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 - ACRL de 21-11-2017   Procedimento de urgência. Decisão provisória em processo de promoção e proteção.
1 - O procedimento de urgência pressupõe que exista uma situação de emergência em que está em causa um perigo atual e iminente para a vida ou integridade física da criança ou do jovem;
2 - No recurso de decisão provisória proferida em processo de promoção e proteção apenas podem ser avaliados os elementos disponíveis nos autos na data em que esse julgamento não definitivo foi proferido, não podendo, na apreciação do mérito da apelação, ser consideradas as razões de facto aduzidas pelos recorrentes para contrariar os elementos indiciários constantes do processo que determinaram a aplicação da medida urgente que é alvo de crítica, sendo o momento próprio para a avaliação das mesmas a subsequente fase de instrução legalmente prevista.
Proc. 15089/17.5T8LSB-B.L1 1ª Secção
Desembargadores:  Ana Isabel Pessoa - Eurico Reis - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Processo n° 15089/ 17.5T8LSB-B.L 1
Recurso de Apelação
Recorrentes: A... e S... e M...
Recorrido: Ministério Público
Requerida: B...
Menor: R...

Sumário:
1.- O procedimento de urgência pressupõe que exista uma situação de emergência em que está em causa um perigo atual e iminente para a vida ou integridade física da criança ou do jovem;
2.- No recurso de decisão provisória proferida em processo de promoção e proteção apenas podem ser avaliados os elementos disponíveis nos autos na data em que esse julgamento não definitivo foi proferido, não podendo, na apreciação do mérito da apelação, ser consideradas as razões de facto aduzidas pelos recorrentes para contrariar os elementos indiciários constantes do processo que determinaram a aplicação da medida urgente que é alvo de crítica, sendo o momento próprio para a avaliação das mesmas a subsequente fase de instrução legalmente prevista.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no artigo 663°, n° 7, do CPCJ.)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
1. RELATÓRIO:
O Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de Lisboa, requereu nos termos dos artigos 91° e 92, da Lei n.° 147/99 de 1-9, a instauração de procedimento judicial urgente, na sequência de procedimento judicial igualmente urgente decidido na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Lisboa Oriental relativamente ao menor R....
Para tanto, alegou, nomeadamente, que o menor nasceu a 10 de Novembro de 2012, sendo filho de A... e de S... e M..., que os pais do menor residem em Londres, Inglaterra e que o R... vive com a sua avó materna a pedido dos pais, que passaram uma procuração que atribui à avó plenos poderes para representar o neto por tempo indeterminado.
Acrescentou que o R... não mantém contatos pessoais com os pais desde que estes foram residir para Londres, o que sucedeu aos dezoito meses de idade do R..., inexistindo entre a criança e os pais qualquer relação afetiva, que antes de entregarem a criança à avó materna, os progenitores colocaram-na várias vezes em situações de risco, existindo referências no processo da CPCJ que que estes levavam a criança consigo para irem jogar no Bingo, deixando o filho bebé ficar sozinho no carro por longos períodos de tempo enquanto jogavam.
Referiu que existem referências de que a criança era mal alimentada pelos pais nessa altura e que segundo a avó, os pais da criança têm o vício do jogo.
Mais alegou que o R... demonstra necessidades especiais (cfr. relatórios e informações médicas constantes do processo de promoção e proteção), estando neste momento afetado por um problema sério de tuberculose pulmonar multirresistente com acompanhamento médico regular, medicação diária que iniciou em 22 de Junho passado, com perigo de contágio e instabilidade emocional e comportamento/ e que devido à doença se encontrar bastante ativa o menor sem tomar a medicação prescrita pode potencialmente correr perigo de vida assim como poderá contaminar quem com ele contacte diretamente.
Alegou também que o R... também sofre de autismo grave e de problemas de surdez, que por via de todos estes problemas é muito importante o R... não ser desestabilizado, pois que o mesmo tem uma grande agitação psicomotora.
Acrescentou que há cerca de dois ou três meses, a mãe do R... comunicou à avó que dia 26 junho chegaria a Lisboa com o pai do menor e que partiriam para Inglaterra no dia 10 de Julho, comunicando à sua mãe, avó do menor, que era sua intenção levar o filho consigo, que não se conhece o modo de vida dos progenitores do menor em Londres, onde residem atualmente, sendo no entanto referido que a mãe não trabalha e o pai distribuirá jornais pela cidade durante a noite, que a sinalização do processo na CPCJ foi realizada pelo Instituto de Apoio à Criança, que o R... terá tomado conhecimento da intenção dos pais o levarem com eles para outro país, tendo verbalizado à avó que não queria ir, pedindo-lhe mesmo que não o deixasse partir, pois queria ficar junto de si.
Referiu que das diligências realizadas na CPCJ com base na sinalização recebida e em especial da entrevista realizada à avó materna, resultou que a mãe do R... tem mais um filho menor fruto de uma outra relação, o qual terá ficado entregue à guarda e cuidados dos avós paternos por decisão judicial, e o pai do menor em causa nos autos terá igualmente mais duas filhas menores de uma relação anterior, as quais lhe terão também sido retiradas.
Mais acrescentou que a avó foi entrevistada no dia 26 de Junho e nessa altura manifestou logo grande preocupação com a situação relatada no processo, uma vez que os progenitores vieram apenas uma vez a Portugal e não existe qualquer relação afetiva entre estes e o filho, com a agravante de o R... ter os supra referidos problemas graves de saúde que poderão colocar o menor em perigo para a sua vida e integridade se não for devidamente cuidado e acompanhado, que a CPCJ convocou os pais para o dia 28 de junho e face à fragilidade desta situação, não se encontrando a avaliação concluída, elaborou uma Declaração em como o R... deveria permanecer aos cuidados da sua avó até audição aos pais e restante avaliação, para que fossem protegidos os seus superiores interesses nos termos do Processo em curso, e que a avó prestou o consentimento à intervenção desta comissão.
Alegou que, porém, no dia 27 de junho, a CPCJ foi contactada pela PSP e posteriormente pela avó do R..., tendo a PSP informado que durante essa noite os pais foram a casa da avó levando o filho com eles para parte incerta, que neste mesmo dia a CPCJ rececionou a sinalização por parte da PSP, que desta participação da PSP (fls. 108 do processo) consta que os pais do menor forçaram a entrada na residência da avó materna com o propósito de levar o filho de ambos, que a avó materna tentou impedir que a filha e do genro concretizassem esse propósito, mas foi agredida, e os mesmos acabaram por conseguir levar o menor consigo, tendo na altura dito à avó que iam levar o filho de ambos para Inglaterra onde residem, não tendo, porém, levado consigo qualquer identificação do R..., nem a medicação que o menor precisa de tomar.
Referiu finalmente que a CPCJ apresentou denúncia da situação do desaparecimento da criança nas circunstâncias supra referidas junto da Polícia Judiciária e do DIAP dada a sua capacidade de intervenção mais alargada, incluindo a articulação com serviços internacionais, concluindo de tudo isto que o comportamento negligente dos progenitores, ao, apesar da gravidade do seu estado de saúde e da fragilidade da sua situação, levarem o filho de ambos para paradeiro desconhecido, colocou em causa a sua própria vida e integridade física, bem como a de terceiros, e tornou totalmente impossível, face ao desaparecimento do menor, a execução pela CPCJ da medida de apoio junto de outro familiar na pessoa da avó materna a título cautelar que esta entidade deliberou aplicar, pelo que, conjugando esses factos com a ausência de consentimento por parte dos progenitores, face à sua não comparência em sede de comissão, nada mais restava à CPCJ se não deliberar o arquivamento do processo e sua remessa com urgência para este Tribunal.
E porque, face a estes factos, forçoso se tornava considerar que o menor R... se encontra em grave risco emocional, para a sua integridade física e até a sua vida, bem como para a sua integridade psíquica, que urgia acautelar, o Ministério Público requereu que:
a) Se determinasse cautelarmente e a título provisório, a aplicação, relativamente ao menor R..., da medida de apoio junto de outro familiar, no caso concreto da avó materna, B... e M..., confirmando-se a medida e demais providências tomadas pela CPCJ Lisboa Oriental a titulo cautelar e provisório, no sentido da permanência do menor aos cuidados da sua avó materna, com a qual residia na R..., n.° 3, 30 Esq., 1900-269 Lisboa;
b) Ao abrigo do disposto no artigo 92° n° 2 da LPCJP, se declarasse aberta a instrução e após se participasse a situação ora em causa e se difundisse o desaparecimento do menor por todas as autoridades policiais, nomeadamente pela PSP, PJ e SEF, solicitando-se que colaborem no pedido de difusão do desaparecimento do menor junto de todas as autoridades nacionais e internacionais, indicando-se que o mesmo deverá ser de imediato entregue à sua avó materna logo que localizado;
- se interditasse a saída dos progenitores de território nacional juntamente com o menor;
- se solicitasse ao DIAP de Lisboa que informe se os progenitores têm ou tiveram processos criminais pendentes, identificando-os na afirmativa;
- se requisitasse CRC dos progenitores.
Com o requerimento inicial o Ministério Público juntou os seguintes documentos:
- expediente proveniente da CPCJ (cf. folhas 82 e ss);
- pesquisas informáticas da base de dados da identificação civil relativas aos progenitores (folhas 62 a 64);
- certidão do assento de nascimento do menor (folhas 66).
Por decisão provisória proferida em 29-06-2017, depois de se descreverem os factos que se consideraram indiciados em função dos elementos juntos aos autos, determinou-se, nos termos dos artigos 3.°, n.°2, b), c), d), e), g), 35.°, n°s 1, b) e 2, 37.0, 91.° e 92.°, todos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJ):
a) Aplicar ao menor R... a medida provisória de apoio junto de outro familiar, no caso concreto da avó materna, B..., confirmando-se a medida e demais providências tomadas pela CPCJ Lisboa Oriental a título cautelar e provisório, no sentido da permanência do menor aos cuidados da sua avó materna, com a qual residia na R..., n° 3, 3° Esq., 1900- 269 Lisboa;
b) Participar a situação ora em causa a todas as autoridades policiais, nomeadamente pela PSP, PJ e SEF, solicitando os bons ofícios destas entidades na difusão do desaparecimento do menor junto de todas as autoridades nacionais e internacionais, indicando-se que o mesmo deve ser de imediato entregue à sua avó materna logo que localizado;
c) Interditar a saída dos progenitores de território nacional juntamente com o menor.
No mesmo despacho, foi declarada aberta a fase da instrução e determinadas diligências com vista à ulterior tramitação dos autos.

Inconformados, os referidos A... e S... interpuseram o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. Esta douta decisão recorrida é GRAVE e perigosa e importa de imediato revoga-Ia; A CRIANÇA CORRE GRAVES PERIGOS, que o tribunal podia e devia ter evitado, se tivesse o MP ouvido os pais quando estes se deslocaram ao tribunal a conselho da Assistente Social, OU ouvisse ou lesse a abundante prova carreada até pela idosa para o processo;
2. NADA impressionou o Magistrado que proferiu a decisão de entrega da criança à AVO, esta que É SUSPEITA de estar à beira da loucura e de cometer por isso crimes graves, sem consciência da grave ilicitude. ELA QUE confirmou OBRIGAR a criança a tomar ansiolíticos. ELA que confessa que depois de ter UM ANO a criança causou distúrbios de toda a ordem na criança, tornando-a violenta e perturbada;
3. Tantos crimes contra a criança; Tantas evidências ignoradas pela douta sentença QUE NÃO está nada em consonância com as garantias fundamentais que os tribunais de Família em Portugal sempre consagram para a criança. A tradição jurídica e jurisprudencial entre nós não se revê nesta sentença. O DIREITO DE FAMILIA é mais e melhor...;
4. Os crimes já praticados e cujas consequências ainda se desconhecem; OS CRIMES LATENTES e DE PERIGO que aconselhavam mais prudência deste douto tribunal, EM MATÉRIA DE ELEVADA SENSIBILIDADE E DE PERIGO;
5. O tribunal ao ordenar a entrega da criança à AVÓ, ignora as graves denuncias feitas e sobre elas se não pronúncia, cometendo a NULIDADE da Omissão de Pronuncia. A Avó para os seus inconfessáveis crimes denunciou caluniosamente a filha e o genro, pois sabia que não havia qualquer abandono e que estava em contato diário com a filha a quem informava do menino;
6. Esta douta sentença recorrida MANTEM OS PERIGOS de distúrbios na criança e acumula o ODIO da criança contra a avó, o que não se revela noutros contatos como considerou a Sra. Assistente Social do HSM. A Policia de choque devia servir para proteger a sociedade e não para ajudar a agredir mentalmente uma criança;
7. Esta e aliás douta sentença É NULA por OMISSAO de pronúncia e por contradição entre a Fundamentação e a decisão E Permite a continuação de crimes graves contra criança e a prática para ESSE resultado dos crimes previstos e punidos pelo art° 154 e 365 do CP, para além da violação dos art°s 20 e 13 da CRP.
Terminaram pedindo a anulação ou revogação da decisão recorrida e que se determine a imediata entrega da menor aos seus pais, sem aplicação de qualquer medida de protecção, por desnecessária, ou, caso assim se não entenda, sempre se deverá proceder à entrega imediata da menor aos recorrentes com a aplicação da medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais, prevista no artigo 35°, n° 1, al. A) da LPCJP.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II. Questões a decidir.
Importa fundamentalmente apreciar e decidir:
- da nulidade da decisão
- se, em face dos elementos probatórios existentes nos autos, devia ou não o tribunal ter decretado as medidas provisórias supra mencionadas.

111. Fundamentação,
111.1. Fundamentação de facto.
O Tribunal Recorrido considerou, em face dos elementos juntos aos autos e do que resultou da consulta do processo, indiciariamente assentes os seguintes factos;
1. Os pais do R... residem em Londres, Inglaterra;
2. O R... vive com a sua avó materna, Beatriz Sousa Guedes, a pedido dos pais que passaram uma procuração por tempo indeterminado que atribui à avó plenos poderes para representar o neto;
3. O R... não mantém contatos pessoais com os pais desde que estes foram residir para Londres, o que sucedeu aos 18 meses de idade do R..., inexistindo entre a criança e os pais qualquer relação afetiva;
4. O R... demonstra necessidades especiais, nomeadamente está neste momento afetado por um problema sério de tuberculose pulmonar multirresistente com acompanhamento médico regular, medicação diária, perigo de contágio e instabilidade emocional e comportamental;
5. Devido à doença se encontrar bastante ativa o menor sem tomar a medicação prescrita pode potencialmente correr perigo de vida assim como poderá contaminar quem com ele contacte diretamente;
6. Para além disso o R... também sofre de surdez e de autismo pelo que não pode ser desestabilizado;
7. O R... tem uma grande agitação psicomotora;
8. Há cerca de 2 ou 3 meses, a mãe do R... comunicou à avó que dia 26 junho chegaria a Lisboa com o pai do menor e que partiriam para Inglaterra no dia 10 de Julho, comunicando à sua mãe, avó do menor, que era sua intenção levar o filho consigo;
9. Não se conhece o modo de vida dos progenitores do menor em Londres, onde residem atualmente, sendo no entanto referido que a mãe não trabalha e o pai distribuirá jornais pela cidade durante a noite;
10. Não existe relação afetiva entre os progenitores e o R..., com a agravante de que o R... tem os supra referidos problemas graves de saúde que poderão colocar o menor em perigo para a sua vida e integridade senão for devidamente cuidado e acompanhado;
11. A CPCJ convocou os pais para o dia 28 de junho e face à fragilidade desta situação, não se encontrando a avaliação concluída, elaborou uma Declaração em como o R... deveria permanecer aos cuidados da sua avó até audição aos pais e restante avaliação, para que fossem protegidos os seus superiores interesses nos termos do Processo em curso;
12. Na noite de 26 para 27 de junho, os pais foram a casa da avó materna, numa viatura marca Honda modelo Civic de cor preta, com a matrícula ..., levando o filho com eles para parte incerta. Para o efeito os pais do menor forçaram a entrada na residência da avó materna com o propósito de levar o filho de ambos;
13. A avó materna tentou impedir que a filha e do genro concretizassem esse propósito mas foi agredida e os mesmos acabaram por conseguir levar o menor consigo;
14. Na altura os mesmos disseram à avó que iam levar o filho de ambos para Inglaterra onde residem mas não levaram consigo qualquer identificação do R...;
15. Também não levaram consigo a medicação que o menor precisa de tomar;
16. A 28 de junho, os pais não compareceram na CPCJ nem justificaram a sua ausência, sendo que os mesmos tinham conhecimento da convocatória através da avó materna da criança.
111.2. Da nulidade da decisão.
Entendem os Apelantes que a decisão enferma de nulidade por omissão de pronúncia e por contradição entre a decisão e a sua fundamentação.
Se bem compreendemos a argumentação dos Recorrentes, estes sustentam tal entendimento na alegação de que a decisão ignora as alegadas graves denúncias feitas relativamente à avó do menor e permite a continuação de crimes graves contra a criança.
É o artigo 615°, n.° 1 do Código de Processo Civil que elenco as nulidades da sentença.
Estabelece a al. c) do n.° 1 desse artigo 615° que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A contradição entre os fundamentos e a decisão configura vício que ocorre quando, ao invés de um raciocínio silogístico que deve caracterizar a decisão - em que as premissas, de facto e de direito conduzem necessariamente ao resultado vertido na parte dispositiva - se verifica que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto, ou, pelo menos, de sentido diferente.
A obscuridade traduz-se numa dificuldade de perceção do sentido da expressão ou da frase: a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível. A ambiguidade verifica-se quando existe a possibilidade de atribuir vários sentidos a uma expressão ou frase: a decisão é ambígua quando alguma passagem se presta a interpretações diferentes. No primeiro caso não se sabe o que o juiz ou juízes quiseram dizer; no segundo, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos - embora, em última análise, a ambiguidade não deixe de ser uma forma especial de obscuridade, dado que se dado passo da decisão é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento dos juízes.
O vício em causa é, pois, a ininteligibilidade da decisão, sendo o motivo gerador a obscuridade e/ou a ambiguidade.
No regime atual a obscuridade ou ambiguidade só relevam quando geram ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236° e 238° do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.
É ainda nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento (cf. al. d) do citado artigo 615°, n.° 1).
A nulidade por omissão de pronúncia constitui a cominação para o incumprimento do disposto na primeira parte do n.° 2 do artigo 608° do Código de Processo Civil, que estabelece o dever do juiz de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Ora, no caso dos autos, ressalvado o muito e devido respeito por entendimento diverso, não se vislumbra ter sido cometida qualquer nulidade - o Tribunal recorrido não só especificou os factos que considerou indiciados (cf. folhas 68/69), como elencou as circunstâncias que fundaram a sua convicção, aludindo elementos juntos aos autos com o requerimento do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, e à consulta dos autos.
Também os fundamentos de direito considerados pelo tribunal recorrido surgem claramente identificados na decisão provisória, onde se citam não só as disposições legais consideradas aplicáveis, como se opera a subsunção dos factos a tais disposições legais.
Os fundamentos de facto e de direito da sentença recorrida encontram-se claramente expostos e surgem em total coerência lógica com a decisão.
Não se surpreende qualquer questão que tivesse ficado por apreciar relativamente ao requerimento apresentado pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público e que cumpria apreciar, nem existe qualquer excesso de pronúncia.
A decisão recorrida não enferma, pois, das nulidades invocadas pelos apelantes.
111.3. Do mérito do recurso.
Se bem entendemos o requerimento de interposição de recurso, o que resulta do mesmo, e é bem diferente da arguida nulidade, é uma discordância (entre os Recorrentes e o Tribunal) sobre o procedimento adotado, designadamente em virtude de não se ter procedido à audição dos ora Recorrentes, nem a análise dos elementos de prova por eles referidos.
Sustentam a inexistência de elementos no processo que permitissem ao tribunal ter decretado a medida provisória.
Analisemos então.
É certo que nos termos do disposto no artigo 104° da LPCJ é sempre assegurado em todas as fases do processo, designadamente na conferência tendo em vista a obtenção de acordo e no debate judicial, quando se aplicar a medida prevista na al. g) do n.° 1 do artigo 35°. E não há dúvida que no plano dos factos, o contraditório exige que os factos alegados por uma das partes possam pela outra ser contraditados.
Situações existem, porém, em que a urgência perspetivada pelo Tribunal na realização e salvaguarda dos interesses da criança, face ao risco de perda da eficácia da decisão que importa proferir, inviabiliza a audição e determina a prolação de decisão que aplica medida provisória.
Nesses casos, o contraditório é assegurado a posteriori, pois a demora na decisão poderia redundar em prejuízo para a criança, não acautelando o seu interesse.
Vejamos.
A lei protege a família, nomeadamente a família natural.
O artigo 67° n° 1 da Constituição da República Portuguesa declara que [...] a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. [...] e o artigo 68° do mesmo diploma acrescenta que [...] a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes [...] (n° 2) e [...] os progenitores e as progenitoras têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país [...] (n° 1).
Por isso o legislador comete aos pais, no interesse dos filhos, o poder-dever que consiste na responsabilidade de zelarem pela segurança e saúde destes, proverem ao seu sustento, dirigirem a sua educação, representarem-nos e administrarem os seus bens (cf. artigo 1878° do Código Civil).
Porém, se por qualquer razão, essas responsabilidades parentais não são satisfatoriamente cumpridas, compete ao Estado tomar com urgência as medidas adequadas a proporcionar ao menor a efetiva salvaguarda dos seus superiores interesses, pois as crianças têm sempre direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao respetivo desenvolvimento integral (artigo 69° da Constituição da República Portuguesa).
É a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n° 147/99, de 01 de Setembro, que estabelece o regime dessa intervenção do Estado.
Assim, a intervenção do Estado e da sociedade na vida, autonomia e família de uma criança apenas pode ocorrer quando os progenitores, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo (artigo 3° n° 1 da LPCJP).
Nos termos do n° 2 do artigo 3° da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente e a título exemplificativo, sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais (alínea b); não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal (alínea c) e está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional (alínea e).
De acordo com o artigo 34° da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, as medidas de promoção dos direitos e proteção visam afastar o referido perigo em que as crianças se encontrem, proporcionar-lhes as condições para proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento, e garantir a recuperação física e psicológica das crianças vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
A este respeito, prevê, em especial, o artigo 91° da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo que:
[...] 1- Quando exista perigo actual ou iminente para a vida ou integridade física da criança ou do jovem e haja oposição dos detentores do poder paternal ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas no artigo 7° daquele diploma ou as comissões de protecção tomam as medidas adequadas para a sua protecção imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais.
2 - As entidades policiais dão conhecimento, de imediato, das situações referidas no número anterior ao Ministério Público ou, quando tal não seja possível, logo que cesse a causa da impossibilidade.
3 - Enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram a criança ou o jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua proteção de emergência em casa de acolhimento temporário, nas instalações das entidades referidas no artigo 7° ou em outro local adequado.
4 - O Ministério Público, recebida a comunicação efetuada por qualquer das entidades referidas nos números anteriores, requer imediatamente ao Tribunal competente procedimento judicial urgente nos termos do artigo seguinte. [...]
E, por sua vez, dispõe o artigo 92° da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo que:
[...] 1 - O tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas as situações referidas no artigo anterior, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata protecção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35° ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.
2 - Para efeitos do disposto no artigo anterior, o tribunal procede às averiguações sumárias e indispensáveis e ordena as diligências necessárias para assegurar a execução das suas decisões, podendo recorrer às entidades policiais e permitir às pessoas a quem incumba do cumprimento das suas decisões a entrada, durante o dia, em qualquer casa.
3 - Proferida a decisão provisória referida no n.°1, o processo segue os seus termos como processo judicial de promoção e protecção. [...].
As medidas provisórias, por seu lado, encontram-se previstas no artigo 37° da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo: [...] As medidas provisórias são aplicáveis nas situações de emergência ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, não podendo a sua duração prolongar-se por mais de seis meses [...] .
O conceito de situação de emergência plasmado neste normativo, inclui as situações de urgência em que esteja em causa um perigo atual e eminente para a vida ou integridade física da criança ou do jovem, mas também outros direitos da criança ou do jovem, ou seja, sempre que exista uma situação de perigo atual e eminente que afete a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento. -
cfr. RAMIAO, TOMÉ D 'ALMEIDA, in Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, Quid Juris, 5° edição, , pg.70.
Nesses casos, em que se impõe a aplicação imediata de uma medida para acautelar uma situação de emergência, não se verifica violação do princípio do contraditório em virtude de não serem ouvidos os progenitores do menor antes do seu decretamento, quando o carácter de emergência é tal, que o interesse principal a acautelar no imediato é a segurança e a proteção do menor, que se sobrepõe à audição prévia de ambos os pais.
A situação é semelhante à que ocorre no âmbito vertido no n.° 2 artigo 3° do Código de Processo Civil, em que o princípio do contraditório também é postergado nos procedimentos cautelares, quando se verificam os pressupostos para que sejam decretados sem audição da parte contrária (cf. o Ac. da Relação de Coimbra de 22.01.2013, publicado em www.dgsi.pt).
Como se decidiu no Ac. da RL de 09.02.2010 (disponível em www.dgsi.pt), numa situação desse tipo, o contraditório só após a notificação da decisão tomada pode ser exercido, por via de recurso ou de formulação de requerimento de revisão/cessação da medida provisória, ou ainda no âmbito dos termos do processo de promoção e proteção que se segue.
O requerido dispõe, pois, de vários meios para se opor à decisão que decreta a medida urgente e provisória - o recurso, ou por via de oposição em sede de contraditório subsequente no processo tutelar.
Importa porém sublinhar que o recurso de decisão provisória proferida em momento próprio para apreciar das razões de facto aduzidas elos recorrentes para contrariar os elementos indiciários constantes do processo que determinaram a aplicação de tal medida, os quais devem ser avaliados na instrução subsequente dos autos. (...)
O recurso destina-se tão-somente a apreciar se no momento em que a decisão provisória foi proferida nos autos o Mm.° Juiz do tribunal a quoefetuou ou não uma correcta apreciação da situação que, então, lhe foi apresentada (cf. o já citado Acórdão da Relação de Coimbra de 22.01.2013).

De regresso ao caso dos autos, cumpre desde já afirmar que perante a situação de emergência relatada no requerimento apresentado pelo Ministério Público, que evidenciava uma situação de urgência em que estava em causa um perigo atual e eminente para o menor R..., justificava-se plenamente à adoção das medidas em causa, previamente a qualquer diligência ou audição a fim de cumprir o contraditório.
Desde logo os elementos probatórios apresentados pelo Ministério Público sustentam - como se referiu numa fase anterior ao contraditório - os factos que foram considerados indiciariamente provados e a que já supra fizemos referência.
E entre tais elementos avultam, efetivamente, as declarações da avó do menor B..., que o tem tido a seu cargo e dele tem cuidado há vários anos. Mas não só. A versão dos factos apresentada pela mesma junto do Instituto de Apoio à Criança e CPCJ mostra-se coerente com os elementos clínicos e escolares pela mesma fornecidos que evidenciam um acompanhamento médico e escolar proporcionado pela avó.
De resto, o mesmo tem estado entregue aos cuidados da avó por vontade dos pais, que entregaram àquela uma procuração, datada de 25 de Setembro de 2015, para representar o filho junto de todas as instituições (cf. folhas 93 a 95).
O menor tem necessidades especiais, enfermando de doença do espetro do autismo, não podendo ser desestabilizado, e encontra-se afetado de tuberculose pulmonar, o que tudo obriga a que continue a fazer a medicação que lhe foi prescrita.
O R... encontra-se, pois, numa situação de extrema fragilidade e de perigo para a sua saúde física e psíquica, na justa medida em que na data constante dos factos assentes, os progenitores o retiraram, contra a vontade da avó, da casa desta última, sem sequer levarem com eles a medicação de que o menor necessita de tomar, não mais tendo comparecido junto da CPCJ, nem havendo notícias do respetivo paradeiro ou estado de saúde atual.
De acordo com os factos indiciariamente assentes, nesta fase, os pais promoveram, pois, uma situação de corte radical com a situação que o menor viveu nos últimos tempos, quer em termos familiares, quer escolares, quer até de assistência médica, situação que assume especial gravidade e que, mercê do carácter fortemente antijurídico dessa conduta, é merecedora de uma muito intensa censura ética porque tais actos foram praticados relativamente a uma criança que necessita, para o seu equilíbrio, de grande estabilidade.
Ora, concluindo-se desta forma, dúvidas não restam de que os factos indiciados traduziam uma situação de perigo para a vida e integridade física e psicológica do R..., tudo a legitimar as medidas provisórias determinadas na decisão recorrida.
Não se quer com isto dizer que os pais se encontram inibidos de demonstrar uma diversa versão dos factos, para o que deverão adotar as adequadas regras processuais, por forma a tentarem demonstrar os motivos que entendem justificar a conduta que adotaram.
O que se conclui é que, na fase em que a decisão recorrida foi adotada, perante os elementos de prova indicados pelo Ministério Público e os factos que os mesmos indiciavam, as medidas decretadas se encontravam inteiramente justificadas.
Se as circunstâncias ocorreram conforme consta do expediente enviado pela Comissão de Proteção de Menores, ou não, ou até se aconteceram em diverso contexto, como pretendem os recorrentes, é matéria a demonstrar no decurso da instrução destes autos - na qual se deverão envolver com vista ao apuramento de todos os elementos essenciais para determinar se, quando, e em que circunstâncias, com ou sem acompanhamento, deve o R... voltar para junto dos pais, e que manifestamente extravasa o âmbito da decisão do recurso da aplicação desta medida provisória.
IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão provisória recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 21.1 1.2017
(Ana Pessoa)
(Eurico José Marques dos Reis)
(Ana Maria Fernandes Gregório)
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