Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 17-12-2008   Inquérito contra pessoa não determinada. Nulidades: 'falta de inquérito' e 'omissão de diligências'. Ligação ilegal à rede TVcabo: crime/contra-ordenação.
I – O Ministério Público não deve abrir inquérito quando o comportamento denunciado não integra a prática de qualquer infracção criminal.
II – Tendo o Ministério Público aberto inquérito, a não realização nele de qualquer diligência não constitui nulidade, sanável ou insanável.
III – Na fase de inquérito, o único acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido, se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Penal, ou seja, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la.
IV – Num inquérito que não correu contra nenhuma pessoa determinada, não era obrigatório realizar qualquer interrogatório, razão pela qual não pode existir nulidade do inquérito, por insuficiência do mesmo, nos termos do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, e 120.º, n.ºs 1, 2, al. d), e 3, al. c), do Código de Processo Penal
V – O estabelecimento de uma ligação não autorizada à infra-estrutura de rede da “TV Cabo”, que permite a fruição de um serviço não contratualizado e, por isso, não pago e causa um prejuízo patrimonial àquela empresa, não consubstancia a prática de um crime de furto porquanto o sinal de televisão recebido por cabo não é uma coisa, no sentido em que este conceito é utilizado no artigo 203.º do Código Penal, não sendo o sinal equiparável a qualquer forma de energia.
VI – Esses mesmos factos também não integram o tipo descrito no n.º 2 do artigo 221.º do Código Penal (burla nas comunicações) uma vez que a ligação efectuada não se destina a «diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações», nem tem sequer esse efeito.
VII – Um tal comportamento consubstancia apenas a contra-ordenação prevista e punida nos artigos 104.º, n.º 1, alínea d), e 113.º, n.ºs 1, alínea sss), e 3, da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de Maio.
VIII – Por isso, também não existe a nulidade insanável prevista na alínea d) do artigo 119.º do Código de Processo Penal.
Proc. 10876/08 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa





I – RELATÓRIO
1 – No dia 1 de Setembro de 2008, a Sr.ª juíza de instrução colocada no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras proferiu o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
«II. Da nulidade de insuficiência de inquérito
I – Os presentes autos tiveram origem em queixa-crime apresentada por CATVP – TV Cabo..., S.A., contra desconhecidos.
Na referida queixa, a denunciante procede à descrição de factualidade susceptível de ser qualificada como crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, e/ou como crime de burla nas comunicações, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
O Ministério Público arquivou liminarmente o inquérito, não realizando qualquer acto de investigação, considerando em síntese que:
 Os factos descritos são insusceptíveis de serem qualificados como crime de furto, porquanto o bem 'furtado' é a informação e a informação não é considerada como sendo 'coisa' para o direito penal, dado não ser mensurável. Pelo que, ao não poder haver subtracção de coisa móvel alheia, não pode haver crime de furto; e
 São igualmente insusceptíveis de serem qualificados como crime de burla nas comunicações, uma vez que o preenchimento do tipo de crime em causa, implica que a utilização dos dispositivos electrónicos previstos na lei tenham a virtualidade de diminuir, alterar ou impedir o normal funcionamento dos serviços de telecomunicações, o que considera que não ocorreu no caso em apreço;
concluindo assim pelo arquivamento, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do Código Penal.

II – Inconformada com o despacho proferido, a denunciante veio requerer a abertura da instrução, arguindo desde logo a nulidade do inquérito, por insuficiência do mesmo, nos termos da conjugação do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, e 120.º, n.ºs 1 e 2, al. d), e 3, al. c), todos do Código de Processo Penal.
*
III – Cumpre apreciar.
Constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência do inquérito – artigo 120.º/1/d) CPP.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação – artigo 262.º/1 CPP – sendo que o Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das referidas finalidades – artigo 267.º Código de Processo Penal.
No caso dos autos, e tal como a assistente invoca, a Digníssima Magistrada do Ministério Público arquivou liminarmente os autos, não realizando qualquer diligência de investigação, invocando que os factos descritos na queixa apresentada eram insusceptíveis de serem qualificados como crimes de furto ou burla nas comunicações.

IV – Entrando no conhecimento da arguida nulidade, dir-se-á liminarmente que assiste razão à assistente relativamente à omissão dos actos de inquérito porquanto os actos peticionados pela assistente apresentam verdadeiro interesse probatório para efeito de identificação dos agentes que tenham sido intervenientes na captação indevida de sinal, bem como para aferir qual a efectiva realidade existente e consequentemente qual a qualificação jurídica correcta que a mesma pode revestir, não podendo desde logo o Ministério Público concluir, relativamente ao crime de burla nas comunicações, pela não verificação de qualquer perturbação no normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações, se não realizou sequer qualquer diligência para aferir se houve ou não perturbação.
Aliás, é desde logo questionável se o facto de alguém aceder a um 'TAP', fazendo uma ligação para uma casa que não tem autorização para tal, não será já uma perturbação ao referido normal funcionamento, uma vez que o serviço chega a quem não podia, podendo até verificar-se uma efectiva perturbação da fruição dos verdadeiros clientes da TV Cabo, uma vez que como é por demais consabido, a sobrecarga dos postos transmissores de sinal faz com que por vezes a qualidade do sinal que chega aos demais utilizadores daquele posto seja menor, retirando assim qualidade ao serviço prestado.
No caso dos autos, não sabemos se se verificou ou não algo similar, porquanto, como já referimos, não houve lugar à realização de qualquer diligência de investigação, presumindo o Ministério Público que não se verificou qualquer perturbação.
Também relativamente ao crime de furto, o arquivamento liminar foi, no nosso entender, precipitado, porquanto, ao contrário do invocado no despacho de arquivamento, não é de forma alguma pacífico que o sinal da TV Cabo não possa ser considerado uma coisa para o direito penal, ainda que incorpórea, e que como tal possa ser alheia e objecto de subtracção.
Veja-se a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/01/98, segundo o qual 'O sinal foto-eléctrico televisivo, que é colocado à disposição de alguém na tomada da casa que habita e que aí foi conduzido pelos serviços e material disponibilizados e pertencentes à TV Cabo, é, juridicamente, uma coisa móvel (incorpórea) de que aquele é proprietário, por força do contrato de prestação de serviços que celebrou com esta empresa.'

V – Pelo exposto, julgo verificada a nulidade de insuficiência de inquérito e de omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade e, consequentemente, julgo inválido o despacho de encerramento de inquérito proferido nos autos bem como todo o processado subsequente.
Pelo que determino a devolução dos autos ao Ministério Público.
Sem custas.
*
III. Requerimento de abertura de instrução “stricto sensu”:
Fica prejudicada a apreciação da requerida abertura de instrução, face ao despacho supra.
*
Notifique e, após trânsito, devolva os autos aos serviços do Ministério Público».

2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. «Adquirida a notícia do crime, a direcção do respectivo inquérito cabe exclusivamente ao Ministério Público (artigo 263.º do Código de Processo Penal), a quem compete o exercício da acção penal.
2. No exercício das suas competências, o Ministério Público rege-se por critérios de oficiosidade, objectividade e legalidade, cabendo-lhe proceder à realização das diligências que considerar úteis e necessárias com vista a fundamentar uma decisão de acusação ou de arquivamento do inquérito.
3. Recebida a queixa, deve o Ministério Público analisar crítica e ponderadamente a factualidade objecto da mesma para verificar se é susceptível de configurar a prática de crime, praticando depois os actos e assegurando os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no artigo 262.º, n.º 1 Código de Processo Penal, ou, caso a factualidade denunciada não seja susceptível de integrar a prática de ilícito de natureza criminal, procedendo ao arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
4. No caso destes autos, o Ministério Público procedeu à análise crítica da factualidade denunciada, bem como dos documentos juntos com a queixa, e concluiu que a mesma não configurava a prática dos crimes de furto ou de burla informática ou de quaisquer outros, pelo que foi proferido despacho de arquivamento do inquérito nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, não se impondo logicamente a realização de qualquer outra diligência de investigação, por inútil e desnecessária.
5. Não constitui uma nulidade de insuficiência de inquérito, prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal, a omissão de realização de diligências de investigação quando, da mera análise critica sobre a factualidade denunciada, se conclui pela inexistência de ilícito de natureza criminal.
6. A douta decisão recorrida, ao julgar verificada a nulidade de insuficiência de inquérito e de omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade e ao devolver os autos ao Ministério Público, violou o disposto nos artigos 262.º, 277.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, al. d) e 122.º, todos do Código de Processo Penal;
7. Perfilhando a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal um entendimento divergente do Ministério Público e considerando que os factos participados poderão configurar ilícito de natureza criminal, não lhe é legalmente admissível devolver o inquérito arquivado ao Ministério Público para prosseguimento da investigação, competindo-lhe declarar aberta a instrução e proceder à realização das diligências requeridas pela assistente ou a quaisquer outras que entenda necessárias, nos termos do disposto nos artigos 289.º e 290.º do Código de Processo Penal.
Por todo o exposto, revogando-se o despacho em análise e substituindo-se por outro que proceda à apreciação do requerimento de instrução, será feita justiça».

3 – Não foi apresentada qualquer resposta a essa motivação.

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 78.

5 – Neste tribunal, a Sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto.

II – FUNDAMENTAÇÃO
6 – O presente recurso tem por objecto o despacho que julgou verificada a nulidade do inquérito, por insuficiência do mesmo, nos termos do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, e 120.º, n.ºs 1, 2, al. d), e 3, al. c), do Código de Processo Penal, e determinou a devolução dos autos ao Ministério Público.
De acordo com a indicada alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, constitui nulidade dependente de arguição «a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios».
Na fase de inquérito, o único acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido, se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 272.º do mencionado diploma legal, ou seja, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la.
Uma vez que o presente inquérito não correu contra nenhuma pessoa determinada, não era obrigatório realizar qualquer interrogatório, o que desde logo impedia que se julgasse verificada a mencionada nulidade.

7 – Poder-se-ia, no entanto, dizer que tinha sido cometida a nulidade insanável prevista na alínea d) do artigo 119.º do mesmo diploma porquanto, num processo comum, o inquérito é uma fase legalmente obrigatória e não tinha sido realizada qualquer diligência durante essa fase processual. Não tinha sido realizado inquérito.
Porém, decorre do n.º 2 do artigo 263.º do Código que apenas a notícia de um crime dá lugar à abertura do inquérito e, como veremos, os factos denunciados pela assistente não consubstanciam a prática de qualquer crime.
Daí que não tenha sido também praticada a apontada nulidade insanável.

8 – Resta fundamentar sumariamente a afirmação que se fez de que os factos denunciados não consubstanciavam a prática de qualquer crime, nomeadamente os de furto (artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal) e de burla nas comunicações (artigo 221.º, n.º 2, do mesmo diploma).
A assistente, na queixa apresentada, disse que tinha sido detectada a existência de uma ligação não autorizada à infra-estrutura de rede da “TV Cabo”, o que permitia a fruição de um serviço não contratualizado e, por isso, não pago, o que lhe causava um prejuízo mensal que quantificou.
Tais factos não consubstanciam, a nosso ver, a prática de um crime de furto porquanto o sinal de televisão recebido por cabo não é uma coisa, no sentido em que este conceito é utilizado na primeira daquelas disposições incriminadoras , não sendo o sinal equiparável a qualquer forma de energia .
Eles também não integram o tipo descrito no n.º 2 do artigo 221.º do Código Penal uma vez que o meio de ligação utilizado não se destina a «diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações», nem tem sequer esse efeito. Para tanto basta ver que se o contrato de prestação do serviço a que foi posto termo em Dezembro de 2005 se tivesse prolongado no tempo nenhuma perturbação ocorreria.
Acrescente-se apenas que não se compreenderia a decisão de criminalizar, no n.º 3 do artigo 104.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, o comportamento daqueles que fabricam, importam, distribuem, vendem, locam ou detêm, para fins comerciais, «equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível, sem autorização do prestador do serviço», prevendo a aplicação de uma pena de prisão até 3 anos ou de uma pena de multa, quando se punia simultaneamente com a mesma pena abstracta, por força de uma disposição do Código Penal, aqueles que apenas tinham, ilicitamente, acedido ao serviço, o que aconteceria se se aceitasse a pretensão da assistente e a posição do tribunal de 1.ª instância.
Mas essa posição ainda é menos sustentável a partir do momento em que entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 176/2007 , de 8 de Maio, que, tendo alterado a mencionada Lei das Comunicações Electrónicas, passou a punir como contra-ordenação a «aquisição, utilização, propriedade ou mera detenção, a qualquer título, de dispositivos ilícitos para fins privados do adquirente, do utilizador, do proprietário ou do detentor, bem como de terceiro» [nova alínea d) do n.º 1 do artigo 104.º e novo n.º 3 do artigo 113.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro].

9 – Em resumo: não consubstanciando o denunciado comportamento qualquer infracção criminal, não haveria lugar à abertura de um inquérito. Tendo sido aberto, a não realização nele de qualquer diligência não constitui, pelo sumariamente exposto, qualquer nulidade, sanável ou insanável.
Por isso, não se pode deixar de revogar a decisão recorrida.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público revogando o despacho recorrido que tinha declarado a nulidade por insuficiência de inquérito e determinado a devolução dos autos ao Ministério Público.
Sem custas.



Lisboa, 17 de Dezembro de 2008

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)
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