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 - ACRL de 07-11-2017   Sustento minimamente digno. Filhos menores.
O CIRE não estabelece o que deva entender-se por sustento minimamente digno devedor e do seu agregado familiar, recorrendo a um conceito indeterminado. É todavia, razoável, que o montante equivalente a um salário mínimo nacional constitua o limite mínimo de exclusão.
A integração no agregado familiar da insolvente de dois filhos menores, requer que se atenda ao custo adicional de duas pessoas com gastos necessários à sua sobrevivência, mas não prescinde da consideração de que sobre a mesma não impende suportar em exclusivo estes gastos, que são partilhados em metade pelo seu marido.
Proc. 712/17.0T8PDL-C 7ª Secção
Desembargadores:  Carla Inês Câmara - Higina Castelo - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Processo n° 712/17.0T8PDL- C
-Recurso de Apelação
Recorrente: M....

Sumário:
1. O CIRE não estabelece o que deva entender-se por sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, recorrendo a um conceito indeterminado. É, todavia, razoável, que o montante equivalente a um salário mínimo nacional constitua o limite mínimo de exclusão.
2. A integração no agregado familiar da insolvente de dois filhos menores, requer que se atenda ao custo adicional de duas pessoas com gastos necessários à sua sobrevivência, mas não prescinde da consideração de que sobre a mesma não impende suportar em exclusivo estes gastos, que são partilhados em metade pelo seu marido.

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
A devedora e insolvente M... requereu a exoneração do passivo restante, o qual foi liminarmente admitido, vindo a ser proferida decisão quanto a tal pedido, nos seguintes termos:
«Tendo em conta a situação pessoal da insolvente e do respectivo agregado familiar apurada nos autos - sendo o agregado familiar composto pelo marido da insolvente (que aufere rendimentos próprios da sua profissão) e ainda por dois filhos menores, e correspondendo o valor de € 873,51 a cerca de metade dos gastos mensais do agregado familiar da insolvente, a suportar em partes iguais pela insolvente e pelo seu marido, conforme resulta do relatório do Sr. Administrador junto aos autos, à luz das regras da experiência comum considera-se como indispensável ao sustento minimamente digno da devedora, e respectivo agregado, o montante correspondente a uma vez e meia do valor do salário mínimo regional açoriano, pelo que se fixa como rendimento mensal disponível da insolvente a ceder por esta ao fiduciário, após o encerramento do processo e consequente início do período da cessão, todo aquele que exceder tal valor, nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 239.°doCIRE.»

Não se conformando com a decisão, dela apelou a insolvente, formulando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente não se conforma com a sentença proferida nos termos do disposto no art. 239°, do C.I.R.E., pois se por um lado, o Tribunal a quo admite o pedido de exoneração do passivo restante, por outro lado, nos termos do art. 239°, n.º 3, da mesma base legal, vem fixar ao Insolvente como rendimento disponível mensal o equivalente a um salário mínimo nacional.
2. Não conformado com o valor mensal que foi fixado à Recorrente decidiu o mesmo recorrer daquela sentença.
3. Entende a Recorrente que se encontra isenta do pagamento da taxa de justiça devida pela prática deste ato ao abrigo do disposto no art. 248°, n.2 1, do C.I.R.E ..
4. Por despacho veio o Tribunal a quo decidir pelo deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, e ao abrigo do disposto no art. 238° do C.I.R.E., veio determinar que, «[ ... 1 não se vislumbram igualmente dados para considerar preenchida a circunstancia impeditiva prevista na alinea d) do n° 1 do art. 238º do CIRE, visto que mesmo que a insolvente se tivesse apresentado à insolvência decorridos mais de 6 meses após se encontrar numa situação de insolvência, também não foi alegado por nenhum credor qualquer facto concreto e circunstanciado [... ] .
5. No mesmo despacho, e ao abrigo do disposto no art. 239°, n.º 3, do C.I.R.E., veio ainda determinar o rendimento disponível à Insolvente no montante de uma vez e meia o valor do salário mínimo regional açoriano.
6. Na douta decisão, o Tribunal a quo atendeu « à situação pessoal da insolvente e do respectivo agregado familiar apurada nos autos - sendo o agregado familiar composto pelo marido da insolvente [. ..) e ainda por dois filhos menores, e correspondendo o valor de € 873,51 a cerca de metade dos gastos mensais do agregado familiar da insolvente, a suportar em partes iguais pela insolvente e pelo seu marido [... ]».
7. Considerando ainda para a determinação daquele rendimento os sacrifícios e reajustamentos que o legislador entendeu como mínimo para salvaguardar uma vivência condigna o salário mínimo nacional.
8. Ponderados todos estes factos, concluiu o Tribunal a quo que, [...] considera-se como indispensável ao sustento minimamente digno do devedor, e respectivo agregado, o montante correspondente a uma vez e meia do valor do salário mínimo regional açoriano l...]„
9. A título de cessão de rendimentos disponível entendeu o Tribunal a quo, determinar a título de rendimento disponível da Insolvente, o valor mensal equivalente a um salário e meio regional açoriano.
10. Com relevância para a presente decisão e com base nos elementos que constam dos autos e da matéria confessada, o Tribunal a quo considerou que a Insolvente não pode pretender continuar a usufruir das mesmas condições que mantinha antes de se encontrar em estado de insolvência.
11. Ora, a Recorrente vive com o marido, também ele em situação de insolvência e com dois filhos menores que dependem exclusivamente dos rendimentos dos pais, ambos Insolventes.
12. Pelo Administrador de Insolvência nos termos do relatório elaborado ao abrigo do art. 155°, do C.I.R.E. foram consideras todas as despesas a suportar pela Insolvente, despesas que, claramente se enquadram nas linhas de orientação que o Tribunal a quo entende como essenciais para a fixação do valor do rendimento disponível.
13. Declarada a insolvência da Recorrente, e seguidos os ulteriores termos, apresentou o Administrador de Insolvência o Relatório previsto no art. 155°, do C.I.R.E., que mereceu aprovação pelos credores em sede de assembleia de credores, onde o Administrador de Insolvência justificou as despesas da aqui Recorrente - as quais, salvo melhor opinião, não foram consideradas pelo Tribunal a quo, nomeadamente as despesas relacionadas com a saúde, educação e alimentação dos menores, que são essenciais para a sobrevivência de qualquer pessoa.
14. Ora, se é certo que à Insolvente incumbe tomar os devidos sacrifícios e reajustamentos do seu quotidiano em prol do benefício que lhe é oferecido pela exoneração do passivo restante, é também certo que não podem os menores ficar prejudicados, no seu desenvolvimento pessoal, educacional e profissional apenas pelos seus pais haverem sido declarados insolventes.
15. Assim, e se se entende que o salário mínimo, neste caso regional, corresponde ao valor mensal mínimo necessário ao sustento digno da Insolvente não poderá nunca a aqui Recorrente conformar-se com a atribuição de um salário mínimo e meio para o seu sustento e dos dois filhos menores que tem a seu cargo, não obstante partilhar as despesas com o seu marido, também ele insolvente.
16. A verdade é que meio salário mínimo regional para o sustento e educação de dois menores é escandalosamente insuficiente o que não surge atenuado pelos montantes auferidos pelo marido da Insolvente, também ele nesta condição.
17. Contudo, e não obstante todas as despesas devidamente alegadas e demonstradas o certo é que, ainda assim, o Tribunal a quo decidiu atribuir à aqui Insolvente, a título de rendimento disponível, um salário mínimo e meio regional açoriano.
18. Ora, para efeitos do disposto no art. 239°, n.º 3, alínea b), subalínea i) do C.I.R.E., e artigo 1º da C.R.P., deve considerar-se excluído do rendimento disponível o montante tido por razoável para o sustento minimamente digno da devedora.
19. E para efeitos determinação do rendimento indisponível, na ausência de outro critério legal, deverá ter-se em conta a idade da insolvente, sua situação profissional, estado de saúde, seus rendimentos, menores a seu cargo, e despesas essenciais, nomeadamente habitação, água, luz, saúde, sem esquecer a alimentação e educação dos menores.
20. Contudo, considerando o Relatório junto aos autos pelo Senhor Administrador de Insolvência elaborado nos termos do art. 155º, do C.I.R.E., entende-se que, o valor estimado para efeitos de despesas domésticas, transportes, saúde estimadas não se mostram adequadas à actual situação da aqui Insolvente e seu agregado familiar.
21. Ora, para efeitos de cessão de rendimento disponível, deveria ter sido considerado as necessidades dos dois filhos menores da Recorrente, os quais além de diversos problemas de saúde têm também as necessidades naturais de crianças e adolescentes que devem crescer devidamente integrados na sociedade.
22. O mesmo acontece com as despesas de saúde, pois que atendendo aos problemas de saúde da filha da Recorrente, a mesma exige que se adquiram produtos ortopédicos mensalmente, com vista a suprir a sua deficiência nos membros inferiores, de valor nunca inferior a €65,00 (sessenta e cinco euros) o que, aliás, ficou já devidamente alegado nos autos.
23. Assim, com vista a garantir o sustento minimamente digno da Insolvente e do seu agregado familiar, o valor do rendimento disponível, nunca poderá ser inferior ao valor correspondente a três vezes o salário mínimo nacional, tal como prevê o disposto no art. 239°,n° 3, do C.I.R.E..
24. Certo é que, o art. 239º, n° 3, alínea b), subalínea i) do C.I.R.E., exclui do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno da devedora e respectivo agregado familiar.
25. E a verdade é que no caso em concreto esse sustento mínimo não foi acautelado pelo Tribunal a quo.
26. A ratio legis desta regra (prevista no art. 239°, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E.) conforme decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.06.20 10, proferido no âmbito do Processo n.°536/09.8TBFAF-C.Gl, disponível em www.dgsi.pt.
27. Como se mostra igualmente acolhido, entre outros, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 349/91, de 03.07.1991, proferido no âmbito do Processo n.° 297/89, 2º Secção,Relator:ALVESCORREIA,disponívelemwww.tribunalconstitucional.pt/tc/acordao;
Acórdão nº411/93.de 29.06.1993, proferido no âmbito do Processo n.º 434/91, 2.º Secção, Relator:LuísNUNESDEALMEIDA,disponívelemwww.www.tribunalconstitucional.pt/tc/ acordao e ainda o Acórdão n.º 318/99, de 26.05.1999 no âmbito do Processo n.º 855/98, 1º Secção, Relator: VITOR NUNES DE ALMEIDA, disponível no mesmo sítio da internet.
28. No caso concreto, além do princípio da dignidade humana, o Tribunal a quo violou igualmente o princípio do direito à Família (art. 36°, da Constituição da República Portuguesa),
29. Pois, apesar de ter sido um facto supostamente considerado pelo Tribunal a quo na elaboração desta sentença, certo é que, o Tribunal a quo não acautelou o sustento digno da aqui Recorrente e seu agregado familiar, agora aqui no caso e em concreto considerando as condições de saúde, alimentares e educação do seu agregado familiar.
30. Ou seja, não acautelou o pagamento das despesas relacionadas com os problemas de saúde e educação da Recorrente e filhos menores, a que se encontra obrigado.
31. Tendo o Tribunal a quo, em prol dos interesses dos credores, acautelado o sacrifício financeiro da Insolvente, tendo como limite a vivência minimamente condigna, mas, certamente por lapso, não teve em conta a realidade da vida, no caso em concreto face aos factos provados e confessados nos autos.
32. A verdade é que o Tribunal, ao contrário do que prevê a ratio da exoneração do passivo restante, não assegurou uma sobrevivência digna à Recorrente e respectivo agregado familiar ao fixar-lhe apenas um salário e meio regional como rendimento disponível no período da cessão.
33. Além do mais, considerando a idade dos menores, as despesas de educação com os mesmos serão crescentes, não só ao nível do material escolar mas também às necessidades especiais com vista ao desenvolvimento dos mesmos.
34. Além disso, a Recorrente sempre terá que suportar as despesas domésticas comuns à generalidade dos cidadãos, sem nunca esquecer as despesas com a alimentação e saúde que pesam no orçamento familiar.
35. Então, considerando o valor do salário mínimo regional, pergunta-se como é que, com o valor um salário minino e meio regional açoriano, a Recorrente tem capacidade para manter uma casa de habitação, sustentar-se, suportar todas as suas despesas relacionadas com a sua habitação, despesas com a sua alimentação e saúde e educação dos menores, as quais acrescem em muito o montante das despesas mensais dos mesmos.
36. Claramente que o valor fixado pelo Tribunal a quo é manifestamente insuficiente e, claramente que não garante o mínimo adequado e necessário à sobrevivência condigna da Insolvente e respectivo agregado familiar, porquanto grande parte das suas despesas são realizadas com os menores.
37. E, não se diga que existe outro membro activo a contribuir para o orçamento do agregado familiar, isto é, o marido da Insolvente. A verdade é que também ela foi declarada insolvente, auferindo pouco mais do que o salário mínimo nacional e estando também sujeita ao regime da exoneração do passivo restante.
38. Na verdade o C.I.R.E., com a exoneração do passivo restante veio dar uma segunda oportunidade à Insolvente, mas certamente que o Legislador não pretendeu obrigar a passar fome ou privar-se de educar e acompanhar o desenvolvimento pessoal dos seus filhos menores, os quais não podem ser prejudicados por esta situação de insolvência do seu progenitor.
39. Há que ter em atenção um valor que permita à Insolvente e aos menores viverem com o mínimo de dignidade.
40. E, bem decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 3339/12.9TJLSB D.L1-6.
41. Na fixação do valor do rendimento disponível da Insolvente deve ponderar-se por um lado que se está perante uma situação transitória, durante a qual a Insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante, e por outro lado, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, direito à família e saúde, assegurar as necessidades básicas do agregado familiar da Insolvente.
42. Mas, a verdade é que, no caso em concreto, aquela dignidade não será assegurada apenas com o valor de um salário mínimo e meio regional açoriano.
43. Em toda a jurisprudência se faz notar, aliás em consonância com a jurisprudência constitucional (vide, Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 177/2002, com força obrigatória geral), que o salário mínimo será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna.
44. Além de que pode o Tribunal, ao abrigo do disposto em i) da alínea b) do n.º3 do art. 239° do C.I.R.E ..
45. In casu, o valor do salário mínimo, claramente que não é o suficiente para garantir aquela subsistência digna que é suposto porquanto relativamente às despesas de saúde, educação e alimentação não poderão os membros do agregado familiar da Recorrente tomar mais medidas de contenção e sacrifício.
46. Valor esse que se julga que no caso em apreço deverá ser fixado, no mínimo, em três salários mínimos nacionais.
47. Assim, e com o devido respeito à interpretação do Tribunal a quo, fácil é de concluir que, o valor que foi fixado como o essencial é insuficiente para garantir a sobrevivência digna da Insolvente, aqui Recorrente devendo a sentença aqui recorrida ser revogada e substituída por outra que exclua do rendimento disponível o equivalente a um mínimo de três salários mínimos nacionais, para que a Recorrente consiga suportar todas as despesas essenciais (renda, água, luz, gás, alimentação, saúde, vestuário, educação e transportes) e para que viva, juntamente com o seu agregado familiar, com o mínimo de dignidade face às despesas normais da vida de uma pessoa.
48. Ao decidir conforme a Sentença recorrida violou o Tribunal a quo art. 239°, n.° 3, alínea b), subalínea i) do C.I.R.E., art° 1° ,59°, n.º 2, alínea a) e 63°, nº 1 e 3 e ainda o art. 36°, todos da Constituição da República Portuguesa, no sentido do art. 239° nº 3, alínea b), subalínea i) do C.LR.E., ser interpretado no sentido de ser garantido o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condiga da aqui Recorrente como vem sendo reafirmado em vários Acórdãos do Tribunal Constitucional.
Conclui nos seguintes termos: que seja proferida nova sentença que exclua do rendimento disponível o equivalente a três salários mínimos nacionais, sendo este o valor adequado justo e que permite à aqui recorrente com o mínimo de dignidade.

Não foram se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, é a de aferir qual o rendimento disponível a ser cedido ao fiduciário nomeado: deverá ser o mesmo fixado, como pretende a apelante, no montante que exceda o valor equivalente a 3 (três) salários mínimos nacionais ou manter-se no valor equivalente a 1,5 (um e meio) salários mínimos nacionais, fixados na decisão recorrida.

OS FACTOS
Considerando a decisão posta em crise no recurso em apreço, importa analisar a questão trazida à apreciação deste Tribunal, para o que importa conhecer os elementos fácticos apurados com relevo para a sua aferição e em que se alicerçou a decisão recorrida, os quais se mostram suportados pelo relatório apresentado pelo administrador de insolvência:
1 - O agregado familiar da recorrente é composto pelo marido da insolvente (que aufere rendimentos próprios da sua profissão) e ainda por dois filhos menores.
2 - As despesas do agregado familiar são no valor mensal total de €1.747,02, incluindo-se aqui as despesas com a renda da casa ( € 600), água, luz, gás, telecomunicões € 257,02), transportes ( € 40,00), alimentação ( € 600,00), educação ( € 50,00), saúde, higiéne, vestuário (€ 200,00).
3 - O rendimento da insolvente é de € 600,00 liquidos.

O DIREITO APLICÁVEL
Dispõe o artigo 239.º do CIRE - DL n.º 53/2004, de 18 de Março-, com a epígrafe «Cessão do rendimento disponível» que:
« 1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes.
2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu aqreqado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicilio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do
fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam,
condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão.» (sublinhado nosso).
Daqui resulta que, quando se trate de insolvência de pessoas singulares, caso o insolvente não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condições fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.
Assim, não ocorrendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, como ocorreu na situação em apreço, em que a decisão recorrida expressamente afasta os fundamentos da oposição a tal admissão liminar, o juiz profere despacho inicial, determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, nos termos preceituados no artigo 2412 do CIRE.
No final daquele período é então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante.
Sendo concedida, opera a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida (artigos 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.)
Aqui chegados, permite a lei que o insolvente recomece a sua vida económica liberto do valor do passivo.
«A situação de sobre-endividamento, juridicamente designado por insolvência dos particulares, está na origem da necessidade de proteção das pessoas singulares sobre endividadas por, na maioria dos casos, conduzirem ao incumprimento, ou seja, ao não cumprimento pontual das obrigações financeiras por parte dos devedores.
Naturalmente, a concretização dessa proteção passa pela implementação de opções políticas, legislativas, judiciais e extrajudiciais.
É nessa medida que o Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (GIRE) instituiu medidas especiais de proteção dos devedores pessoas singulares. Uma delas foi a consagração, em 2004, do instituto da exoneração do passivo restante, pelo DL 53/2004 de 18 de Março, previsto e regulado nos arts. 235º a 248º do GIRE. Este mecanismo, que tem por base o princípio do fresh start, visa reintegrar na atividade económica os devedores singulares, concedendo ao devedor a oportunidade de atenuar as responsabilidades assumidas perante os credores, em prol de uma recuperação moral e material da pessoa humana, concretizada através de um processo judicial que tem por base o acreditar no potencial de este se recuperar e voltar a erguer-se.
Todavia, para que tal aconteça, o devedor insolvente fica sujeito ao pagamento das suas dívidas durante um período de cinco anos, posteriores ao encerramento do processo de insolvência, chamado período de cessão. Durante esse período o rendimento disponível do devedor, do qual fazem parte todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (n° 3 do art. 2392), fica adstrito ao pagamento das dívidas, sendo cedido aos seus credores (através do fiduciário). Exclui-se do rendimento a ceder (aos credores) o montante que o juiz entender como sendo o razoável para uma vida condigna do devedor e seu agregado familiar. No final dos cinco anos, se o devedor tiver mantido a conduta que lhe é exigível, pautando-se pelo bom comportamento, poderá ser-lhe concedida a exoneração do passivo restante.
Este mecanismo, da exoneração do passivo restante, permite a recuperação económica e social das pessoas singulares, concedendo-lhes a possibilidade de extinção das suas dívidas que não tenham sido pagas durante os cinco anos, ficando o devedor liberto das dívidas restantes que possuía.»
Vejamos, então, em que medida ocorre a cessão do rendimento disponível, analisando a exclusão àquela cessão objecto do presente recurso: o «que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» - artigo 239º, nº 3, b) do CIRE.
Nos termos do enunciado preceito ressalta ter o legislador fixado um tecto máximo: «não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.»
Tendo este limite máximo e cabendo ponderar o que deva entender-se por razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, importa fazer apelo, para a fixação do montante adequado à luz do caso concreto, ao valor mínimo que se deva considerar como mínimo garantido.
Para tanto, vejamos o que, em sede de penhora e da sua impenhorabilidade dispõe o artigo 738º, n° 3, do CPC, nos termos do qual «A impenhorabilidade prescrita no n° 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais (...) como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.»
O que ressalva como diferença entre o que estabelece o CIRE e o que estabelece o CPC é que, contrariamente ao regime do CPC que estabelece para a impenhorabilidade dos rendimentos do executado, um limite mínimo objectivo indexado ao salário mínimo nacional, já a norma do CIRE não estabelece qualquer limite mínimo objectivo, recorrendo apenas a um conceito indeterminado: O que se considere razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado.
Parece-nos, todavia, razoável, que o montante equivalente a um salário mínimo nacional constitua o limite mínimo de exclusão.
«Como se afirmou no acórdão n° 318/99 e resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizaçães introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador (acórdão n° 318/99).», acórdão este referido no
acórdão do Tribunal Constitucional nº 177/2002, de 23 de Abril, Processo 546/01, Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
«As alíneas i), ii) da norma em apreço (art. 239º/3, b)), decorrem da chamada 'função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular.
A alínea i) refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o que traduz na sua génese uma salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, que se sobrepõe aos direitos de ressarcimento creditório.
Por essa razão, tem-se revelado especialmente delicado saber o que é o sustento minimamente digno, sendo que a jurisprudência tem entendido que tal dependerá sempre de uma ponderação casuística por parte do decisor: Naturalmente que tendo o legislador empregue a expressão do que seja razoavelmente necessário envolverá sempre um juízo e ponderação casuística do juiz relativamente ao montante a fixar.»
Assim, para a questão a decidir, importa apurar o que deve considerar-se como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar que, no caso, é composto pela recorrente, seu marido (que aufere rendimentos próprios da sua profissão) e seus 2 filhos menores, não perdendo de vista que aquela exerce actividade profissional e que tem despesas de saúde, que se mostram contabilizadas naquele referido montante global de despesas do agregado familiar, de acordo com o relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência, que ainda contemplou as despesas coma educação de seus filhos.
De facto, a recorrente tem a seu cargo os seus dois filhos menores, para o sustento dos quais haverá que considerar o contributo, em igual medida, do pai dos mesmos.
As despesas com o agregado familiar consideradas, são as relativas aos encargos com a renda da casa (€ 600), água, luz, gás, telecomunicões (€ 257,02), transportes (€ 40,00), alimentação (€ 600,00), educação (€ 50,00), saúde, higiéne, vestuário ( € 200,00).
Ocorre que este agregado familiar é composto pelo marido da insolvente, que responde em igual medida da recorrente a estes encargos.
Na Região Autónoma dos Açores o valor da retribuição mínima mensal garantida a partir do dia 1 de Janeiro de 2017 é de €584,85.
As despesas do agregado familiar são no valor global de €1.747,02, a serem repartidas pela insolvente e o seu cônjuge, pelo que a cargo daquela estarão € 873,51, quantia esta aquém daquela a que correponde uma vez e meia o salário minimo nacional (€ 877,275).
Este valor permite, pois, acautelar a sobrevivência digna da recorrente e do seu agregado familiar, satisfazendo as necessidades com habitação, alimentação, água, luz, gás, transportes, telecomunicações, educação, saúde, higiene, vestuário, consigo e com os seus filhos menores, na proporção do que lhe cabe participar nas despesas do referido agregado familiar.
Fazendo apelo a critérios de razoabilidade, considerando o valor arbitrado para a cessão de rendimento e as despesas referidas, ressalta que 1,5 salário mínimo é suficiente para o sustento da recorrente e do seu agregado familiar com o mínimo de dignidade.
A integração dos menores no agregado familiar da insolvente não significam que apenas sobre a mesma impenda o seu sustento, pois que terá que partilhá-lo com o progenitor dos mesmos.
De facto, tendo que atender-se ao custo adicional de duas pessoas com gastos necessários à sua sobrevivência, aferida por critérios de normalidade das despesas em que incorrem duas pessoas (alimentação, vestuário, água, luz, gás, habitação) em idade de frequência da escolaridade obrigatória (livros e demais material escolar), não se pode abstrair de que tais despesas não impendem apenas sobre a recorrente.
Ora, apelando-se à escala da OCDE, a «escala de Oxford», para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, temos que o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.
Assim, considerando que o sustento minimamente digno da recorrente é assegurado com o montante de mensal do salário mínimo nacional de € 584,85, e considerando que é de 0,5 o peso de cada menor no aumento das necessidades do agregado familiar, mas que os encargos com os filhos menores não estão em exclusivo a cargo da recorrente, sobre quem impenderá suportar o equivalente a metade, o rendimento mínimo disponível encontrado para a recorrente não pode ser aumentado de 1/2 para cada um dos menores.
Deste modo, deve a decisão recorrida manter-se por ser adequada a quantia definida pela decisão recorrida para o sustento mensal minimamente digno da recorrente e do seu agregado familiar, integrado por si, seu cônjuge - que suportará em partes iguais os gastos mensais do agregado familiar - e 2 filhos menores.
Improcede, consequentemente, a apelação.

DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, em consequência do que se mantém a decisão recorrida.
Custas pela insolvente.

Lisboa, 07.11.2017
(Carla Câmara)
(Higina Castelo)
(José António Capacete)
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