Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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07-09-2011   Diversas
BURLA QUALIFICADA OU ABUSO DE CONFIANÇA QUALIFICADA E FALSIFICAÇÃO. APROPRIAÇÃO DE VEÍCULO, TRANSACÇÃO, REGISTO DE PROPRIEDADE. ARTº. 28.º, AL. C), EX VI ARTº. 264.º, 5, AMBOS DO CPP
Perante uma pluralidade de crimes, ocorridos em comarcas diferentes, de idêntica gravidade, não existindo arguidos presos, é competente para a realização do inquérito aquele que primeiro tiver notícia do crime
PROCURADORIA-GERAL DISTRITAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

CONFLITO NEGATIVO
Cascais – DIAP de Lisboa
NUIPC 1663/08.4 GACSC-01
PA. 32/2011

DESPACHO N.º 126/2011

É suscitada a minha intervenção na resolução de um conflito de competência opondo magistrados do Ministério público da comarca de Cascais e do DIAP de Lisboa, no inquérito com o NUIPC 1663/08.4 GACSC-01.
*

O processo, registado inicialmente na comarca de Cascais, diz respeito a uma sucessão de factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de abuso de confiança qualificada ou burla qualificada, p. e p. nos art. 205.º, 1 e 4, al. b), 217.º e 218.º, 2, al. a), e falsificação de documento, p. e p. no art. 256.º, n.º 1, todos do Código Penal: apropriação de um veículo de luxo, no valor inicial de € 108.500, entregue a título não translativo da propriedade ou induzindo em erro o respectivo vendedor, seguido de falsificação de documentos de declaração de venda, para criar aparência de transmissões legítimas e ocultar os agentes do crime, induzindo em erro novos adquirentes.

O processo foi registado inicialmente na comarca de Cascais, a 12 de Novembro de 2008, pois a queixosa residia na área dessa comarca, estando em causa, nesse momento, a falsificação de uma declaração de venda com abuso da sua identidade e assinatura. Entretanto, foram apensados outros inquéritos envolvendo a mesma viatura, por factos anteriores e posteriores à queixa inicial.

Após o desenvolvimento do inquérito, durante cerca de dois anos e meio, o magistrado da comarca de Cascais excepcionou a sua incompetência, transmitindo os autos à comarca de Lisboa uma vez que os documentos falsificados foram utilizados na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, foi em Lisboa que foi reconhecida a assinatura e onde ocorreu a última venda conhecida do veículo.

Por sua vez, o magistrado do DIAP de Lisboa entende ser competente a comarca de Cascais uma vez que foi aqui que ocorreu o crime mais grave, de burla qualificada, com a entrega inicial do veículo e com uma segunda venda, ocorrida já após a falsificação de documentos que deu origem ao processo.

O magistrado da comarca de Cascais, face à argumentação do colega do DIAP de Lisboa, acrescentou que nada permite sustentar que a entrega inicial do veículo tenha ocorrido em Cascais, ao contrário da última venda, considerado último acto de execução, que se sabe ter ocorrido em Lisboa.

***

Nos termos do art. 264.º, 1, do CPP, é competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido.
Acrescenta o n.º 2 que, “enquanto não for conhecido o local em que o crime foi cometido, a competência pertence ao Ministério Público que exercer funções no local em que primeiro tiver havido notícia do crime”.

Embora esta última norma seja residual – apenas aplicável quando se desconhece o local de cometimento do crime -, ela funciona, na prática, como a primeira regra atributiva da competência. Na verdade, assim que um inquérito é registado numa comarca ela é a primeira comarca competente do processo. A transmissão dos autos depende assim de, posteriormente, se apurar que a competência pertence a outro magistrado – art. 266.º, 1, do CPP.

No caso dos autos, a comarca de Cascais registou e iniciou o inquérito, aceitando a sua competência, tendo inclusivamente incorporado outros inquéritos, por factos conexos.

Sendo assim, a transmissão dos autos dependeria de se apurar que a comarca de Cascais não era competente, em regra, por se apurar que não foram praticados factos em Cascais, ou, em caso de pluralidade de crimes, porque o mais grave ocorreu noutra comarca – art. 28.º, al. a), ex vi art. 264.º, n.º 5, ambos do CPP.

Antes de analisar o caso concreto, cumpre ainda salientar que, ao contrário do que consta no art. 19.º do CPP (competência do Tribunal para conhecer de um crime), em que o critério é o da consumação, o art. 264.º, 1, do CPP remete para o cometimento.

Trata-se de um conceito mais abrangente e, por isso, mais adaptado à eficácia da investigação, uma vez que o art. 7.º do Código Penal esclarece que o facto se considera praticado tanto no lugar em que o agente actuou como naquele em que o resultado típico se tiver produzido, tudo elementos que terão de ser investigados no inquérito e fazer parte de uma eventual acusação a proferir.

Ou seja, é ao art. 264.º que temos de recorrer para determinar a competência para a realização do inquérito - coadjuvado, por remissão expressa, pelos artigos 24.º a 30.º do CPP -, enquanto o art. 19.º estabelece normas gerais sobre a competência territorial do Tribunal para conhecimento do crime.

Por isso pode suceder que o Ministério Público competente para investigar exerça funções num tribunal diferente daquele onde será efectuado o julgamento (o que pode suceder com facilidade, por exemplo, em caso de arquivamentos parciais).

Vertendo ao caso dos autos, estão em causa crimes de abuso de confiança ou burla, ambos qualificados, e crimes de falsificação. Sendo os primeiros mais graves, serão eles a determinar a competência territorial – art. 28.º, al. a), ex vi art. 264.º, 5, do CPP.

O primeiro núcleo factual susceptível de ter relevância criminal (ambos os magistrados estão de acordo neste ponto) reside na entrega do veículo a HFRS, ao abrigo de um contrato de locação.
Apesar de HFRS não ter prestado declarações, constata-se que no contrato de locação consta que o mesmo residia em Cascais, e que a venda foi feita pelo “stand” da Baviera de Cascais.

Apesar do vendedor ter sido a BMW Bank Gmbh, Sucursal Portuguesa, com sede em Porto Salvo (comarca de Oeiras), decorre da experiência comum que os veículos são entregues aos clientes nos estabelecimentos de venda, e não nas sedes das entidades financeiras que sustentam o financiamento, até porque esse era o local de residência do arguido.

Mesmo que este facto suscite dúvidas, estando o inquérito a decorrer já há algum tempo, a incompetência apenas poderia ser suscitada após se esclarecer aquele ponto, nomeadamente perante os funcionários do “stand” (face ao silencio do arguido).

Posteriormente, após a falsificação das assinaturas que teriam servido apenas para tentar legitimar as vendas ocultando os intervenientes reais, o veículo é vendido a ENV. Ora, de acordo com o seu depoimento, a aquisição ocorreu em Cascais, informação confirmada e concretizada por FE, que mencionou que o carro foi entregue na Praça de Touros daquela cidade.

Ou seja, também este segundo momento, que poderá integrar a prática de um crime de burla qualificada (desconhece-se se ENV desconhecia a ilegitimidade do vendedor ou estaria em conluio com ele), ocorreu em Cascais.

Por fim, a última venda, que deu origem a outra queixa pela prática de um outro crime de burla qualificada, ocorreu, efectivamente, em Lisboa, junto da agência do BPI, no Parque das Nações.

Aqui chegados, concluímos ser objecto da investigação, entre outros, a prática de crimes de burla qualificada, praticados em diferentes comarcas. Perante uma pluralidade de crimes, ocorridos em comarcas diferentes, de idêntica gravidade, não existindo arguidos presos, é competente para a realização do inquérito aquele que primeiro tiver notícia do crime, a saber, a comarca de Cascais – art. 28.º, al. c), ex vi art. 264.º, 5, ambos do CPP.

Pelo exposto, ao abrigo das normas acima mencionadas, decido atribuir a competência para o inquérito com o n.º 1663/08.4 GACSC-01, ao Ministério Público a exercer funções na comarca de Cascais.

Comunique à Senhora Directora do DIAP de Lisboa e à Senhora Magistrada Coordenadora da Comarca de Cascais.

Cumprido, arquive.

Lisboa, 7 de Setembro de 2011

A Procuradora-Geral Distrital

Francisca Van Dunem
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