dispensa da liquidação, como também o signatário informou sucessivamente a Ilustre Mandatária que, só suspenderia a liquidação se o Tribunal assim o ordenasse.
Em 20 de Dezembro de 2016 reuniu a Assembleia Geral da referida sociedade tendo a outra sócia da referida sociedade A... proposto a amortização das quotas com a sua consequente extinção e redução do capital social, o signatário entendeu que só aceitaria essa amortização se a mesma fosse feita pelo valor nominal das quotas a amortizar, o que foi aceite pela outra sócia, tendo em consequência sido aprovada a referida amortização.
No dia seguinte, dia 21 de Dezembro de 2016, o signatário informou o Tribunal de que concluiu a liquidação, o que fez mediante requerimento entregue no apenso de liquidação.
E. D.
O Administrador de Insolvência [o negrito consta no requerimento].
11. Em 26.4.2017 os insolventes exerceram o seu contraditório em relação ao requerimento de resposta do Sr. Administrador de Insolvência, requerendo que, pelos motivos aí invocados, se anulasse a amortização da quota que fora efetuada.
12. Em 02.5.2017 foi proferido o seguinte despacho:
Os insolventes manifestam-se contra a amortização de quota respeitante à sociedade Célebre Geração, Lda., cuja apreensão configurou a verba 6. a do Auto de Arrolamento e Apreensão, do apenso B. (vide requerimentos de 10/4/2017 e 26/4/2017, com as ref.as 9600220 e 9714674).
O Sr. AI apresentou a respectiva resposta, a 24/4/2017 (ref ° 9699892). Cumpre decidir.
No âmbito das funções que lhe foram judicial e legalmente confiadas, o Sr. AI procedeu à liquidação do activo, procedendo, por tal via, à amortização da referida quota societária, no mês de Dezembro de 2016 (ref.a 9432827).
Por sua vez, a dispensa de liquidação pressupõe, nomeadamente, a expressa solicitação do AI e o concludente despacho judicial, através do qual é também fixado o valor a pagar (artigo 171.° do Cire).
Ora, no momento em que se procedeu à amortização da quota, o Sr. AI não tinha solicitado que fosse dispensada a sua liquidação, nem tal dispensa fora judicialmente deferida.
Pelo exposto, mantenho a amortização da quota da Célebre Geração, Lda., efectuada no mês de Dezembro de 2016 (ref.a 9432827).
Em consequência, e dado que a 16/03/2017 a quota em causa já se encontrava amortizada, dou sem efeito o despacho que proferi na referida data. Notifique.
13. Os insolventes apelaram deste despacho, tendo apresentado alegações, em que formularam as seguintes conclusões:
1. V... e M..., Insolventes e aqui Recorrentes melhor identificados nos autos à margem identificados, notificados do douto despacho de fls(....) notificado com data de 29.05.2017, e não se conformando com o mesmo interpõem Recurso de Apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.
II. Entendem os Recorrentes que o douto despacho exarado pelo Sr Juiz a quo, deveria ter sido tomado em sentido diverso àquele que foi proferido.
III. Os Recorrentes discordam da apreciação dos factos feita pelo Douto Tribunal.
IV. Os Recorrentes em Dezembro de 2015 solicitaram ao AI informacão para os valores necessários a se proceder à dispensa, de liquidacão de uma quota que detém na empresa Célebre Geração Lda.
V. Conforme se pode observar em alguns dos emails trocados com o sr AI desde Dezembro de 2015, ao invés de efetuar o requerimento para a dispensa da liquidação da referida quota. o Sr Al. encarregou o devedor de ser ele a formalizar o pedido. Tendo enviado um email datado de 11 de Janeiro de 2016 com o seguinte teor:
VI. Adm. Insolvência: Nesse caso e assim que o auto de arrolamento entrar terá de fazer um requerimento ao Tribunal requerendo que a quota da sociedade seja dispensada da liquidação, já que eu não posso deixar de a alienar se o Tribunal não decidir de outra forma
VII. Ou seja, dado o estatuído no artigo 171° n°2 do CIRE, este aceitou e delegou à parte efetuar o requerimento. O que foi efetuado e o mesmo notificado daquele.
VIII. O senhor juiz recebido o requerimento, questionou por duas vezes os Insolventes, sobre o valor a entregar, não tendo rejeitado tal requerimento.
IX. Finalmente o senhor juiz decidiu que fosse entregue ao AI o valor referido, devendo este confirmar nos autos ter recebido o referido montante.
X. Foi pedido pelos aqui Recorrentes ao AI, o IBAN para efetuar o depósito. O que este entregou.
XI. Foi o depósito efetuado dentro do prazo na conta cujo IBAN o Sr. AI informou.
XII. No entanto, após terem sido feitas todas estas démarches., o sr AI veio dizer que por lapso se tinha esquecido da dispensa de liquidação requerida bem como só naquele momento via citius a constatou e já tinha transacionado a quota em Dezembro de 2016.
XIII. Não se compreende que com mais do que um requerimento que os Insolventes efetuaram no processo e não obstante os emails enviados ao sr AI desde Dezembro de 2015, bem como com a resposta deste naquela altura, tendo digamos que encarregue os insolventes de efetuar o pedido ao tribunal, este se tenha esquecido da dispensa de liquidação.
XIV. O AI agiu a nosso entender, de forma marcadamente parcial.
XV. Os credores foram notificados da pretensão da dispensa de liquidação e, nenhum se opôs bem como o Tribunal não apresentou qualquer inconveniente à dispensa de liquidação tendo sido mandado por este que se efetuasse o depósito da quantia aceite.
XVI. Por despacho datado de 1 de Junho de 2016 foram dados 10 dias aos credores e ao AI para se pronunciarem quanto à proposta apresentada e nenhum destes manifestaram qualquer oposição.
XVII. É completamente despiciendo que o sr AI venha agora invocar um lapso quando foi mais que uma vez notificado da pretensão da dispensa de liquidação, quer pelos insolventes. quer pela Sr Juiz (vd Despacho de 1.06.2016).
XVIII. Isto é bem característico da má-fé nas relações entre sujeitos processuais e não poderá ser desconsiderado.
XIX. Perante requerimentos, despachos do tribunal, desde Dezembro de 2015 até ao primeiro semestre de 2017, é uma desculpa muito incoerente e sem qualquer credibilidade o AI alegar posteriormente que não reparou nestes procedimentos todos.
XX. As decisões judicias não se podem quedar com falta de reparos ou melhor com grande falta de transparência e tratamento encapotado.
XXI. Por pertinente repare-se que o valor entregue pelos Recorrentes ao AI, -2700,00 euros-foi superior ao que aquele terá recebido pela cedência da quota. Demonstrativo de que a parcialidade do AI acaba mesmo por prejudicar os credores pois o valor que recebeu foi menor.
XXII. Certo é que a dispensa de liquidação efetuada ao tribunal foi concertada entre AI e devedor e o requerimento foi efetuado por estes por delegação do AI que disse ter que ser o tribunal a autorizar.
XXIII. Certo é que o tribunal entendeu, aceitou e não se opôs. Durante um ano e cerca de três meses assim foi.
XXIV. Quando os Insolventes fazem chegar aos autos requerimento em que denunciam o que se passou, o AI vem alegar no processo que por lapso não viu o requerimento daqueles, tendo amortizado a quota em Dezembro de 2016.
XXV. Perante isto o senhor Juiz proferiu uma decisão por despacho de 29.05.2017 com a qual discordamos em absoluto.
Ora.
XXVI. No despacho referido, o ar Juiz refere que e passamos a citar.
..a dispensa de liquidação pressupõe, nomeadamente, a expressa solicitação do AI e o concludente despacho judicial, através do qual é também fixado o valor a pagar... .
Pois bem.
XXVII. O que o sr. Juiz olvida é que tal fase já tinha sido ultrapassada pois o requerimento dos insolventes mereceu resposta do tribunal a questionar e confirmar o valor, depois houve aceitação de todo o processado até ali e finalmente, houve um despacho do sr Juiz a declarar o prazo para os Insolventes fazerem o pagamento ao AI. E tal foi cumprido.
XXVIII. Até o próprio Administrador de Insolvência veio indicar o IBAN para receber o dinheiro que efetivamente foi depositado.
XXIX. Então a ser assim deveria logo o sr Juiz a quo ter determinado a invalidado do requerimento dos Insolventes. O que não fez.
XXX. Pelo contrário, até mandou notificar o sr AI, sem que fosse feita qualquer, referência à não aceitação do Requerimento.
XXXI. Entretanto, após esta situação, após o sr Juiz ter ficado a ter conhecimento de que a quota já se encontrava amortizada desde Dezembro de 2016, veio a proferir novo despacho onde diz que, e passamos a citar,
...dado que a 16/03/2017 a quota em causa já se encontrava amortizada, dou sem efeito o despacho que proferi na referida data.
XXXII. Ou seja, o Sr Juiz a quo decide dar sem efeito um despacho proferida e transitado em julgado.
XXXIII. Esquecendo-se, salvo melhor entendimento, que o seu poder jurisdicional esgotou-se para tal.
XXXIV. O principio da extinção do poder jurisdicional, consagrado no art. 666° do Cód. do Proc. Civil (613° NCPC), significa que o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, por adquirir a convicção que errou. Com efeito, o art. 666, n° 1 do Cód. do Proc. Civil (613° NCPC), aplicável aos despachos por efeito da remissão do seu n° 3, estatui que «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa.
O principio da imodificabilidade da decisão, ou da sua irrevogabilidade, consagrado no art. 666°.n.o 1 e 3, do C PC (613° NCPC) implica, pois, o esgotamento do poder jurisdicional sobre a questão apreciada, obstando a que, fora das condições expressamente previstas na lei, o juiz a altere. Proferido despacho a admitir a produção de prova nos termos preditos, não pode por isso o juiz ulteriormente sobrestar em tal despacho, denegando a perícia, com fundamento, declarado ex novo, na falta de pertinência da diligência
In Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, 11/1.OTBCBR-A.C1 de 01-07-2014.
XXXV. Quer isto dizer - por decorrência -, face à imperatividade do disposto no n°1 do art. 666º do CPC (613° NCPC), segundo o qual «proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causar, extensível aos despachos nos termos do seu n.° 3, a decisão jurisdicional só pode ser alterada ou substituída, para além da via do recurso, pelas excepções a tal princípio expressamente consagradas nos arts. 667.° (rectificação de erros materiais) (614° NCPC), 669.° (esclarecimento e reforma) (616° NCPC) do mesmo diploma legal (Ac. RL, de 27.6.2000: BMJ, 498.0-266).
XXXVI. Dispensando-nos de tecer mais considerações, solicitamos assim que V. Exas. atendendo à prova feita acerca da dispensa de liquidação da quota onde o AI remete para os Insolventes a elaboração do Requerimento ao tribunal tendo expressamente mencionado que apenas carece de uma aceitação do tribunal,
XXXVII. Acrescendo a facto do Sr Juiz a quo tel. aceite todos os Requerimentos efetuados e ter proferido decisão por despacho transitado em julgado, bem como atendendo a que o depósito do valor foi efetuado pelos insolventes na conta indicada pelo AI, no prazo estabelecido pelo tribunal,
XXXVIII. Deverão V. Exas. Mui Venerandos Desembargadores, considerar a dispensa de liquidação da quota da empresa Célebre Geração Lda, devendo consequentemente, ser anulado a negócio efetuado pelo Sr. Administrador de Insolvência.
XXXIX. A assim não ser, o que não se concebe, deverão V. Exas. ordenar que o AI devolva o valor depositado na conta bancária cujo IBAN foi indicado por ele.
Os apelantes terminaram pedindo que o despacho recorrido fosse anulado e consequentemente se ordenasse a anulação da cedência de quota efetuada pelo Administrador de Insolvência, mantendo-se o depósito efetuado nos autos pelos Insolventes com a consequente dispensa de liquidação da quota, em conformidade ao peticionado.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: violação de caso julgado; anulação da liquidação das quotas sociais apreendidas.
Apreciaremos as duas conjuntamente.
A matéria de facto a tomar em consideração é a que consta no Relatório supra e ainda a seguinte:
14. Entre 16.12.2015 e 15.02.2016 ocorreu, entre a mandatária dos insolventes (Mandatária) e o Sr. Administrador de Insolvência (AI), a seguinte troca de e-mails:
16.12.2015
Mandatária:
Exmo Senhor Administrador de Insolvência Dr. P…,
Logo que possível solicito que me possa informar de qual o estado do pl-ocesso/análise sobre os bens e a empresa Célebre Geração Lda
C/meus melhores cumprimentos.
16.12.2015
AI:
Exma. Sra. Dra. M…,
-Demos fazer uma avaliação da quota.
Com os melhores cumprimentos,
17.01.2016
• Mandatária,:
Exmo. Senhor Dr. P…,
Agradeço toda a atenção sempre dada.
Solicito que me informe quando o auto estiver pronto para eu poder efetuar o pedido.
C/meus melhores cumprimentos.
11.01.2016
AI:
Exma. Sra. Dra.
Nesse caso e assim que o auto de arrolamento entrar terá de fazer um requerimento ao Tribunal requerendo que a quota da sociedade seja dispensada da liquidação, já que eu não posso deixar de a alienar se o Tribunal não decidir de outra forma.
Com os melhores cumprimentos,
15.02.2016
Mandatária:
Boa noite Dr P…,
Espero que se encontre bem.
Venho na sequência dos meus emaiis anteriores solicitar que me informe se existe a possibilidade de suspender a alienação da quota da sociedade até decisão do tribunal. Anexo o requerimento que deu entrada na data nele descriminada.
Eu já tinha tentado contactar consigo e também lhe enviei este mesmo requerimento mas, não obtive resposta. Como poderá confirmar eu notifiquei todos os mandatários e, não obtive qualquer resposta de oposição ao solicitado. Já me tem acontecido noutras insolvências situações similares e, sem a oposição dos credores, consegue-se o resultado que aqui pretendo. Atente que se houver proveito do trabalho dos insolventes nesta sociedade, todos os credores ficarão a ganhar mais do que o diminuto valor da alienação que pouco vai adiantar no caso concreto. Portanto, acho que ninguém fica prejudicado e, favorece-se o cumprimento do trabalho por parte dos insolventes cuja idade já não facilita o arranjar trabalho.
Aguardo resposta do tribunal mas, estou preocupada pois, o prazo para apresentação de propostas termina dia 23 deste mês então, liguei para o s/escritório e consegui falar com o Eng° Vitor a quem pedi que lhe deixasse a minha mensagem de preocupação nesta matéria. Pelo que, solicito que me informe da viabilidade de suspender a alienação desta quota até resposta do tribunal.
C/melhores cumprimentos.
15. Em 20.12.2016, pelas 17 horas, no escritório do Sr. administrador de insolvência, reuniu a assembleia geral da sociedade Célebre Geração, Lda, encontrando-se presentes os sócios da sociedade, a saber, A..., titular de uma quota com o valor nominal de € 2 500,00 e, representados pelo Sr. Administrador de Insolvência, que se encontrava presente, os dois sócios ora insolventes (que estavam ausentes).
16. A sócia A… assumiu a presidência dos trabalhos, com a seguinte ordem de trabalhos: Deliberar sobre a amortização das quotas dos sócios V... e M..., em virtude da sua insolvência pessoal, e respetivo valor a atribuir às quotas por efeitos de amortização.
17. A sócia A... propôs que as quotas dos sócios insolventes fossem amortizadas, pelo seu valor nominal de € 2 500,00, sendo € 1 250,00 por cada uma das quotas, extinguindo-se essas quotas e reduzindo-se o capital social, pois, face à declaração de insolvência e apreensão à ordem da Massa Insolvente, essa seria a única forma de permitir à sócia restante, a proponente, a prossecução da atividade da sociedade.
18. O Sr. Administrador de Insolvência aceitou a referida proposta, pelo que foi deliberada por unanimidade dos presentes a amortização das quotas dos sócios insolventes, pelo valor de € 1 250,00 cada quota, ficando consignado na ata da assembleia que o referido valor foi de imediato pago à Massa Insolvente.
19. Em 21.12.2016 o Sr. Administrador de Insolvência apresentou no apenso de liquidação a seguinte informação:
O signatário realizou no passado dia 20 de Dezembro de 2016 a escritura das verbas 2, 4 e 5 apreendidas nos presentes autos, conforme documento 1 que se junta.
Mais informa que foi transmitida e amortizada a quota dos insolventes na sociedade comercial Célebre Geração, Lda, correspondente à verba seis apreendida nos presentes autos, pelo valor de 2.250,00 euros cada quota, vide documento 2 que se junta.
O Direito
Dispõe o art.° 613º nº 1 do CPC que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Este princípio é aplicável aos despachos (nº 3 do art.° 613º). Proferida decisão sobre qualquer questão, em regra o juiz não a pode reapreciar, decidindo ou não de forma diversa. Caberá a um outro grau de jurisdição, por via de recurso, reapreciar a decisão, confirmando-a, alterando-a ou revogando-a. Assim se liberta o juiz, uma vez conhecida a sua decisão, de pressões ou situações que, levando-o a reverter o seu juízo, pusessem em causa a sua independência, imparcialidade e, afinal, o prestígio da justiça.
Porém, também este princípio conhece exceções, justificadas por razões dignas de consideração.
Assim, é lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.° 2 do art.° 613º do CPC).
Especificamente quanto à reforma da decisão, estabelece o nº 2 do art.° 616º que, não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
Havendo lugar a recurso da decisão, a sua reforma será suscitada no seu âmbito, competindo ao juiz apreciá-la no despacho em que se pronuncie sobre a admissibilidade do recurso (n.° 1 do art.° 617º do CPC). Se o juiz reformar a sentença ou o despacho, o despacho de reforma considera-se complemento e parte integrante daqueles, ficando o recurso a ter como objeto a nova decisão.
In casu, após ser notificado do despacho supra referido em 9, proferido em 16.3.2017, no qual o tribunal dispensou a liquidação das identificadas quotas sociais dos insolventes na sociedade Célebre Geração, Lda. e fixou um prazo para os insolventes entregarem o respetivo valor ao Sr. Administrador de Insolvência, o Administrador de Insolvência veio, conforme consta no n.o 10 do Relatório supra, declarar que as aludidas quotas sociais já haviam sido liquidadas três meses antes, conforme o AI havia informado ao tribunal.
A essa declaração os insolventes responderam, exercendo o contraditório.
E o tribunal, confrontado com a circunstância de ter autorizado a dispensa de liquidação de bens apreendidos que já haviam, afinal, sido liquidados três meses antes, conforme informação que constava no processo (cfr. nº 19 da matéria de facto), deu sem efeito tal despacho.
Ou seja, o tribunal a quo procedeu à reforma do aludido despacho.
A situação em apreço cabe plenamente na previsão da alínea b) do nº 2 do art.° 616º do CPC. Efetivamente, aquando da autorização de dispensa da liquidação das quotas constava nos autos (no apenso da liquidação) documento comprovativo de que as mesmas já haviam sido liquidadas - o que necessariamente imporia decisão diversa da proferida.
A decisão em causa padecia, afinal, de ineficácia, por se destinar a atuar numa situação jurídica inexistente (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.0, 3.a edição, Almedina, 2017, páginas 730 e 731).
O AI não recorreu do despacho, limitando-se a apontar a ineficácia da decisão em causa.
E o Sr. Juiz, concedido o direito ao contraditório aos insolventes, constatou tal realidade, reformando a decisão.
Cremos, pois, que não houve violação de caso julgado nem do princípio da extinção do poder jurisdicional, mas uso do mecanismo da reforma da decisão, em termos que não nos merecem censura.
Efetivamente, dispõe o art.° 171º, nº 1, do CIRE, que Se o devedor for uma pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.
Conforme escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2.a edição, 2013, páginas 674 e 675, este regime encontra justificação na interseção de três vetores: economia processual, celeridade e tutela mínima do devedor, com igual salvaguarda dos interesses dos credores.
Embora caiba ao juiz a última palavra na decisão sobre a aludida dispensa de liquidação, ela está subordinada à iniciativa processual do administrador de insolvência, a quem cabe solicitá-la, com o acordo prévio do devedor:2 - A dispensa da liquidação supõe uma solicitação nesse sentido por parte do administrador da insolvência, com o acordo prévio do devedor, ficando a decisão sem efeito se o devedor não fizer entrega da importância fixada pelo juiz no prazo de oito dias.
Paula Costa e Silva (A liquidação da massa insolvente, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 2005, n.° 65, volume III, pág. 742) pergunta-se porque razão não bastará a solicitação do devedor para que seja dispensada a liquidação, desde que, ouvido o administrador de insolvência, este tenha dado o seu acordo prévio, solução essa que estará consagrada no Direito alemão, que inspirou o regime vertido no art.° 171.° do CIRE. Para esta autora a razão poderá estar na incapacidade judiciária do insolvente para apresentar um tal requerimento em tribunal. Dir-se-ia que na sua pureza, o seu estatuto impede-o de praticar pessoalmente actos processuais. Para Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2013, Almedina, pág. 479), a razão não estará na aludida incapacidade judiciária, atenta a norma do n.o 5 do artigo 81.0, que deixa claro que o insolvente mantém plena capacidade para intervir no processo de insolvência. Estará antes provavelmente na necessidade de verificação prévia da plausibilidade da pretensão do devedor por parte do administrador da insolvência.
Quer-nos parecer que, pese embora o n.° 5 do art.° 81º do CIRE conceda ao insolvente o poder de atuar por si na defesa dos seus interesses no processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário, decretada a insolvência, é-lhe restringido o poder de iniciativa, a não ser em casos expressamente admitidos (como o de apresentar proposta de plano de insolvência - cfr. art.° 193.° n.o 1) de molde a não criar obstáculos ao célere andamento do processo, cujo principal órgão dinamizador e concretizador é o administrador de insolvência (art.° 55º), sem prejuízo da fiscalização da eventual comissão de credores (art.° 86º) e do juiz (art.° 58º) e dos poderes da assembleia de credores (art.° 72º e seguintes).
In casu, o administrador de insolvência não requereu ao tribunal a dispensa de liquidação das aludidas quotas sociais. Mas também não se pronunciou em contrário da mesma. Antes, conforme decorre dos e-ma/Is referidos no n.o 14 da matéria de facto, aconselhou os devedores a apresentarem o respetivo requerimento ao tribunal. Mas não deixou de alertar para o facto de que só suspenderia a liquidação, no que concerne às quotas, com decisão nesse sentido por parte do tribunal (cfr. e-mail de 11.01.2016).
Ora, tal decisão judicial nunca foi proferida e em 20.12.2016 o Sr. administrador de insolvência, no uso da sua competência, liquidou as duas quotas, através de amortização das mesmas, pelo seu valor nominal, que foi entregue à Massa Insolvente (n.o 18 da matéria de facto), e disso deu imediato conhecimento aos autos. Assim, arredada ficou a dispensa de liquidação das aludidas quotas sociais.
De resto, decorre do disposto no art.° 163º do CIRE que os atos de liquidação praticados pelo administrador de insolvência são, ainda que praticados em violação de determinadas limitações legais (falta de consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores, para a prática de atos jurídicos que assumam especial relevância para o processo de insolvência - artigos 160º e 161º), mantêm a sua eficácia, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.
Afigura-se-nos, pois, que não há que decretar a anulação da amortização das quotas sociais levada a cabo nos termos supra expostos, devendo manter-se o despacho recorrido.
A questão da devolução aos insolventes da quantia que eventualmente tenha sido por estes entregue ao Sr. administrador de insolvência tendo em vista a pretendida dispensa de liquidação das quotas sociais deverá ser tratada pela primeira instância, sendo certo que se trata de questão nova, não apresentada anteriormente ao tribunal a quo - além de que esta Relação não dispõe de elementos comprovativos desse pagamento.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo dos apelantes, porque nela decaíram (art.° 527.° n.°s 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do disposto no art.° 248.° do CIRE.
Lisboa, 02.11.2017
Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins
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