JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
 
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  ACTC nº 311/08
   Título
   Sumário
Processo n.º 753/07
2ª Secção Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional

I- Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., S.A., e B., Lda., e recorrido o C., Lda., vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), nos seguintes termos:
«[…] 9. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.° 1 do art.° 70.º da Lei n.° 28/82 na sua redacção actual.
10. As ora Recorrentes pretendem ver apreciada a inconstitucionalidade da norma segundo a qual a excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem prevista no art. 494.°, al. j) do CP Civil não é aplicável nos casos em que a
“dificultas prestandi” de uma das partes de um contrato, torna inexigível que ela cumpra o acordo de arbitragem. Ainda segundo esta norma o direito de acesso
à justiça consagrado no art. 20.° da Constituição está situado num plano superior ao “direito à arbitragem” das Recorrentes (fls. 982); pelo que não é possível opor-lhe, de forma procedente, aquela excepção dilatória.
11. A coberto de uma interpretação conforme à Constituição, o Tribunal Judicial de Braga e o Tribunal da Relação de Guimarães, julgaram, afinal, a norma inaplicável ao caso concreto.
12. O que viola os princípios constitucionais da protecção da confiança e determinabilidade da lei aplicável pelo tribunal, para além do art. 209.°, n.° 2 da Constituição, uma vez que os tribunais arbitrais são uma das categorias de tribunais previstas na Constituição.
13. Norma essa que é pois inconstitucional.
14. Nos termos do n.° 1 do art. 280.° da Constituição são recorríveis para o tribunal Constitucional,”as decisões proferidas pelos restantes tribunais em que, a coberto de uma interpretação conforme à Constituição, se haja julgado, afinal a norma inaplicável ao caso concreto. E isto por se considerar que tais situações são, na prática, equiparáveis aquelas em que tenha havida uma pura e simples recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade” - Luís Nunes de Almeida, A Justiça Constitucional no quadro das funções do Estado, in, Justiça Constitucional e espécies, conteúdo e efeitos das decisões sobre a Constitucionalidade de normas, Lisboa, 1987, III, pag.124.
15. Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, para efeitos de decisões que tenham recusado a aplicação de norma por inconstitucionalidade, não é necessário que o tribunal tenha considerado a norma absolutamente inconstitucional; é suficiente que tenha recusado a sua aplicação num dos seus sentidos possíveis por motivo de inconstitucionalidade — J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, A Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 1993, pág. 1019.
16. A inconstitucionalidade da norma supra, foi suscitada pelas recorrentes nos articulados, na 1ª instância, nas alegações do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães e também nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e no requerimento de reclamação.[…]»

2. Em resposta ao convite ao aperfeiçoamento formulado pelo relator, a fls. 651, os recorrentes vieram dizer o seguinte:
«As ora Recorrentes pretendem ver apreciada a inconstitucionalidade da norma segundo a qual a excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem prevista no art. 494.º, al. j) do CP Civil não é aplicável nos casos em que a
“dificultas prestandi” de uma das partes de um contrato, torna inexigível que ela cumpra o acordo de arbitragem. Ainda segundo esta norma o direito de acesso
à justiça consagrado no art. 20.° da Constituição está situado num plano superior ao “direito à arbitragem” das Recorrentes (fls. 982); pelo que não é possível opor-lhe, de forma procedente, aquela excepção dilatória. Como refere Gomes Canotilho e Vital Moreira “Constituição da Republica Portuguesa Anotada”, Coimbra, 1993, pág. 1019, para efeitos de recursos das decisões que tenham recusado a aplicação de norma por inconstitucionalidade, não
é necessário que o tribunal tenha considerado a norma absolutamente inconstitucional; É suficiente que tenha recusado a sua aplicação num dos sentidos possíveis por motivo de inconstitucionalidade. De acordo com Rui Medeiros in “A decisão de inconstitucionalidade”, Universidade Católica Editora,
1999, pág. 325, a concepção hoje dominante no Tribunal Constitucional é de que são recorríveis para este Tribunal, nos termos da al. a) do n.° 1 do art. 280 da Constituição “as decisões proferidas pelos restantes Tribunais em que, a coberto de uma interpretação conforme à constituição, se haja julgado, a final, a norma inaplicável ao caso concreto. E isto “por se considerar que tais situações são, na prática, equiparáveis aquelas em que tenha havido uma pura e simples recusa de aplicação de norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade”. Assim sendo e salvo melhor opinião V. Exa, Exmo. Conselheiro Relator que, suprirá se assim o entender conveniente, entendem as Recorrentes que a decisão recorrente é recorrível para o Tribunal Constitucional, nos termos da al. a) do n.° 1 do art. 280.° da Constituição sendo, consequentemente, o presente recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.° 1 do art.° 70.° da Lei
28/82 na sua versão actual. A tudo acresce que a inconstitucionalidade da norma supra, foi suscitada pelas recorrentes nos articulados, na 1.ª instância, nas alegações do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães e também nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e no requerimento de reclamação.»

3. As recorrentes apresentaram alegações onde concluem o seguinte:
« I. A decisão do tribunal “a quo” que, a coberto de uma interpretação conforme
à Constituição, julgou inaplicável a norma do art. 494.º, al. j) do CPC ao caso concreto, é recorrível para o Tribunal Constitucional. II. A norma segundo a qual a excepção dilatória decorrente da violação de convenção de arbitragem se não verifica quando ocorra uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes dessa convenção de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem, pelo que, em tal caso, pode submeter o litígio que a oponha à outra parte aos tribunais estaduais, é inconstitucional, violando, nomeadamente, os princípios constitucionais da protecção da confiança e da determinabilidade da lei aplicável. III. Os tribunais arbitrais são verdadeiros tribunais, fazendo parte das categorias de tribunais previstas na Constituição da República. IV. A administração da justiça não é um monopólio exclusivo dos tribunais estaduais. V. O direito de acesso à justiça, consagrado no art. 20.º da Constituição da República, não é susceptível de ser violado por via da aplicabilidade da norma do art. 494.º, al. j) do CPC. VI. Do mesmo modo, esta norma não põe em causa nenhum valor fundamental do ordenamento jurídico português, consagrado constitucionalmente. VII. Não é aceitável o entendimento do tribunal “a quo”, segundo o qual a aplicação da norma do art. 494.º al. j) do CPC, implica a denegação de acesso à justiça, mesmo na situação de insuficiência económica de uma das partes. VIII. A autora da acção nunca tomou a iniciativa de constituir o tribunal arbitral, pelo que nem sequer foi apurado que ela não teria podido prosseguir a instância arbitral sem custear os respectivos custos de funcionamento, já que esta é uma decisão que estava, e está, na disponibilidade das partes e do próprio tribunal arbitral. IX. Não é, pois, possível, concluir, como o fez o tribunal “a quo”, que a aplicação da norma do art. 494.º, al. j) do CPC, colocava em causa o dever do Estado de assegurar a todos o direito de acesso à justiça e o dever de impedir que este direito seja denegado por insuficiência de meios económicos. X. A aplicabilidade da norma do art. 494.º, al j) do CPC, não significa, pois, a denegação do direito de acesso à justiça, com referência à parte contra a qual foi deduzida a mencionada excepção dilatória. XI. A validade da convenção de arbitragem estabelecida pelas partes, nunca foi questionada pela autora, nos termos do art. 437.º do Código Civil, à luz do instituto da resolução ou alteração do contrato por alteração das circunstâncias. XII. A norma cuja inconstitucionalidade é objecto do presente recursos, viola os princípios constitucionais da protecção da confiança e da determinabilidade da lei aplicável, e bem assim, o disposto no art. 209.º da Constituição da República, na medida em que desconsidera os tribunais arbitrais que fazem parte da administração da justiça, atenta a sua natureza, o seu carácter jurisdicional, o estatuto de independência e imparcialidade dos respectivos juízes.»

4. O recorrido contra-alegou, suscitando a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, e concluindo o seguinte:
«1. Carecem as Recorrentes de qualquer razão para obter a fiscalização concreta da decisão do tribunal a quo, sendo que não se vislumbra nos argumentos apresentados pelas mesmas qual a inconstitucionalidade ou qual a norma legal ou constitucional violada pela douta decisão recorrida.
2. O presente recurso constitui um flagrante abuso de direito na medida em que as Recorrentes se servem do mesmo para protelar o julgamento da presente acção que, note-se, foi considerada prejudicial à acção de falência por Acórdão do STJ de 12.10.2004. Falência essa que foi inclusive revogada também por acórdão do STJ. Sendo que existe ainda uma outra acção, de despejo, movida pelas Recorrentes contra a Recorrida, em que esta ficou credora no montante de cerca de € 100.000,00 por benfeitorias efectuadas no locado. Assim sendo, dúvidas não há, de que as Recorrentes pretendem protelar ao máximo o julgamento desta acção, porque não têm pressa em pagar, enquanto que para a Recorrida tem os credores à porta para receber, credores, dentre os quais, se destacam o Estado e a Segurança Social.
3. Desde logo, inexiste total fundamento para ser efectuada a fiscalização concreta da constitucionalidade, pois, contrariamente ao alegado, mas não demonstrado, note-se, porque importante, pelas Recorrentes, não houve na decisão recorrida qualquer “recusa na aplicação duma norma com fundamento na inconstitucionalidade” (cfr. art. 280.°, n.° 1 al. a) CRP).
4. Como pode a decisão recorrida violar um preceito constitucional ao julgar improcedente uma excepção dilatória arguida pelas RR/Recorridas, por considerar que a convenção de arbitragem não podia ser aplicada, designadamente, por que houve uma alteração das circunstâncias em relação ao momento em que foi celebrada a convenção, encontrando-se a A./Recorrida neste momento em situação económica e financeira difícil, não tendo como custear um tribunal arbitral, nem um tribunal judicial, até mesmo por que litiga com apoio judiciário.
5. Ademais, a decisão do tribunal a quo fundamentou-se na norma do art. 20.º da CRP — no Acesso ao Direito e a uma tutela jurisdicional efectiva — pelo que não se compreende qual a norma que foi recusada aplicar e, muito menos, qual é a norma que as Recorrentes pretendem ver declarada inconstitucional. Será que é a norma do art. 20.° da CRP que as Recorrentes pretendem que seja declarada inconstitucional por força da norma de direito adjectivo constante do art.
494.º, al. j) do CPC?
6. Ou seja, portanto, parece que as Recorrentes pretendem que a norma do art.
494.º, al. j) do CPC seja sobreposta e considerada uma norma superior à norma do art. 20.° da CRP.
7. Acresce que, as Recorrentes invocam “princípios constitucionais da confiança e determinabilidade da lei aplicável”, sendo estes princípios, na verdade, mais um argumento a favor para que a presente acção seja apreciada pelos tribunais judiciais, pois, a Recorrida têm maior confiança nestes tribunais, até porque as decisões dos tribunais arbitrais têm vindo a estar sob suspeitas.
8. Aliás, as Recorrentes não apresentam um único argumento para que a presente acção seja apreciada pelos tribunais arbitrais, pois, se nem a celeridade é do interesse delas que interpõem recursos e mais recursos com vista unicamente a protelar o andamento da presente acção!
9. Decidiram bem os tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias ao julgarem improcedente a excepção dilatória invocada pelas Recorrentes de violação de convenção de arbitragem, decisões para onde se remete expressamente e se dão aqui como integralmente reproduzidas, por nelas se fazer uma correcta aplicação da lei e da nossa Constituição.
10. De facto, e de acordo com a posição plasmada no Acórdão do STJ de 18/01/2000 a força expansiva do direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente prevista e protegida, possibilita o recurso aos tribunais judiciais para a resolução de conflitos que, em princípio apenas poderiam ser submetidos a apreciação do tribunal arbitral.
11. O direito de acesso aos tribunais é um direito fundamental, material e formalmente constitucional, inalienável, e que faz parte do núcleo duro da nossa CRP, que não pode ser alterado, e que, necessariamente, se sobrepõe à exigência de cumprimento de uma convenção de arbitragem, celebrada entre as partes, ou seja, sobrepõe-se aos princípios de autonomia privada e autodeterminação e não pode NUNCA ser negado por insuficiência de meios económicos.
12. É apenas através dos tribunais judiciais que o Estado garante o direito de acesso à justiça aos cidadãos com insuficiência de meios económicos, mediante o instituto do apoio judiciário.
13. Recorrendo aos tribunais arbitrais não seria possível à recorrida socorrer-se do instituto do apoio judiciário, o que equivaleria a negar-lhe o seu direito fundamental de acesso à justiça, seja como for, sempre se verificaria no caso sub iudice uma inexigibilidade da prestação, devido à existência de direitos de plano superior que se opõem aos direitos das Recorrentes.
14. Perante todo o exposto, improcedem todas as conclusões formuladas pelas Recorrentes por serem inócuas, contraditórias e carecerem de fundamentação de facto e de Direito, e ainda por violarem, entre outras, as normas constantes dos art.s 20.º, 204.º, 280.°, n.° 1 al. a) da CRP e 70.° n.° 1 al. a) LTC.»

5. As recorrentes responderam à questão prévia, concluindo pela sua improcedência.

6. Compulsados os autos, apura-se o seguinte:
− O C., Lda., intentou acção contra A., SA, e B., Lda., pedindo a condenação da primeira ré a pagar-lhe as quantias correspondentes ao crédito emergente de resolução ilegal de contrato de franchising e às rendas vencidas, relativas a contrato de arrendamento celebrado pela autora com terceiros (com vista a instalar o centro de ensino a que se refere o contrato de franchising) e a condenação de ambas as rés a pagar-lhe a quantia correspondente ao crédito da autora emergente de obras e benfeitorias realizadas no locado objecto de subarrendamento (para onde a autora transferiu as instalações do centro de ensino a que se refere o contrato de franchising).
− Na contestação as rés invocaram a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem, tendo a autora pugnado pela sua improcedência.
− Efectuadas diligências de prova requeridas, foi proferida decisão, pelo Tribunal da Comarca de Braga, julgando improcedente a invocada excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem e declarando este tribunal judicial competente para a preparação e julgamento da acção. Nesta decisão conclui-se o seguinte: «Conciliando desta forma todo o nosso ordenamento jurídico (lei constitucional e lei ordinária), e porque o direito de acesso à justiça é um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito das rés (o direito potestativo a exigir a arbitragem), temos que concluir que difficultas praestandi da autora torna inexigível que ela cumpra o acordo de arbitragem e que não é assim possível opor-lhe, de forma procedente, a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem».
− Desta decisão as rés interpuseram recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Guimarães, alegando, além do mais, que «a não aplicação do disposto no artigo
494.º, alínea j), do CPC, ainda que por força da prevalência do artigo 20.º da CRP é, na prática, equiparável àquela em que tenha havido uma pura e simples recusa da aplicação da referida norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, para além de violar os princípios constitucionais da protecção da confiança e determinabilidade da lei aplicável pelo tribunal, é inconstitucional» (cfr. conclusão n.º 21 do recurso, a fls. 85 dos autos).
− Por acórdão de 05.03.2006, o Tribunal da Relação de Guimarães negou provimento ao agravo, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida. Lê-se neste acórdão, na parte que agora releva: «[…] Destes princípios resulta que, existindo uma convenção de arbitragem e ocorrendo a superveniência de uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes da convenção a suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem pode deixar de a ela recorrer e submeter o litígio aos tribunais do Estado.
É a doutrina do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.01.00 a que a A. faz referência e à qual aderimos, uma vez que, se assim não fosse, perante a impossibilidade de a parte custear as despesas da arbitragem, ficaria impossibilitada de aceder aos tribunais e obter a realização da justiça para o seu caso, frustrando-se o princípio constitucional de acesso ao direito. […] Ora, não resultando provado que a situação económica e financeira da A. se deveu a culpa sua, impõe-se que se conclua pela improcedência da invocada excepção e pela competência dos tribunais judiciais. […]»
− Novamente inconformadas, as rés interpuseram recurso de agravo, em 2ª instância, para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em contradição de julgados.
− Por despacho de 29.03.2007 o recurso não foi admitido.
− Deste despacho as rés reclamaram para a conferência, não tendo tal reclamação sido admitida por despacho de 24.05.2007.
− Ainda inconformadas, as rés interpuseram o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
Tudo visto e apreciado, cumpre decidir.
II - Fundamentação

7. A recorrida sustenta a inadmissibilidade do presente recurso para o Tribunal Constitucional, por entender, em síntese, que as recorrentes não indicam expressamente a norma cuja inconstitucionalidade querem ver apreciada e porque, de qualquer forma, não suscitaram qualquer questão de inconstitucionalidade na primeira instância. Importa, assim, começar por apreciar a verificação dos pressupostos necessários ao conhecimento do objecto do recurso. Este vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, segundo a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que «recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade». Ora, os termos em que o recurso vem formulado levantam fundadas dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos do seu conhecimento, ainda que não pelas razões invocadas pela recorrida. Na verdade, e não obstante o convite a aperfeiçoamento que lhes foi dirigido, as recorrentes definem o objecto do recurso, em certos trechos, de forma pouco compatível com a via recursória seguida. Basta atentar no ponto n.º 10 do requerimento de recurso, integralmente reproduzido na resposta ao convite ao aperfeiçoamento e nas alegações. Aí se diz que «as ora Recorrentes pretendem ver apreciada a inconstitucionalidade da norma segundo a qual a excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem prevista no art. 494.º, al. j) do CP Civil não é aplicável nos casos em que a “dificultas prestandi” de uma das partes de um contrato, torna inexigível que ela cumpra o acordo de arbitragem. Ainda segundo esta norma o direito de acesso à justiça consagrado no art. 20.° da Constituição está situado num plano superior ao
“direito à arbitragem” das Recorrentes (fls. 982); pelo que não é possível opor-lhe, de forma procedente, aquela excepção dilatória.»
É notória a confusão, a nível das formulações, entre dois tipos distintos de recurso – o da alínea a) e o da alínea b) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC —, também patente no modo como se rematam as conclusões das alegações. Estas finalizam requerendo que o Tribunal Constitucional «declare inconstitucional a norma do tribunal “a quo” que, a coberto de uma interpretação conforme à Constituição julgou inaplicável a norma do art. 494.º, al. j) do CPC ao caso concreto, tudo com as legais consequências.» Quer dizer, em vez de impugnarem directamente a inaplicação desta norma ao caso concreto, decisão tomada para evitar a inconstitucionalidade da denegação do acesso à justiça (o que, logicamente, implicaria a defesa da constitucionalidade da orientação oposta), as recorrentes contestam o critério normativo (a “norma do tribunal ‘a quo”, na sua expressão) que levou à improcedência da excepção dilatória decorrente da violação de convenção de arbitragem, prevista naquela norma, qualificando-o como inconstitucional. Noutros termos: em vez de ter por objecto a norma do Código de Processo Civil que a decisão recorrida julgou inaplicável, o recurso parece incidir sobre a “norma” (de criação judicial), que justifica o juízo de inconstitucionalidade que está por detrás dessa decisão. Mas, não obstante estas graves deficiências de formulação, é inequívoco que as recorrentes pretendem ver apreciado se, em caso de insuficiência económica que impossibilite suportar os custos de um tribunal arbitral, o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20.° da Constituição torna inexigível o cumprimento de convenção de arbitragem, com a consequente inaplicação da excepção dilatória prevista no artigo 494.º, alínea j), do Código de Processo Civil. A questão de constitucionalidade suscitada é, ao fim e ao cabo, a de que «a coberto de uma interpretação conforme à Constituição, o Tribunal Judicial de Braga e o Tribunal da Relação de Guimarães, julgaram, afinal, a norma inaplicável ao caso concreto» (ponto n.º 11 do requerimento do recurso). Ou seja, o que se questiona não é a aplicação de um qualquer sentido normativo da norma, arguido de inconstitucional (caso em que o recurso adequado seria o da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC), mas antes a recusa da sua aplicação ao caso concreto, por força de um imperativo constitucional. Apesar da formulação algo contraditória, é esse o objecto do recurso que, ainda assim, se retira dos requerimentos e das alegações das recorrentes. O sentido da jurisprudência deste Tribunal e dos trechos doutrinários que os recorrentes invocam abona também claramente esta identificação do objecto do recurso. Para ela aponta, de igual modo, de forma particularmente clara, a seguinte caracterização do vício de que alegadamente enferma a decisão recorrida (ponto
36 das alegações, a fls. 681):
«A recusa da aplicação pelo tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação de Guimarães da norma estabelecida no art. 494.º, al. j), do CPC, ao caso concreto, ainda que a a coberto de uma interpretação conforme à Constituição, recusando assim a aplicação da lei com fundamento na sua inconstitucionalidade, representa um afastamento objectivo de uma disposição legal que não contraria nenhuma disposição ou princípio constitucional» A mais disso, esse alcance do recurso é perfeitamente adequado ao sentido da decisão recorrida (que no caso, atenta a não admissão do recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça, é o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que confirmou a decisão do Tribunal da Comarca de Braga). Do teor do acórdão recorrido resulta claro, na verdade, que o tribunal efectuou uma interpretação do artigo 494.º, alínea j), do Código de Processo Civil, que reduz o seu âmbito literal de aplicação, dele excluindo, em cumprimento do direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20.° da Constituição, os casos, como o dos autos, em que «existindo uma convenção de arbitragem e ocorrendo a superveniência de uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes da convenção a suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem». Em consequência, considerou o tribunal que a difficultas praestandi da autora (aqui recorrida) tornava inexigível que ela cumprisse o acordo de arbitragem e que não era possível opor-lhe, de forma procedente, a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem, podendo a mesma submeter o litígio aos tribunais do Estado.
É certo que o tribunal a quo não emitiu expressamente um juízo de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 494.º, n.º 1, alínea j) do CPC, fundamentador da sua frontal recusa de aplicação ao caso concreto – o que, admite-se, terá dificultado aos recorrentes uma mais directa e precisa identificação do objecto do recurso. Mas aquele tribunal só pôde proceder assim porque ressalvou do âmbito aplicativo desse preceito as situações de insuficiência de meios económicos, impeditivas da satisfação do direito de acesso à justiça. A inconstitucionalidade só não é declarada porque, justamente, a solução que a concretizaria é evitada através de uma interpretação redutora do alcance da norma, de forma alguma contida no seu teor literal. Ora, já no Acórdão n.º 137/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6.º vol.,
321 s.) se entendeu que «(…) à recusa de aplicação de norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, se há-de equiparar o juízo de inaplicabilidade de norma que decorra, única ou primacialmente, da sua interpretação conforme à Constituição».
É esta a situação presente, no caso dos autos. A improcedência da excepção dilatória da violação de convenção de arbitragem ou, dito de outro modo, a inaplicação do artigo 494.º, alínea j), do CPC, deveu-se apenas à adequação do seu alcance, por razões de constitucionalidade (o acolhimento do direito consagrado no artigo 20.º da Constituição), o que, naquele entendimento, que, nesse ponto, aqui se retoma, equivale a uma recusa de aplicação da referida norma. Como tal, a decisão é susceptível de recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Nem, em bom rigor dogmático, estamos perante uma “interpretação conforme à Constituição”. Esta, para “continuar a ser interpretação”, “não pode ir além dos sentidos possíveis, resultantes do texto e do fim da lei” (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., Coimbra, 2002, 1293). Não foi essa a operação aqui realizada. Por influxo constitucional, apenas para evitar uma conformação normativa tida por constitucionalmente inaceitável, a norma foi submetida a uma verdadeira reconstrução de conteúdo, com introdução de uma ressalva que o seu texto claramente não comporta. E, muito embora a sentença recorrida utilize também padrões normativos de direito comum, como a inexigibilidade ou a impossibilidade de cumprimento, eles não são tratados autonomamente, à margem do parâmetro constitucional, mas antes apreciados e aplicados à luz do quadro valorativo do artigo 20.º da Constituição. Tal decorre iniludivelmente da estruturação dos fundamentos em que se apoia a decisão recorrida. Na verdade, depois de referenciar o direito de acesso aos tribunais e de enfatizar a sua proeminência em face da autonomia privada, conclui a decisão: «Destes princípios resulta que, existindo uma convenção de arbitragem e ocorrendo a superveniência de uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes da convenção a suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem pode deixar de a ela recorrer e submeter o litígio aos tribunais do Estado» [itálico nosso]. Não sofre, pois, dúvida de que o direito de acesso à justiça é causa única do relevo exoneratório conferido àquelas situações. É expressamente por atendimento dessa garantia constitucional que a decisão recorrida pôde reforçar aquela conclusão, acrescentando que «verificada a insuficiência económica superveniente por culpa não imputável à parte, fica desonerada da obrigação de recorrer à arbitragem, podendo ter acesso aos tribunais judiciais sem que lhe possa ser oposta a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem.» A utilidade do conhecimento do recurso não pode, assim, ser posta em causa. Resta dizer que, no âmbito do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC é irrelevante saber se a questão foi, ou não, suscitada pela recorrente no decurso do processo, uma vez que esse não é um pressuposto deste tipo de recurso (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

8. Na medida em que admite a existência de tribunais arbitrais (artigo 209.º, n.º 2) a ordem jurídico-constitucional portuguesa não estabelece um monopólio estadual de administração da justiça. A apreciação e solução de um litígio podem ser confiadas a tribunais constituídos por particulares, gozando a decisão por estes proferida de força executiva idêntica à das sentenças judiciais (artigo
26.º, n.º 2, da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto). O reconhecimento daquela categoria de tribunais implica, naturalmente, que, no campo dos direitos disponíveis (artigo 1.º, n.º 1, da referida Lei), as partes em conflito possam a eles recorrer, por opção voluntária, expressa em convenção de arbitragem. Esta tem natureza de negócio jurídico processual (LEBRE DE FREITAS, “Algumas implicações da natureza da convenção de arbitragem”, Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, II, Coimbra, 2002,
627): assim como, através de um acordo de vontades, os sujeitos podem auto-disciplinar vinculativamente os seus interesses, em modelação, pelos próprios, das relações jurídicas materiais, assim também, no âmbito permitido, lhes é facultado atribuir competência a terceiros para dirimir litígios que tenham surgido, ou possam vir a surgir, na esfera dessas relações. Como qualquer outro negócio jurídico, a convenção de arbitragem produz efeitos juridicamente vinculantes para os sujeitos que a celebraram, sendo dotada das garantias de efectividade próprias do direito. Tratando-se de um acto de autonomia privada, e, portanto, de uma liberdade cujo exercício é constituinte de juridicidade (v. CASTANHEIRA NEVES, Fontes do direito. Contributo para a revisão do seu problema, Coimbra, 1985, 101 s.), a permissão e reconhecimento pelo ordenamento vêm necessariamente acompanhados da disponibilização de garantias e de meios de tutela, para que se cumpra a vontade negocialmente afirmada. Expressão disso mesmo é o disposto na alínea j) do artigo 494.º do CPC. A atribuição de competência ao tribunal arbitral, através da convenção de arbitragem, tem como efeito negativo impedir a resolução judicial do litígio. Sendo a acção instaurada no tribunal judicial, a convenção, desde que invocada, obstaculiza que esta instância conheça da causa e profira decisão de mérito. Em conformidade, a violação de convenção de arbitragem configura, nos termos daquela norma, uma excepção dilatória, por não estar verificado o pressuposto processual atinente à competência do tribunal demandado. Também assim, por via preclusiva, se assegura a observância da convenção de arbitragem. E a solução, na medida em que garante eficácia ao exercício da autonomia privada, presta tributo ao valor constitucional da autodeterminação, contribuindo para a sua realização, no campo específico das relações jurídicas. A autonomia privada constitui, verdadeiramente, “o modo de produção jurídica ajustado à autodeterminação” (PAULICK). E este direito, consagrado no artigo
26.º, n.º 1, como direito pessoal, expressa-se também, a nível do económico-empresarial, como liberdade de iniciativa (artigo 61.º, n.º 1), que comporta a liberdade de conformação jurídica das relações intersubjectivas. Pelo que o respeito pela vontade exteriorizada na convenção de arbitragem, sendo um factor de certeza e de segurança jurídicas, representa também a efectivação das consequências intencionadas pelo exercício da liberdade de acção dos sujeitos, de que o negócio jurídico é instrumento, na esfera das relações jurídicas. Simplesmente, essa efectivação não pode ser isolada dos referentes normativos de protecção constitucional de outros direitos ou valores, em cujo âmbito de previsão a situação também, prima facie, se integra, e que são susceptíveis de com ela colidir. Como este Tribunal tem reiteradamente decidido – cfr., em especial, o Acórdão n.º 254/99, tirado em plenário —, perante exigências conflituantes, só uma ponderação de bens, situativamente ajustada às circunstâncias concretas do caso decidendo, permite encontrar um critério de ordenação constitucionalmente conforme. No caso sub judice, foi dada como comprovada a impossibilidade de o recorrido arcar com as custas judiciais, por insuficiência de meios económicos. Para efectivação do direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses (artigo 20.º, n.º1, da CRP), estava, pois, em condições de beneficiar de apoio judiciário que, efectivamente, lhe foi concedido, na modalidade de apoio total, na acção por ele instaurada no tribunal judicial. A competência deste tribunal foi, todavia, impugnada pelo recorrente, réu nessa acção, com base na prévia estipulação de uma cláusula compromissória, que pretende ver integralmente executada. Não estando prevista a atribuição de apoio judiciário nos tribunais arbitrais, o cumprimento estrito desse acordo coloca o recorrido numa situação de indefesa. A situação conflituante nasce, precisamente, da impossibilidade de satisfação simultânea dos direitos pertinentemente invocados, ambos com tutela constitucional: o de liberdade negocial, como expressão da autodeterminação, a qual impõe a observância dos efeitos vinculativos do seu exercício sem vícios; o de tutela jurisdicional efectiva, que, nas circunstâncias concretas, aponta no sentido da inexigibilidade da sujeição a esses efeitos. E o modo como o problema se apresenta não permite uma solução que passe pela conciliação ou harmonização dos dois direitos em conflito, em termos de uma cedência recíproca deixar assegurada uma satisfação bastante de ambos. A concreta configuração dilemática deste conflito de direitos só admite uma solução optativa, de preferência absoluta de um, com sacrifício total do outro: ou se cumpre a convenção de arbitragem, o que importará a denegação de justiça a uma das partes, por entraves de capacidade económica; ou, como único meio de garantir a este contraente o acesso à tutela jurisdicional efectiva, se dá como competente o tribunal judicial, o que significa negar eficácia ao livremente acordado na convenção de arbitragem. Em configurações deste tipo, o atendimento mínimo do interesse sacrificado só pode alcançar-se através da definição rigorosa dos pressupostos casuísticos que conferem “razões de prevalência” ao interesse tutelado. Os factores de ponderação atendíveis apontam, todos eles, no sentido do segundo termo da alternativa acima enunciada. Na verdade, não está em causa, na estipulação de uma convenção de arbitragem, um aspecto nuclear da autodeterminação, uma sua manifestação primária directamente presa ao seu étimo fundante, mas um seu modo de exercício muito específico, atinente à indicação convencional da competência decisória de um tribunal, situado fora da orgânica judiciária. Não poderá dizer-se que este modo concreto de exercício da liberdade negocial seja postulado pela realização do indivíduo como pessoa. Não estamos, pois, dentro do domínio de “protecção máxima” da autodeterminação (cfr., quanto a este tópico e aos factores de ponderação, em geral, VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra,
2007, 320 s.). Em segundo lugar, o interesse sacrificado com a preterição do tribunal arbitral
é de ordem puramente instrumental, tem a ver apenas com o afastamento de uma via preferencial de apreciação e solução do litígio. Não é afectada, ainda que indirectamente, nenhuma posição material atinente à destinação dos bens. As possibilidades de realização do interesse final do recorrente, quanto ao objecto do litígio, mantêm-se intactas. Sendo assim, o sacrifício que a solução representa, para o interessado na via arbitral, afigura-se necessário e perfeitamente proporcionado à salvaguarda do bem protegido com a garantia da tutela jurisdicional. Satisfaz, pois, o critério da proporcionalidade, aqui aplicável, uma vez que, como se afirma no Acórdão n.º
254/99, «em geral, sempre que a solução de um conflito de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos se faça pela proibição do exercício de um direito em certas circunstâncias, seja a proibição explícita, implícita ou obtida por remissão, têm justificação as cautelas constitucionais contra as leis restritivas». A solução contrária, acarretando, pela perda de apoio judiciário, a perda definitiva e total do direito de levar à apreciação de um tribunal uma pretensão jurídica, é que redundaria na desprotecção absoluta da posição jurídica reivindicada, com lesão frontal e particularmente intensa de um valor primariamente constituinte do Estado de direito. Solução, esta, tanto mais chocante quanto é certo que a situação de insuficiência económica, fundamentadora do apoio judiciário, se prende com o objecto do litígio. Numa relação tipicamente geradora de dependência económica, como é a decorrente de um contrato de franchising, a quebra do vínculo representa muitas vezes, para o franchisado, a perda da principal ou única fonte de receitas, inviabilizando a prossecução de actividade empresarial – como neste caso aconteceu (cfr. a matéria de facto provada, transcrita no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães). A apreciação da licitude daquela conduta é, ao mesmo tempo, apreciação da imputação ou não à recorrente da causa determinante da situação de “insuficiência de meios económicos” do recorrido. Um juízo quanto à questão controvertida confunde-se com um juízo quanto à responsabilidade ou não da recorrente na causação da situação incapacitante, em termos fácticos, do exercício do direito de acção perante o tribunal arbitral. De forma que a denegação a este de qualquer forma de tutela jurisdicional, consequência inevitável, nas circunstâncias concretas, da vinculação àquele tribunal, poderia importar que a satisfação do interesse da contraparte resultasse de uma situação de carência imputável a uma conduta ilícita do beneficiado – o que seria verdadeiramente intolerável. De facto, através da invocação da excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem, a ser ela procedente, o réu obstaria, nas circunstâncias do caso, a que o autor obtivesse a prolação de uma decisão de fundo. Assim fecharia a porta
à apreciação do rompimento do contrato de franchising e, com isso, à hipótese de uma decisão favorável à contraparte, o que, a concretizar-se, implicaria o poder prevalecer-se de uma situação por si ilicitamente gerada.
De resto, o poder de decisão do tribunal arbitral, mesmo quando assenta na vontade das partes, tem uma óbvia dimensão institucional, sujeita a condicionamentos e restrições decorrentes da regulação estadual. A liberdade de celebração de uma convenção de arbitragem, que se traduz na atribuição de competência a um tribunal arbitral, não é auto-realizável, ficando a eficácia do seu exercício dependente de uma actividade de administração da justiça estritamente conformada, de modo a oferecer garantias equivalentes às de um tribunal judicial. Ao admitir um poder de julgar paralelo ao dos tribunais integrados na organização judiciária, o Estado não se demite do seu papel de garante último da realização da justiça. Daí, além do mais, a observância imperativa, na tramitação a decorrer nos tribunais arbitrais, dos princípios fundamentais do processo (artigo 16.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto), cuja violação é fundamento de anulação da decisão (alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do referido diploma), e a proibição absoluta, em contratos de adesão, de cláusulas que “(…) prevejam modalidades de arbitragem que não assegurem as garantias de procedimento estabelecidas na lei” (alínea h) do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro). O Estado não abre, designadamente, mão da garantia, a todos assegurada, do acesso à justiça. Quando a efectivação dessa garantia requer a prestação de apoio judiciário, não prevista no âmbito dos tribunais arbitrais, o único meio de evitar o resultado, constitucionalmente inaceitável, de denegação da justiça,
é o reassumir de competência do tribunal judicial. Não pode invocar-se, em contrário, a tutela constitucional do livre desenvolvimento da personalidade, pois ela não dá cobertura a um acto de autonomia privada, quando a sua execução nos termos acordados deixa inteiramente desprotegido o direito fundamental de acesso à justiça Ainda que a propósito de situações de conflito não coincidentes com a dos autos, o mesmo ponto de vista valorativo, de prevalência da proibição de denegação da justiça, tem sido expresso em numerosos arestos deste Tribunal, fundando decisões de inconstitucionalidade de preceitos que condicionam o exercício de direitos ou faculdades processuais ao prévio depósito de quantias ou à prestação de garantias, não supríveis através do apoio judiciário — cfr. as indicações fornecidas por MÁRIO DE BRITO, “Acesso ao direito e aos tribunais”, O Direito, ano 127.º (1995), 351 s., aqui 365 s. A recorrente invoca, contra a decisão recorrida, os princípios constitucionais de confiança e determinabilidade da lei aplicável. Mas sem razão. Na verdade, quando está em causa o direito à execução, nos termos acordados, de um contrato, a protecção da confiança confunde-se, no plano constitucional, com a protecção do exercício negocial da liberdade de determinação. Neste contexto, a confiança legítima, como vector subjectivo daquele princípio, só é afirmável na medida em que sejam de acolher constitucionalmente as consequências vinculativas daquele exercício. Para o determinar, há que ponderar, como fizemos, a projecção conflituante de outros direitos também constitucionalmente protegidos. Em face do concreto quadro situacional, essa metódica aplicativa levou a considerar que a protecção constitucional da autonomia privada devia ceder, numa compressão a posteriori, como única forma de dar efectividade à proibição de indefesa. O princípio da confiança, como princípio estruturante da ordem jurídico-constitucional, não tem aqui espaço de operatividade autónoma, para contrariar esse veredicto.


III – Decisão
Pelo exposto, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo
20.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 494.º, alínea j), do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de a excepção de violação de convenção de arbitragem ser oponível à parte em situação superveniente de insuficiência económica, justificativa de apoio judiciário, no âmbito de um litígio que recai sobre uma conduta a que eventualmente seja de imputar essa situação; b) Em consequência, confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.

Lisboa, 30 de Maio de 2008 Joaquim de Sousa Ribeiro Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues João Cura Mariano Rui Manuel Moura Ramos. Com declaração.