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 - ACRL de 14-09-2017   Rendimento disponível. Sustento minimamente digno. Conceito indeterminado.
1 - O art.°. 239.° n.° 3 al. b) e i) do CIRE exclui do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
2 - Tratando-se de um conceito indeterminado, saber aquilo que em cada caso concreto se mostra necessário à sobrevivência condigna do insolvente, dependerá da concretização jurisprudencial, avaliando as particularidades da situação concreta do devedor em causa. Se por um lado, haverá que salvaguardar aquilo que garanta o sustento minimamente digno do devedor, também haverá que ponderar que o sentido destas normas não é desresponsabilizar o devedor isentando-o de qualquer obrigação para com os credores.
Proc. 1078/14.5TBMTJ.L1 6ª Secção
Desembargadores:  Maria de Deus Correia - Nuno Manuel Machado e Sampaio - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Sumário:
I- O art.°. 239.° n.° 3 al. b) e i) do CIRE exclui do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
II- Tratando-se de um conceito indeterminado, saber aquilo que em cada caso concreto se mostra necessário à sobrevivência condigna do insolvente, dependerá da concretização jurisprudencial, avaliando as particularidades da situação concreta do devedor em causa. Se por um lado, haverá que salvaguardar aquilo que garanta o sustento minimamente digno do devedor, também haverá que ponderar que o sentido destas normas não é desresponsabilizar o devedor isentando-o de qualquer obrigação para com os credores.

I-RELATÓRIO
F………….. e F……………., casados, contribuintes fiscais ………….., residentes em ……….., vieram apresentar-se à insolvência, pedindo a exoneração de passivo restante.
Foi decretada a insolvência como requerido, por sentença proferida em 22-05-2014.
Relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, por despacho proferido em 11-07-2014, foi decidido o seguinte:
Face ao exposto, e nos termos do artigo 239°, n.° 2, n° 3 e n° 4 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, admito o pedido de exoneração do passivo restante e determino que:
a) Durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir seja entregue ao fiduciário infra nomeado;
b) O rendimento disponível referido na alínea anterior não inclui créditos cedidos a terceiros, nos termos do artigo 115.° do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, nem a quantia equivalente a um salário mínimo nacional para cada um dos insolventes, actualmente fixada em 485, 006, nem o necessário para exercer actividade profissional que eventualmente os insolventes venham a desenvolver. (...)
Posteriormente, vieram os insolventes requerer seja excluída da cessão de rendimentos determinada, o valor correspondente a 2 SMN do vencimento do insolvente e 1 SMN do vencimento da insolvente.
O credor ……... pronunciou-se contra, considerando que os insolventes não invocam qualquer alteração de circunstâncias.
Decidindo, o Tribunal a quo considerou, nomeadamente, que (..) ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, tendo como limite uma vivência minimamente condigna.
E, consequentemente, considerando que os hábitos de consumo dos devedores deverão nesta fase ser moderados e adequados à situação de insolvência em que encontra manteve a decisão proferida, por não se verificar qualquer alteração de circunstâncias que justifique a sua modificação.
Requereram ainda os insolventes a prorrogação do procedimento de exoneração por mais um ano, invocando desconhecerem os deveres que sobre si recaíam, o que levou a que durante este primeiro ano incumprissem com as entregas ao fiduciário.
Também esta pretensão foi indeferida.
Inconformados com as decisões referidas, vieram os insolventes interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1ª) São dois os temas do inconformismo dos recorrentes perante a decisão que indeferiu o pedido de:
- Prorrogação ou prazo para entrega do rendimento disponível e
- Alteração do montante desse mesmo rendimento disponível
2a) Após sentença em que foi declarada a insolvência dos recorrentes, veio a ser admitido o pedido de exoneração do passivo restante, por preenchidos os requisitos legais.
3a) Os recorrentes sempre foram cumpridores, gerindo a sua vida em função das suas possibilidades económicas.
4a) E foram arrastados para a insolvência por factores exteriores à sua conduta.
5a) Tal situação decorre da insolvência do seu filho, de quem eram fiadores no crédito a este concedido para aquisição de habitação própria.
6a) O comportamento processual dos recorrentes sempre foi de pronta e transparente colaboração.
7a) Entregaram o imóvel que constituía a sua habitação própria e permanente, livre e desocupado, logo que tal lhes foi solicitado pelo Fiduciário.
8a) De igual modo procederam quanto à viatura automóvel, tendo respondido ao Fiduciário no próprio dia em que para tal foram contactados (12 de Junho de 2014). 9a) Em 18 de Junho de 2014 foram igualmente fornecidos ao Exmo Senhor Fiduciário os recibos dos seus vencimentos, bem como os contactos de cada um dos insolventes, nas suas respectivas empresas.
10a) O processo de insolvência veio a ser encerrado por decisão de 26/10/2015.
11a) As notificações remetidas aos insolventes do encerramento do processo não foram por estes recebidas (cfr. fls. 187 e seguintes).
12a) Já que foram remetidas para a morada que fora em tempos a casa do casal, mas que de há muito fora entregue à massa insolvente'.
13a) E certo que foram publicados os anúncios e editais e que o advogado signatário foi notificado.
14a) Porém, nunca os recorrentes foram notificados onde, quando e por que forma deveriam proceder à entrega do rendimento disponível.
15a) Só no passado dia 20 de Dezembro de 2016, através de carta que lhes foi remetida pelo Exmo Senhor Fiduciário, tiveram conhecimento e tomaram consciência da necessidade de procederem à entrega do rendimento disponível.
16a) E, de imediato, forneceram, sem reservas ou evasivas, toda a documentação e elementos solicitados pelo Fiduciário.
17a) Foi-lhes, então, indicado o NIB da conta da massa insolvente.
18a) Onde passaram a depositar de imediato os montantes correspondentes ao rendimento disponível.
19ª) A omissão dos recorrentes decorre de lapso manifesto por errónea interpretação e comunicação.
20a) E não de negligência grosseira ou grave, como se avalia na decisão recorrida.
21ª) Tendo em consideração as circunstâncias e condicionalismos da actuação dos recorrentes, não se vislumbra que o seu comportamento integre negligência grave.
22a) Pelo que, aceitando o descrito comportamento, à luz de lapso manifesto, é de acolher a pretensão dos recorrentes de verem prorrogado o período de cessão pelo tempo em que não tiveram consciência de que estavam já obrigados a entregar ao Fiduciário o rendimento disponível.
23a) E, embora não exista disposição legal expressa que acolha a pretensão dos recorrentes, ela acaba por encontrar protecção nos princípios e pilares que sustentam o instituto da exoneração do passivo - artos 235 e seguintes do C.I.R.E.
24a) A decisão recorrida, ao não acolher a requerida prorrogação do prazo, considerando que os insolventes agiram com negligência grosseira, faz uma errónea apreciação das circunstâncias que envolveram a conduta dos recorrentes, à luz do conceito de negligência.
25a) E dessa forma viola os princípios que regem o instituto da exoneração do passivo restante - artos 235° e seguintes do C.I.R.E., nomeadamente o art° 239°
26a) Sobre a alteração do montante do rendimento disponível, diga-se que, conforme a prova produzida, as despesas fixas suportadas pelo agregado insolvente, numa média mensal, ascendem a € 670,00 com renda, consumo de água, luz, gás e medicamentos crónicos, nos quais não estão contabilizados, nem a alimentação, nem o vestuário, nem os transportes e de para os respectivos empregos.
27a) Contrariamente ao que se diz na decisão recorrida, o mercado de arrendamento na zona …………… sofreu uma especulativa subida depreços.
28a) Até à data, não conseguiram os recorrentes encontrar uma casa por melhor preço de renda do que actualmente pagam - € 500,00 -
29a) Os recorrentes têm perfeita noção de que a situação de insolvência lhes impõe compressão de despesas e restrições.
30ª) Mas não devem ficar impedidos de viver com dignidade.
31ª) Com efeito, e como dispõe o já referido art° 239° do C.I.R.E., deve ficar excluído do rendimento disponível o que seja razoavelmente digno do devedor e do seu agregado familiar.
32ª) No caso dos autos, atento os elementos referidos, mostra-se razoável e adequado aos critérios legais que se fixe o rendimento indisponível em 3 SMN (dois ordenados mínimos do vencimento do marido e um ordenado mínimo do vencimento da mulher) 338) A decisão recorrida, ao indeferir o pedido de alteração/redução do rendimento disponível nos moldes requeridos, também erra na apreciação da prova, violando o disposto no art° 239°, designadamente no n° 3 - b), i) do C.I.R.E.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Está dado como provado nos autos que:
1-A requerente aufere cerca de 755,00€ mensais e o requerente cerca de 605,00;
2-Os requerentes não dispõem de qualquer outra fonte de rendimento.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa conhecer são as seguintes:
1-Alteração do valor do rendimento disponível
2-Prorrogação do prazo para efectuar a entrega do rendimento ao fiduciário
O processo de insolvência é, nos termos da formulação legal, um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (art.° 1° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, - CIRE).
No que respeita aos insolventes, pessoas singulares, e no dizer do Preâmbulo do Código-, este conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa - fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração na vida económica.
O regime a que se refere o preâmbulo do CIRE, está regulado nos artigos 235.° a 248.° do CIRE.
Dele resulta que, no caso da insolvência de pessoa singular de boa- fé, a protecção dos credores não esgota a finalidade do processo, havendo também, caso tal tenha sido requerido pelo devedor, o desiderato de lhe possibilitar um recomeço da sua vida, exonerando-o das dívidas que, passado um período de esforço sério de pagamento do devido, ainda subsistam. O requerente assumirá o compromisso de não ocultar os rendimentos que aufira e o seu património e de diligenciar pelo exercício de uma profissão remunerada (n.° 4 do art.° 239.° do CIRE), entregando ao fiduciário todos os rendimentos que venha a auferir e que constituam rendimento disponível.
O valor a fixar terá de levar em consideração, obviamente, as particularidades de cada caso, devendo ponderar-se por um lado que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante, e por outro lado atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana (art. ° 1.° da CRP), assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar'
E assim, o art.°. 239.° n.° 3 al. b) i) do CIRE exclui do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
A ratio legis desta regra é a salvaguarda do quantitativo monetário necessário à sobrevivência humanamente condigna dos insolventes, em concretização do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de Direito, vertidos nas disposições conjugadas dos art.°s 1.0, 59.°, n.° 2 al. a) e 63.°, n.°s 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
Tratando-se, pois, de um conceito indeterminado, saber aquilo que, em cada caso concreto, se mostra necessário à sobrevivência condigna do insolvente, dependerá da concretização jurisprudencial, avaliando as particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efectiva ponderação casuística no juízo a formular no que respeita à fixação do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos.
Se por um lado, haverá que salvaguardar aquilo que garanta o sustento minimamente digno do devedor, também haverá que ponderar que o sentido destas normas não é desresponsabilizar o devedor isentando-o de qualquer obrigação para com os credores5. Pelo contrário, a regra é a de que todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor integram o rendimento disponível (art.° 239.° n.°3)
Sopesados os dois lados da questão podemos desde já referir que não é razoável a pretensão dos Recorrentes que, afinal, equivale a eximir-se de qualquer pagamento a favor dos credores, dado que pretendem ver salvaguardado para o seu sustento, globalmente, o correspondente a três salários mínimos- ou seja, valor superior aquele que auferem, mensalmente.
Cremos, por conseguinte inteiramente equilibrada a cumpridora dos critérios legais, a decisão recorrida ao fixar como indisponível o valor correspondente a um salário mínimo, em relação a cada um dos insolventes.
Considerando o caso concreto dos ora Apelantes, as despesas que necessariamente têm a seu cargo, designadamente habitação, alimentação, consumos de electricidade, água e gás, mas não perdendo de vista os valores fixados em casos semelhantes, afigura-se-nos que a 1.a instância ponderou devidamente os diversos interesses em confronto, de acordo com os critérios legais e jurisprudenciais6 vigentes.
Improcede, pois, nesta parte o recurso.
Importa agora analisar a segunda questão que tem a ver com a pretensão dos Recorrentes em ver prorrogado o período de cessão do rendimento disponível fixado.
Quanto a esta questão foi apresentada a seguinte fundamentação pela 1.a instância:
Nos termos do artigo 239°, n. °2 do GIRE, o período de cessão, durante o qual os insolventes deverão entregar ao fiduciário o rendimento disponível fixado, inicia-se com o encerramento do processo. Sendo que inexiste qualquer excepção ou desvio a esta norma no sentido pretendido pelos insolventes.
Acresce que, para além deste momento resultar expressamente da lei, resulta ainda da decisão que deferiu inicialmente o pedido de exoneração e da decisão de encerramento, bem como dos respectivos anúncios e editais.
Assim, não só a solução proposta pelos insolventes não encontra acolhimento legal, como o invocado desconhecimento é insuficiente para justificar o incumprimento verificado, resultando o mesmo, pelo menos, de negligência grosseira dos devedores.
Em face do exposto, indefere-se o requerido pelos insolventes, concedendo-se, contudo, aos mesmos, o prazo de 10 dias, para requererem o que tiverem por conveniente quanto à regularização dos montantes em incumprimento (a qual apenas será admissível se ocorrer no período de cessão).
Também quanto a esta questão, afigura-se-nos inteiramente correcta a fundamentação constante da decisão recorrida, não havendo motivo suficiente para justificar a pretendida prorrogação de prazo, pois o momento a partir do qual os insolventes deverão entregar ao fiduciário o rendimento disponível fixado resulta da lei, consta da sentença que deferiu inicialmente o pedido de exoneração do passivo restante sendo certo que os insolventes estavam patrocinados por advogado que lhes poderia ter prestado os esclarecimentos necessários.
Não nos parece, por conseguinte, que a decisão recorrida mereça qualquer censura, motivo pelo qual deve ser confirmada.
IV-DECISÃO
Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos Apelantes.
Lisboa, 14/9/2017
Maria Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal
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