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 - ACRL de 08-10-2009   Arma branca. Faca de cozinha.
Não constitui ilícito penal a detenção de faca de cozinha, ainda que com uma lâmina de 15 cms de comprimento, que o arguido disse a militares da GNR ser para ajustar contas com uma pessoa, pois quer no regime do artº 275º, nº3, do Código Penal e 3º, nº1 , al.f) do DL 207-A/75, de 17/4 quer no artº 2º, nº1, al.f) e 86º, nº1, al.a) da Lei nº5/2006, de 23/2, aquela arma tem aplicação definida, não tendo, por isso, o seu detentor de justificar a posse.
Proc. 279/03.6GBBNV 9ª Secção
Desembargadores:  Ana Paula Vasques de Carvalho - Cid Geraldo - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Processo comum colectivo n° 279/03.6GBBNV

Acordam em conferência na 9a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
Por acórdão proferido em 2 de Abril de 2009, no processo comum colectivo n° 279/03 do Circulo Judicial de Vila Franca de Xira foi o arguido condenado pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art.° 347° do C. Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.° 275°, n.°s 1 e 3 do C. Penal, nas penas de 10 (dez) e de 6 (seis) meses de prisão, respectivamente e, em cúmulo jurídico, pela prática dos dois crimes, condená-lo na pena única de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por 1 (um) ano, com acompanhamento por regime de prova em termos a definir pelo Instituto de Reinserção Social;
Não se conformando com a decisão, o arguido apresentou recurso invocando, em síntese e no essencial, que não pode considerar-se provado que cometeu o crime de resistência e coacção a funcionário, pois as injúrias proferidas e os pontapés não impediram os Agentes da GNR de efectuar a sua detenção; também não cometeu o crime de detenção de arma proibida, pois a arma em causa não estava disfarçada ou dissimulada, tratando-se de objecto com aplicação definida.
Conclui as doutas alegações:
- Á detenção a que os agentes se propuseram efectuar, não foi afectada pela atitude do recorrente a capacidade de liberdade de acção por parte dos agentes da força militarizada;
- O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo legal de crime não há-de medir-se pela capacidade de afectara a liberdade física ou moral de acção de um homem comum, havendo que ater-se às capacidades reforçadas de um elemento de uma força de segurança;
- Não se encontra preenchido o tipo legal do crime p e p no art. 347 do C. Penal, pelo que deve ser o arguido absolvido do mesmo;
- Violou assim o douto acórdão o referido art. 347 do C. Penal;
- Dos factos provados resulta que a faca que o recorrente transportava não estava disfarçada ou dissimulada, aparentando ser um outro objecto, inofensivo, e tratando-se de uma faca de cozinha é um instrumento com aplicação definida, não tendo assim este de justificara a sua posse;
- Os factos apurados não integram qualquer facto típico criminalmente punível, pelo que deveria ter sido o recorrente absolvido do crime aqui em questão;
- Assim, considerando o disposto no art. 412/2 a) violou o douto acórdão o disposto no art. 275 do C. Penal, na versão aplicável e o disposto no art. 3/1,) do decreto lei 207-A/75 de 17 de Abril.

O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou douta Resposta, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo:
- A matéria de facto provada preenche os elementos típicos objectivos do tipo legal de crime de resistência e coacção sobre funcionário, aplicável à data, p e p pelo art. 347 do CP;
- O grau de ameaça ou de violência, e respectiva idoneidade para alcançar o fim proposto pelo agente, há-de aferir-se caso a caso, levando em linha de conta as o conjunto das circunstâncias endógenas e exógenas a em que se revela a intenção daquele;
- O tribunal a quo considerou que a violência e ameaça utilizadas pelo arguido foram idóneas a perturbara a execução da acção dos dois militares da GNR;
- Atendeu, para o efeito, a todas as circunstâncias que lhe foram levadas pela prova constante dos autos e pela prova produzida em audiência;
- O douto acórdão condenatório foi exaustivo na apreciação da matéria de facto provada e no respectivo enquadramento jurídico;
- Ficou provado que o arguido transportava a faca de cozinha com 15 cm de Lâmina em plena via pública, escondida no bolso das calças e que a destinava a 'ajustara contas' com alguém;
- Não justificou a posse da faca de cozinha e não alegou ser cozinheiro ou exercer qualquer profissão que implicasse a possibilidade de se fazer acompanhar daquele utensílio, no bolso das calças, em plena via pública.
- O Tribunal a quo não violou, por consequência, qualquer dos preceitos referidos pelo recorrente na sua motivação.

Neste Tribunal, foi cumprido o disposto no art. 416 n° 1 do CPP.
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Colhidos os vistos legais, nada obsta à decisão.
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Fundamentação
São os seguintes os factos considerados provados no douto acórdão em mérito:

No dia 8 de Novembro de 2003, pelas 16.10 horas, os soldados da GNR de Salvaterra de Magos, M e L, devidamente fardados, entraram com o veículo de patrulha no recinto de estacionamento do estabelecimento comercial denominado 'Padaria Espiga', sito em Estrada do Vale Queimado, Salvaterra de Magos;
O arguido, que se encontrava junto à porta desse estabelecimento, ao avistar os soldados, disse 'Aí vem a bófia! O que é que estes filhos da puta querem? Já não posso estar onde quero seus cabrões? ';
Nessa altura os soldados disseram ao arguido que estava detido e este desferiu-lhes pontapés, atingindo o soldado J na mão esquerda, e o soldado Luís Lúcio nas mãos, quando o algemavam e faziam entrar no veículo para o conduzirem ao Posto, onde se recusou a entrar, tendo de ser forçado a fazê-lo, e de onde tentou fugir;
Em consequência da conduta do arguido descrita em 1.3., os soldados sofreram dores e escoriações nas mãos, e foram assistidos no Centro de Saúde de Benavente, que emitiu as facturas relativas a essa assistência, no valor de 24,30€ cada uma, em nome de cada um dos soldados;
O arguido agiu do modo descrito em 1.3., sabendo da adequação da sua conduta a molestar corporalmente os soldados, que sabia encontrarem-se no exercício das suas funções como sabia que perturbava esse exercício, não ignorando que a sua conduta era criminalmente ilícita e punível;
No dia 22 de Junho de 2004, pelas 13.30 horas, no interior da habitação onde ambos residiam com os pais, sita na Rua A Salvaterra de Magos, o arguido e o seu irmão R encetaram uma discussão e envolveram-se em confronto físico, no decurso do qual este atingiu aquele na cara com um mecanismo completo de uma pressão de ar sem coronha e aquele atingiu este com uma faca na parte de cima das costas junto ao pescoço;
Em consequência do confronto físico referido em 1.6. e da conduta do arguido ali referida, o R sofreu ferida com 2,5 cm na região cervical esquerda e diversas escoriações, designadamente na mão direita e no ombro esquerdo, e foi assistido no Centro de Saúde de Benavente, que emitiu a factura relativa a essa assistência, no valor de 42,90€, em nome de R;
O arguido agiu do modo descrito em 1.6., sabendo da adequação da sua conduta a molestar corporalmente o R, e não ignorando que a mesma era criminalmente ilícita e punível;
O ofendido R declarou desistir da queixa apresentada pelo referido em 1.6. e o arguido declarou não se opor a essa desistência;
No dia 3 de Dezembro de 2005, cerca das 11.00 horas, na Rua A, Salvaterra de Magos, o arguido trazia consigo, no bolso dos calções, uma faca de cozinha, com cabo de madeira e o comprimento total de 25,5 cm, sendo 15 cm de comprimento de lâmina, que disse a militares da GNR ser para 'ajustar contas' com uma pessoa;
O arguido agiu do modo descrito em 1.10., sabendo que a sua conduta era criminalmente ilícita e punível,.
O arguido sofre de perturbação da personalidade do tipo Borderline, que não afecta a consciência da ilicitude das suas condutas mas lhe diminui a culpa, não efectuando as consultas de psiquiatria nem tomando a medicação de que necessita quando em liberdade, sendo seguido na consulta de psiquiatria do estabelecimento prisional onde está detido e na qual lhe foi diagnosticada psicose esquizofrénica de tipo paranóide;
O arguido tem o 6° ano de escolaridade, reside com os pais e o irmão R, já trabalhou em jardinagem, e encontra-se detido em prisão preventiva desde 13 de Junho de 2008;
O arguido foi condenado:
- no âmbito do processo comum singular n.° 43/02.OGBBNV,, do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Benavente, por sentença proferida em 12/05/2004 e transitada em julgado em 27/05/2004, pela prática em 28/02/2002, de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos art. °s 181° e 184° do C. Penal, em medida de correcção sujeita a imposições, cumprida;
- no âmbito do processo comum singular n.° 101/05.9GBBNV, do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Benavente, por sentença proferida em 20/06/2006 e transitada em julgado em 18/07/2006, pela prática em 29/04/2005, de um crime de ofensa à integridade fisica simples, p. e p. pelo art.° 143°, n.° 1 do C. Penal, em pena de multa;
- no âmbito do processo comum colectivo n.° 9/07. 3GACCH, do 1° Juízo do Tribunal Judicial de Benavente, por acórdão proferido em 08/01/2008 e transitado em julgado, pela prática em 18/02/2007, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.° 204° do C. Penal, na pena de 13 meses de prisão suspensa na sua execução por 13 meses, sob condição de frequência de consultas de psiquiatria.
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Apreciando e decidindo
1 - O recorrente põe em causa o preenchimento do crime de resistência e coacção sobre funcionário, sobretudo, porque, em seu entender, as injúrias proferidas e pontapés desferidos contra os membros da GNR não obstaram, afinal, à sua detenção
Com o tipo de ilícito previsto no art. 347 C. Penal, que consubstancia um crime de perigo, visa-se proteger a ' autonomia intencional do Estado (...), acautela-se a liberdade de acção pública de funcionário, não a sua liberdade de acção privada' (Comentário Conimbricence, III, 339).
O bem jurídico protegido é, precisamente, o interesse do Estado em exercer, através de funcionários, a sua própria autoridade.
Segundo o mesmo Comentário (pag. 340), o fim da acção consiste em o agente opor-se a que a autoridade exerça as suas funções através de violência ou ameaça – este é o meio utilizado.
Com o devido respeito, não constitui elemento típico objectivo do ilícito em causa que a actuação do arguido impeça que o funcionário ou do membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança cumpra os seus deveres intrínsecos e concretize os seus fins, apesar da resistência ou do constrangimento.
O tipo legal, no plano objectivo, basta-se, como não poderia deixar de ser, atento o bem jurídico protegido, com a ameaça grave ou violência para que o funcionário ou membro daquelas forças militares e militarizadas não pratique acto relativo às suas funções, sendo suficiente, até, um mero constrangimento visando o mesmo fim.
Avaliados os factos provados, não há dúvidas que estes pressupostos se verificam.
Com efeito, os soldados da GNR de Salvaterra de Magos, J e L, devidamente fardados, entraram com o veículo de patrulha no recinto de estacionamento do estabelecimento comercial denominado 'Padaria Espiga', sito em Estrada do Vale Queimado, Salvaterra de Magos;
O arguido, que se encontrava junto à porta desse estabelecimento, ao avistar os soldados, disse 'Aí vem a bófia! O que é que estes filhos da puta querem? Já não posso estar onde quero seus cabrões? ';
Nessa altura os soldados disseram ao arguido que estava detido e este desferiu-lhes pontapés, atingindo o soldado J na mão esquerda, e o soldado L nas mãos, quando o algemavam e faziam entrar no veículo para o conduzirem ao Posto, onde se recusou a entrar, tendo de ser forçado a fazê-lo, e de onde tentou fugir;
Em consequência da conduta do arguido descrita em 1.3., os soldados sofreram dores e escoriações nas mãos, e foram assistidos no Centro de Saúde de Benavente, que emitiu as facturas relativas a essa assistência, no valor de 24,30e cada uma, em nome de cada um dos soldados;
O arguido agiu do modo descrito em 1.3., sabendo da adequação da sua conduta a molestar corporalmente os soldados, que sabia encontrarem-se no exercício das suas funções como sabia que perturbava esse exercício, não ignorando que a sua conduta era criminalmente ilícita e punível;
No caso concreto, os soldados da GNR, no âmbito das suas funções, procuraram deter o arguido, inteirando-o das razões da sua presença no local, ao que o arguido reagiu com expressões objectivamente injuriosas, desferindo pontapés àqueles soldados, provocando ferimentos em ambos, recusando-se a entrar na viatura, de onde procurou fugir.
E bem sabia o arguido, como se provou, que os soldados da GNR actuavam no exercício das suas funções e que a sua descrita actuação perturbava esse desempenho.
É certo que a violência ou ameaça relevante para o tipo de ilícito em apreço terá de ser grave, pois não é dirigida ao cidadão comum mas a funcionários habilitados a actuarem em situações de adversidade e que dispõem de meios que o cidadão comum não dispõe, podendo, inclusive, verificados os pressupostos para o efeito, recorrer à força.
Mas também não há dúvidas que, no caso concreto, o arguido actuou com uma violência invulgar, logrando resistir e agredir simultaneamente dois soldados da GNR, provocando ferimentos em ambos, os quais demandaram, inclusive, tratamento médico. Esta violência, consciente e voluntária, integra a resistência que o tipo legal em causa contempla e lesa seriamente a autonomia do Estado no exercício do seu poder público, reflectido na actuação dos soldados, intrínsecas às suas funções.
Consequentemente, o arguido praticou o crime p. e p. no art. 347 do C. Penal.
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2 - As questões suscitadas em via de recurso, no que à prática do crime de arma proibida respeita, conduzem, essencialmente, ao facto de a arma em causa não apresentar disfarce e ter aplicação definida.

No que este último aspecto respeita, provou-se que No dia 3 de Dezembro de 2005, cerca das 11.00 horas, na Rua da Liberdade, em Vale Queimado, Salvaterra de Magos, o arguido trazia consigo, no bolso dos calções, uma faca de cozinha, com cabo de madeira e o comprimento total de 25,5 cm, sendo 15 cm de comprimento de lâmina, que disse a militares da GNR ser para 'ajustar contas' com uma pessoa;
O douto acórdão recorrido aplicou o regime concretamente mais favorável, ou seja, o estabelecido no art. 275 n° 3 do C. Penal, vigente à data da prática dos factos, com referência ao art. 3° n° 1 f) do DL 207-A/75 de 17.4.
Já o art. 2° n.° 1 1), da Lei n.° 5/2006, de 23/2, atribui a definição de 'arma branca' a todo e qualquer objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superficie cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinada a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões.
Por outro lado, conforme o disposto no art. 86° n.° 1 d), da Lei n.° 5/2006, apenas assume relevância criminal quem trouxer consigo (...) 'arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.
Estamos perante um crime de perigo comum e abstracto, pois as condutas que contempla não carecem de lesar, de forma directa e imediata, qualquer bem jurídico, bastando a probabilidade de ocorrência de um dano contra um objecto indeterminado. O bem jurídico protegido é a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e matérias explosivas, de forma a evitar perturbação da ordem e segurança públicas, atentando particularmente contra a vida e a integridade fisica (cfr. Anotação ao art.°. 275.°, Comentário Conimbricense, Tomo II, 891).
Figueiredo Dias (in Sumários 1975, 146) caracteriza estes crimes de perigo abstracto como 'todos aqueles em que o perigo não constitui ele próprio elemento do tipo, mas «motivo da proibição» '.

O tipo objectivo de ilícito do o n.°3 do artigo 275.° refere-se expressamente a 'armas proibidas', punindo em relação a estas o mesmo tipo de comportamentos descritos no n.° 1 do mesmo artigo.
Este n° 1 consagra diversas modalidades de comportamento ilícito, interessando, para o caso concreto, a modalidade de 'detenção', a qual se traduz numa posse precária, não carecendo o agente do tipo legal de quaisquer especificidades, podendo ser qualquer pessoa que pratique aquelas actividades tipificadas.
Trata-se ainda de um crime de realização permanente, iniciando-se o seu preenchimento com qualquer um dos comportamentos descritos no n.° 1, e mantendo-se enquanto perdurar a forma de actuação.
O art.° 4.° do Decreto Preambular do Código Penal, define o conceito de arma como qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim.
Voltando ao caso sub judice.
Avaliados os factos provados, importa atender ao disposto no art.° 3.°, n.° 1, alínea f) do Decreto Lei n.° 207-A/75, de 17-04, nos termos do qual é proibida a detenção de 'armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse '.
In casu, não é o mero conceito de 'arma branca' que importa considerar, pois não
existem quaisquer dúvidas que uma faca de cozinha com cabo de madeira, com o
comprimento total de 25,5 cm, sendo 15 cm de lâmina, integra este conceito.
E consabido, por outro lado, que a interpretação e a aplicação deste conceito de 'armas brancas', proibidas pelo art. 3.°, n.° 1, alínea f) do Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, em articulação com a incriminação de condutas previstas no art. 275° n° 3 do Código Penal, foi controversa, gerando decisões díspares, questionando-se, precisamente, se as armas brancas, designadamente facas e navalhas, deveriam ser revestidas de 'disfarce' para serem consideradas 'armas proibidas', ou se o 'disfarce' referido na citada alínea f) era atributo exclusivo das armas de fogo aí mencionadas.

Esta questão, que dividiu a doutrina e a jurisprudência, despoletou a publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 4/2004 (in Diário da República – I Série –A, n.° 112, de 13 de Maio de 2004), nos termos do qual: 'Para efeito do disposto no artigo 275. 0, n.° 3 do Código Penal, uma navalha com 8,5 cm ou 9,5 cm de lâmina só poderá considerar-se arma branca proibida, nos termos do artigo 3.° n. ° 1 alínea J) do Decreto-Lei n.° 207-A175, de 17 de Abril, se possuir disfarce e o portador não justificar a sua posse '.
Em conformidade com este douto Acórdão algo tem de acrescer à arma branca, seja faca, navalha ou outro instrumento cortante, independentemente do comprimento da lâmina, para que possa ser considerada arma proibida. E esse algo mais é precisamente o já aludido 'disfarce', conforme a alínea O do n.° 1 do artigo 3.°.
E por 'disfarce' entende-se qualquer 'dissimulação da arma a tal ponto que até poderá confundir-se com qualquer outro objecto ou instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade ', estando, normalmente, subjacente a esta dissimulação a intenção deliberada de ocultar a natureza da arma e, desse modo, agravar a sua intrínseca perigosidade.
É, pois, este carácter insidioso, de surpresa, que reduz as capacidades de defesa que integra a classificação de arma proibida (cf. douto acórdão da Relação de Lisboa, de 12.9.2007, in http//www.dgsi.pt).
Considera-se, portanto, na senda daquele douto Acórdão Uniformizador, que a perigosidade oculta acaba por ser mais agressiva, pois, quando usada com recurso ao elemento surpresa, reduz ou impossibilita a defesa da vítima.
Neste sentido, o Acórdão do STJ de 7 de Março de 1996 (Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, Acórdãos do STJ, IV, p. 227) decidiu que 'Arma com disfarce é aquela que encobre a sua verdadeira natureza, ou dissimula o seu real poder '.
Realce-se, ainda, que o douto Acórdão uniformizador não visou expressamente definir o tamanho da lâmina para caracterizar a proibição da arma, antes versando sobre a exigência de disfarce ou não, conforme os doutos arestos contraditórios que determinaram a sua publicação. A referência à medida da lâmina é meramente circunstancial, como se decidiu no douto acórdão da Relação de Coimbra de 6.12 de 2006, publicado no referido site, cujo teor, a este respeito, se subscreve na
íntegra, onde se refere, no que ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência respeita, (...) que não toma posição sobre o comprimento da arma branca, designadamente sobre s e tem de ser superior a 8,5 cm ou 9,5 cm. Mas apenas sobre a questão em que divergiam os acórdãos fundamento – saber se a arma branca, para efeito do crime em questão, tinha de ter ou não 'disfarce'. A questão ou thema decidendum era apenas a exigência do disfarce na arma branca e não o comprimento da lâmina (.) Assim, para que os factos integrem o referido crime de detenção de arma proibida, p e p pelo art. 275 n° 1 e 3 do C. P., por referência à alínea J do n° 1 do art. 3° DL 207-A/75 de 17.4, ou teremos que estar perante uma arma branca com qualquer disfarce dissimulados da sua natureza (.) ou então perante um qualquer instrumento sem aplicação definida mas apto a ser usado como arma letal de agressão sem que o portador justifique a sua posse '.
Daí a necessidade que legislador teve de empregar um maior rigor na definição da arma branca proibida nos arts. 2° e. 86° n.° 1 d), da Lei n.° 5/2006, rigor a que aquele douto Acórdão de fixação de jurisprudência já apelava, designadamente, no que concerne, também, ao tamanho da lâmina.
Aquela interpretação foi também a acolhida nos doutos acórdãos da Relação de Guimarães de 24.5.2004, da Relação do Porto, de 13.12.2006, declarando-se, neste ultimo douto aresto que ' Não é arma proibida uma simples faca com cabo de 13 cm e lâmina de 19cm '.
No mesmo sentido, e já ao abrigo da legislação vigente, decidiram os doutos acórdãos da Relação de Évora de 4.3.2008 e da Relação de Guimarães de 9.2.2009, todos publicados no mesmo site, referindo-se no primeiro que 'Uma faca de cozinha tem aplicação definida (..) Sendo indubitavelmente uma arma branca, porque tem uma lâmina com mais de 10 cm de comprimento, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma proibida' e no segundo aresto também se declarou que ' A detenção de uma faca de cozinha não integra o crime de detenção de aram proibida (...) independentemente do comprimento da lâmina ou da superficie cortante '.
Harmonizando, pois, o douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência com as razões que motivaram a decisão que contempla, conclui-se que, na situação em apreço, a detenção da arma, atenta a sua natureza, com aplicação definida, facto que é do conhecimento comum, pois trata-se de uma faca de cozinha, sem qualquer disfarce, independentemente do tamanho da lâmina, não constitui ilícito penal, ainda que o detentor não justifique a sua posse, pois, detendo um objecto de aplicação definida não tem de a justificar. Acresce que a expressão proferida pelo arguido, conforme o douto acórdão recorrido já salienta, não constitui elemento típico do ilícito em causa, pelo que é irrelevante nas circunstâncias em que ocorreu.
O regime supra enunciado, vigente na data da prática dos factos, tal como se consignou no douto acórdão recorrido, é, por isso e pelas razões apontadas, concretamente o mais favorável.
Nesta conformidade, não cometeu o arguido o crime de detenção de arma proibida, pelo que, nesta parte, procederá o recurso por ele interposto.
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Decisão
Em face do exposto, acordam em os juízes da 9a secção deste Tribunal em julgar o recurso parcialmente procedente e absolver o arguido da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 275°, n.°s 1 e 3 do C. Penal, confirmando, no mais, o douto acórdão recorrido, ou seja, a condenação do arguido como autor material de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347° do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 (um) ano, com acompanhamento por regime de prova em termos a definir pelo Instituto de Reinserção Social;
Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 Ucs.
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(Acórdão elaborado pela relatora).

Lisboa, 8 de Outubro de 2009
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