Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 07-03-2017   Insolvência culposa. Presunções. Culpa grave.
1. A insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores. Por sua vez, essa atuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
2. Por força da parte final do n°1, do art.°. 186°, do CIRE, a atuação do insolvente deixa de ser atendida se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
3. O art. °. 186° prevê dois conjuntos de presunções: o n°2 contém um elenco de presunções juris et de jure; por seu turno, o n°3 estabelece presunções juris tantum, dando por verificada a existência de culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.
4. As presunções previstas no n°2, do art. °. 186°, do CIRE, reportam-se quer à existência de culpa grave, quer ao nexo de causalidade.
5. No n°3, do art. °. 186°, do CIRE prevêem-se presunções de culpa grave, em resultado da atuação dos administradores do insolvente, mas não da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência.
Proc. 1743/15.0T8FNC-C.L1 7ª Secção
Desembargadores:  Maria do Rosário Morgado - Rosa Ribeiro Coelho - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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Apelação n° 1743.15.OT8FNC-C.L1
Sumário
(da exclusiva responsabilidade da relatora)
1- A insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores. Por sua vez, essa atuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
II - Por força da parte final do n°1, do art.°. 186°, do CIRE, a atuação do insolvente deixa de ser atendida se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
III - O art. °. 186° prevê dois conjuntos de presunções: o n°2 contém um elenco de presunções juris et de jure; por seu turno, o n°3 estabelece presunções juris tantum, dando por verificada a existência de culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.
IV- As presunções previstas no n°2, do art. °. 186°, do CIRE, reportam-se quer à existência de culpa grave, quer ao nexo de causalidade.
V - No n°3, do art. °. 186°, do CIRE prevêem-se presunções de culpa grave, em resultado da atuação dos administradores do insolvente, mas não da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência.

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1. No incidente de qualificação da insolvência, o Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de a insolvência dever ser considerada culposa.
No mesmo sentido, se pronunciou o Ministério Público.
2. Foi, no entanto, proferida sentença que qualificou a insolvência como fortuita.
3. Inconformado, apelou o Ministério Público e, em síntese conclusiva, disse:
É de considerar verificado o pressuposto previsto no art.° 186°, 2, al h), do CIRE uma vez que, tendo o insolvente conhecimento do seu estado de insolvência face ao montante das suas dívidas e à maturidade das mesmas, prosseguiu uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
O insolvente sabe desde, pelo menos, finais de 2011, que tem para com a credora G..., Ld.a uma dívida no montante de €390.835,54.
Por saber disso, em Novembro de 2011, doou todos os imóveis que possuía a uma filha, inviabilizando para sempre a possibilidade de os credores virem a ser pagos.
Sabia ainda que, pelo menos desde o início de 2012, se devia ter apresentado à insolvência.
Apesar disso, continuou a administrar o seu negócio de forma deficitária, fazendo aumentar as dívidas que já tinha e contraindo novas dívidas, como aconteceu com a credora Bovimadeira, que lhe forneceu a carne que continuou a vender no seu estabelecimento comercial.
Continuando a contrair dívidas, ao mesmo tempo que o produto da sua atividade mal ultrapassava a de um ordenado mínimo por mês, agravou-se a sua situação de insolvência, sendo que a dívida ao Instituto da Segurança Social cujo incumprimento se iniciou em 2007, atingiu o valor de € 8.122,43, em 2015.
Sendo os valores dos seus rendimentos, nos anos 2011, 2012 e 2013, manifestamente insuficientes para pagar quaisquer dívidas, mostra-se comprovada a existência de nexo causal entre a conduta incumpridora e a situação de insolvência do devedor posto ter conduzido ao agravamento das dívidas e ao acentuar da incapacidade para as solver.
Deve, portanto, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que qualifique a insolvência como culposa, devendo o insolvente ser inibido para o exercício do comércio, nos termos do disposto no art. 189° do GIRE e demais condicionantes previstas neste artigo.
4. Não foram apresentadas contra-alegações.
5. Cumpre apreciar e decidir a única questão colocada no recurso, qual seja a de saber se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
6. Os factos É a seguinte a factualidade dada como provada:
1. No dia 22 de Março de 2015, A... requereu que fosse declarado o estado da sua insolvência (cfr. fls. 2 a 11 - autos principais);
2. Por sentença datada de 26 de Março de 2015, foi declarado o estado de insolvência de A... (cfr. fls. 24 a 29 - autos principais);
3. Por sentença datada de 31 de Outubro de 2011, e proferida no âmbito do processo n.° 332/ 11.2TCFUN, que correu termos nas Varas de Competência Mista do Funchal, 2.a Secção, os RR. A... e M... foram condenados a pagar à A. G..., LDA. a quantia de 278.417,77€, bem como os juros legais já vencidos no valor de 112.417,77€ e nos que se vencerem, à taxa legal, até o seu integral pagamento (cfr. prova documental de fls. 48 verso a 51 verso);
4. Por escritura pública datada de 14 de Novembro de 2011, M... e A... doaram a C...:
1. O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.° 1591;
2. A fracção autónoma comercial designada pelas letras BB e descrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.° 2632-BB; e
3. O estabelecimento comercial de cabeleireiro instalado na fracção autónoma referida em 2. (cfr. prova documental de fls. 248 a 252 - autos principais);
5. A... desenvolveu a atividade de talhante no mercado municipal dos Lavradores, no Funchal, como trabalhador em nome individual (por acordo);
6. A... declarou nas suas declarações de rendimentos referentes aos anos de 2011, 2012 e 2013, rendimentos de categoria B provenientes do seu trabalho como talhante nos seguintes termos:
• 2011 - 14.766,21€ (cf. prova documental de fl. 170 - autos principais);
• 2012 - 20.648,64€ (cf. prova documental de fl. 175 - autos principais);
• 2013 - 15.574,52€ (cf. prova documental de fl. 181 - autos principais).
6. A... declarou no ano de 2013 rendimentos de categoria A, provenientes da sua reforma por viuvez, no montante de 2.692,95€ (cf. prova documental de fl. 179 - autos principais);
7. A... encerrou o talho que explorava no mercado dos lavradores, local que explorava em regime de arrendamento, tendo pago todas as rendas até ao final de Março de 2015 (por acordo);
8. A... encontra-se desempregado (por acordo);
9. O único rendimento de A... consiste na sua pensão de viuvez, no valor de 179,00€ (por acordo);
10. Em Junho de 2012, G..., LDA. instaurou contra M... e A... um acção de impugnação pauliana que corre termos sob o n.° 327/ 12.9TCFUN, e no âmbito da qual foi peticionada a declaração de ineficácia da doação referida em D) (por acordo);
11. No âmbito da presente insolvência foram apreendidos bens móveis correspondentes ao recheio do talho que A... explorava e que foram avaliados pelo Sr. Administrador da Insolvência em 1.850,00€ (cfr. auto de apreensão de fls. 6 a 7 - apenso B);
12. No passado dia 19 de Agosto de 2015, o Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos a sua lista de credores reconhecidos, que não foi objeto de impugnação, e da qual consta o seguinte com interesse para a boa decisão da causa (cfr. prova documental de fls. 4 a 6): …

7. Fundamentação de direito
A insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita (art. 185°, do CIRE) estando os pressupostos da sua qualificação como culposa enunciados no art. 186°, nos seguintes termos:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido um contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n° 2 do artigo 188. °
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) 0 dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Por sua vez, dispõe-se no n°4, daquele artigo que «o disposto nos n°s 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso se não opuser a diversidade de situações».
Segundo o n°1, do art.°. 186°, a insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores. Por sua vez, essa atuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
A noção geral do n° 1, vale indistintamente para qualquer insolvente. Todavia, os n°s 2 e 3 só têm aplicação direta a devedores que não sejam pessoas singulares, aplicando-se à atuação destas apenas quando «a isso não se opuser a diversidade de situações».
Por força da parte final daquele n°1, tal atuação deixa de ser atendida se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
De seguida, o art.°. 186° prevê dois conjuntos de presunções: o n°2 contém um elenco de presunções juris et de jure; por seu turno, o n°3 estabelece presunções juris tantum, dando por verificada a existência de culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.
A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado sobre o alcance destas presunções, concretamente sobre a questão de saber se é de presumir também o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Relativamente às presunções previstas no n°2, parece ser entendimento majoritário que se trata de uma presunção quer da existência de culpa grava, quer do nexo de causalidade.
Por outro lado, no que respeita às presunções do n°3, do art.°. 186°, crê-se ser outro o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, posição que também sufragamos. Quer isto significar que o resulta daquele preceito é (apenas) uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos administradores do insolvente, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, sendo de exigir a demonstração, nos termos do art.°. 186°, n°1, de que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
Feito este brevíssimo enquadramento, importa agora apurar se, no caso em apreço, é possível imputar ao insolvente uma atuação dolosa ou com culpa grave, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra (segundo o critério plasmado no n°1, do art. 186°, do CIRE) ou, ainda, se a situação é enquadrável em alguma das alíneas dos n°s 2 e 3, daquele artigo.
O Tribunal a quo considerou inverificados os pressupostos da qualificação da insolvência culposa.
Contra este entendimento se insurge a Digna Recorrente. Ora bem.
O insolvente explorou um talho no Mercado dos Lavradores, no Funchal, tendo desenvolvido a sua atividade, em nome individual.
Em Março de 2015, encerrou o talho e requereu a sua insolvência, a qual viria a ser declarada por sentença proferida em 26/3/2015.
Nos anos de 2011 a 2013, declarou os rendimentos que constam do ponto 6, dos factos provados.
Os créditos reclamados e reconhecidos ascendem a várias centenas de milhar de euros (cf. ponto 12, dos factos provados) e, na sua maior parte, emergem de contratos de mútuo e crédito bancário e de compra de carne para o seu talho (cf. parecer do Administrador da insolvência junto a fls. 14-17, dos autos). Destaca-se ainda o crédito do Instituto da Segurança Social no montante de EUR 8.122,43, por o insolvente, enquanto entidade empregadora, ter deixado de pagar as comparticipações devidas à Segurança Social.
De entre os referidos créditos, assume particular relevância o da credora G..., Ld.a, no valor global de EUR 390.835,54, montante que o insolvente foi condenado a pagar àquela sociedade, por sentença proferida em 31/ 10/2011, já transitada em julgado.
Ora, apesar da sua situação deficitária, O insolvente prosseguiu a sua atividade até Março de 2015, comprando designadamente mercadoria a crédito, sabendo, como não podia deixar de saber, que aquela situação o conduziria, com toda a probabilidade, à insolvência, como, aliás, veio a suceder.
Acresce que a sua incapacidade para solver as suas dívidas se agravou a partir de 14/ 11/2011, isto é, menos de um mês após a prolação da sentença atrás referida, data em que o insolvente e a sua mulher fizeram uma doação de bens que integravam o seu património à filha de ambos.
Dispôs, assim, notoriamente, em prejuízo dos credores e em benefício de um familiar, da (quase) totalidade do seu património (imóveis e um estabelecimento comercial), pois apenas bens móveis no valor de EUR 1,850,00 vieram a ser apreendidos para a massa insolvente.
Por conseguinte, atenta a factualidade acima referida, têm-se por verificados os factos enunciados nas als. c) e g), do n°2, do art.°. 186°, do CIRE, pelo menos, a título de culpa grave (em que o resultado decorre da violação grosseira de normas de deveres de cuidado, de zelo ou de atenção).
Da mesma forma, a atuação do insolvente (empresário em nome individual) é susceptível de integrar o pressuposto enunciado na alínea a), do n°3, do art. 186°, do CIRE, na medida em que, encontrando-se impossibilitado de solver as suas dívidas, pelo menos desde finais de 2011, inícios de 2012, dada a escassez de rendimentos oriundos da sua atividade e a total ausência de bens próprios, não requereu oportunamente a declaração da sua insolvência (v. arts. 18° e 186°, n°s 3 e 4, do CIRE).
A insolvência deve, portanto, ser qualificada como culposa, com as consequências legais (cf. n°2, do art.°. 189°, do CIRE). No entanto, uma vez que os autos não fornecem os elementos indispensáveis para proferir decisão sobre a matéria, caberá ao tribunal recorrido fixar os efeitos previstos nas alíneas do n°2, do art.°. 189°, do CIRE.
8. Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar a sentença recorrida e em qualificar a insolvência como culposa.
Custas pela massa.
Lisboa, 7/3/2017
Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho
Amélia Ribeiro
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