Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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08-05-2007   Temáticas específicas
A INFRACÇÃO ÀS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO.
A INFRACÇÃO ÀS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO.
Omissão da instalação de meios ou de aparelhagem
destinados a prevenir acidentes na construção civil. O
tipo omissivo do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do Código
Penal.
José P. Ribeiro de Albuquerque
Procurador-Adjunto
1. INTRODUÇÃO: ................................................................................................................................................... 2
2. RAZÃO DE ORDEM. A INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO. ........................................................................ 4
3. ENQUADRAMENTO FUNCIONAL DE COMPETÊNCIA E ENQUADRAMENTO NORMATIVO ....... 4
3.1. ENQUADRAMENTO FUNCIONAL: ................................................................................................................................ 4
3.2. ENQUADRAMENTO NORMATIVO E AS QUESTÕES PENAIS: ................................................................................................ 7
3.2.1. Normas e(m) concurso. .............................................................................................................................. 9
3.2.2. Bem jurídico, tipicidade, imputação e subsunção. ................................................................................... 14
4. UMA NORMA PENAL EM BRANCO. DIPLOMAS DE ENQUADRAMENTO GERAL E DE
REGULAMENTAÇÃO SECTORIAL DA SHST NA CONSTRUÇÃO CIVIL (BREVE REFERÊNCIA): .. 27
4.1. DIPLOMAS EM MATÉRIA DE SHST E OS TITULARES DOS DEVERES. ............................................................................... 29
5. ALGUMAS QUESTÕES DE AUTORIA E IMPUTAÇÃO OBJECTIVA POR OMISSÃO. ..................... 39
5.1. RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLECTIVAS. REMISSÃO: ......................................................................................... 49
6. A SITUAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. QUESTÕES PROCESSUAIS: BREVE NOTA SOBRE O
ASSISTENTE. .......................................................................................................................................................... 52
7. NOTA FINAL. ..................................................................................................................................................... 54
RESUMO: Na presente comunicação descrevem-se questões de enquadramento
legal e típico da infracção às regras de segurança no trabalho. A problematização
cinge-se à sinistralidade na construção civil e explora apenas a forma omissiva
pura (artº 277º nº 1 al. b) 2ª parte do Código Penal). Privilegia-se a perspectiva
judiciária, onde os problemas de aplicação e de interpretação do tipo-de-ilícito
são reflexo da confluência na descrição normativa de algumas das questões
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
penais mais controversas, de que são exemplo as normas penais em branco, os
crimes de violação de dever, os crimes de perigo e a responsabilidade criminal
das pessoas colectivas. Estas questões dificultam a gestão processual dos casos
concretos, que raramente culminam em condenações. Por isso se reconhece, no
final, a fragilidade em manter, a par de um direito penal com a função exclusiva
de proteger subsidiariamente bens jurídicos, um direito penal simbólico, em
risco de se tornar inútil.
1. Introdução:
A morte ou a ofensa grave à integridade física de um trabalhador tem sempre uma tradução
estatística e por vezes direito ao drama e à compaixão retórica do noticiário. Como quem “recorda os
gestos de amanhã”1, as vítimas de acidentes de trabalho seguem o compasso do cortejo noticioso, num
ritual que transforma as mortes em números e as submete à fórmula estatística de sobe e desce e a
uma aparente normalidade que escamoteia o escândalo desses mesmos números2.
Em matéria de acidentes de trabalho, Portugal, juntamente com Espanha, é dos países da
União Europeia (dos quinze) com maior índice de sinistralidade laboral e em que mais morrem no
trabalho aqueles que podemos apelidar de «malogrados» operários. A morte ou a incapacidade física
grave, na verdade, é para eles um «mal» e um «logro»3, palavras que têm esse exacto valor de uso.
1 Como no poema de Ruy Belo, “A mão no arado”, in O problema da Habitação, Obra Poética, 2ª edição, volume I, Lisboa,
Presença 1984, pp. 89.
2 Um quadro de acidentes e mortes que é apresentado em ciclos de ano, normalmente, por ocasião do 28 de Abril - dia Nacional
da Prevenção e Segurança no Trabalho – e em que o real quotidiano do país nesta matéria tem sido decepcionante. Dados da
Inspecção-geral do Trabalho (IGT) revelam que, em 2002, o número de mortos, em consequência de acidentes na construção civil,
foi de 103 num total de 219; em 2003, foi de 88 num total de 181; em 2004, foi de 101 num total de 197; em 2005, o número de
mortos foi de 86 num total de 169 e, no primeiro semestre de 2006, o número de mortos em acidentes, na construção civil, era de
38, num total de 81. A queda em altura é, de longe, a principal causa dos acidentes (dados consultados no site www.igt.gov.pt,
também publicados na edição de 28-7-2006 do «Semanário Económico»). Quanto ao retrato estatístico dos acidentes de trabalho
na Europa, a Comissão Europeia divulgou, em 2004, dados relativos ao período de 1994-2002, sendo de salientar os seguintes
aspectos: ocorre 1 acidente de trabalho em cada 5 segundos na UE; morre 1 trabalhador a cada 2 horas, vítima de acidente de
trabalho; houve 4.900 acidentes de trabalho mortais registados em 2001; 62% dos trabalhadores europeus nunca usam
equipamento de protecção individual (EPI’s); 25% usam-no cerca de metade ou mais do horário normal de trabalho (a conferir
em www.ibjc.pt, consultado em 17-1-2006). Dados da OIT, a nível mundial, indicam estimativas de 65.000 mortes anuais
resultantes de acidentes na construção civil – 1 acidente a cada 10 minutos. (dados disponibilizados pela OIT no site www.ilo.org,
consultado em 17-1-2006).
3 Outros, como Ignacio Ramonet (Le Monde Diplomatique, Junho 2003), recordam que os defensores do povo, mais radicalmente,
lhe chamavam um «imposto de sangue» que o trabalhador paga ao empresário. Retira-se dessas reflexões que independentemente
de quem paga o quê a quem, o facto é que a internalização dos acidentes de trabalho como custos empresariais, embora sinistra
ou cruel, é vantajosa (barata) e típica da racionalidade económica custo/benefício ou da «racionalização da lealdade às regras da vida
económica, de que cada qual se considera intérprete autêntico». O sancionamento meramente pecuniário (coima, multa ou
indemnização) da violação das regras de segurança laboral ou a mera subscrição de seguros de acidentes podem ser apenas um
custo a mais no processo produtivo que, em termos de rentabilidade, pode até sugerir o incumprimento das normas sobre
segurança.
2
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
«Malogrados» é a designação acertada: induz a noção de infelicidade no fim que se sofre, como se o
trabalhador que morre por tais razões tivesse “humildemente entrado por engano pela morte dentro”4.
Em grande parte assim é: nuns casos engano, noutros um engano que por suspeita razoável
encobre um estado de verdadeiro dolo.
Aliado ao “malogrado fim” do trabalhador real, a resposta judiciária penal navega por vezes na
mesma sensação de lamento, de incapacidade ou mesmo na fatalidade de um frequente desfecho sem
culpados.
Quem entra na avaliação da capacidade de resposta penal cedo se dá conta que os indícios de
tutela penal efectiva das acções, omissões dolosas ou dos «enganos» em matéria de segurança no
trabalho estão povoados de espaços de incerteza e mesmo de ineficácia face às elevadas cifras (as
oficiais) da sinistralidade.
Essa incerteza não é só a inerente à hermenêutica jurídica, mas antes propiciada pelos
instrumentos legislativos que regem sectorialmente a matéria da segurança, higiene e saúde no
trabalho (SHST), que se sucedem em número de várias dezenas e com lógicas subjacentes, propósitos
ou definições nem sempre claras, exequíveis ou concertadas. Esses espaços de incerteza conjugam-se,
ao fim e ao cabo, com a lógica própria do típico «espírito de mercado», onde imperam os objectivos de
obter maior ganho a menores custos e em que se insere afinal a actividade económica da construção
civil que serve de contexto e de pretexto às questões que se vão enunciar.
Essa lógica do mercado é também ela acelerada, assertiva na competitividade e na “eficiência”,
mas que continua a conviver com (ou sobretudo a viver de) factores que têm tanto de díspar como de
singular no sector, como o são a precariedade do emprego, os elevados níveis de
rendimento/produtividade exigidos, os baixos níveis de qualificação e remuneração, a baixa
qualificação social das profissões, etc.5 A incerteza que caracteriza nesta área as questões do jurista tem
também na própria complexidade dos riscos inerentes à actividade da construção civil uma das
principais condicionantes. Se a lógica economicista (e em grande parte informal) é das principais
4 Como na nota 1acima. Quando a morte não ocorre e ficam sequelas físicas, a “morte” pode ser outra. A edição do jornal
“Público” de 29-9-2006, a propósito de um seminário sobre o tema, reportou a denúncia que, por vezes, os que ficam aleijados são
duplamente vitimizados: “ «Não queremos aleijados. Vá para a reforma, vá para o seguro» é o tipo de insultos ouvidos por
trabalhadores que, para além das sequelas dos acidentes, enfrentam a “violência psicológica” em empresas que se recusam a
readmiti-los em funções adequadas à sua deficiência”. (Catarina Gomes, Quase metade dos trabalhadores é vítima de acidentes de
trabalho mais do que uma vez, pp. 31).
5 A lógica de mercado e de competitividade leva por exemplo a estratégias de outsourcing por parte das grandes empresas da
construção civil, traduzíveis no sistemático recurso a subempreiteiros ou a empresas de trabalho temporário, onde a informalidade
da estrutura empresarial e a precariedade, ilegalidade ou clandestinidade das relações laborais favorecem a elevada sinistralidade
por inobservância das regras de SHST. A IGT dá conta por exemplo que o maior número de acidentes de trabalho mortais na
construção civil (dados referentes a 2005 mas de idêntico sentido a anos anteriores) ocorre em empresas com entre 1 a 9
trabalhadores – 90% das empresas do sector são pequenas empresas, que empregam até 20 trabalhadores (cf. www.igt.gov.pt
consultado em 18-1-2006). Um quadro global da evolução e caracterização do sector da construção civil em Portugal pode ser
encontrado em Maria Ioannis Baganha, José Carlos Marquês e Pedro Góis, O sector da construção civil e obras públicas em Portugal:
1990-2000, consultado em 18-1-2006 no site www.ces.fe.uc.pt/publicacoes/oficina/173.
3
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
características da dinâmica deste sector de actividade económica, esse também é sobremaneira o
contexto apropriado que explica causas e resultados da perigosidade que lhe estão associados, muitas
vezes reduzidos à relevância explicativa de meros «custos».
2. Razão de ordem. A intervenção do judiciário.
O presente texto é um apontamento reflexivo, sobretudo noticioso e fragmentário, sobre o
tipo de reacção penal e judiciária à morte ou ofensa corporal grave de trabalhador em consequência
da infracção às regras de segurança no trabalho da construção civil, sendo principal objecto de
atenção o crime p.p. pelo artº 277º nº 1 do C.Penal6. Dá-se conta da complexidade do tipo penal que
tutela o(s) bem(ns) jurídico(s), das dificuldades de instrução do procedimento penal e da verdadeira
obra de Dédalo em que se traduz o volume e a “mansa” agitação legislativa que preenche a norma
penal em branco. Mas a abordagem dessas questões não será muito mais que uma vaga inventariação
ou mero arrolamento. Não vamos desenvolver a reacção do direito laboral aos acidentes de trabalho
que vitimem um ou mais trabalhadores. Sobre essa matéria existem vários manuais, leis anotadas e
uma jurisprudência abundante. Trataremos preferencialmente da relevância judiciária penal (penal e
processual penal) que esse tipo de acidentes reclama dos tribunais enquanto instâncias formais de
controlo. E dentro dos acidentes ou sinistros possíveis apenas se visam os que ocorrem no âmbito da
construção civil, por serem de longe os que têm maior expressão estatística e processual, embora aqui
e ali se possa fazer referências a outro tipo de sinistralidades laborais.
Os tópicos centrais são assim: Meio laboral da construção civil; perigo resultante da falta de
segurança no local e na execução do trabalho; especial dever de implementação das condições adequadas a evitar
esse perigo; dever imposto normalmente por lei, regulamento ou por normas de ordem técnica, complementadas
pelos instrumentos contratuais; omissão da acção devida; resultado de perigo e/ou resultado de dano.
3. Enquadramento funcional de competência e enquadramento normativo
3.1. Enquadramento funcional:
A possibilidade de as ocorrências com acidentes de trabalho – em paralelo à adequada
tramitação processual nos tribunais competentes em matéria laboral7 – envolverem também eventual
6 Está também pressuposta a ofensa simples à integridade física, já que o tipo de crime p.p. pelo artº 277º nº 1 do C.Penal não
exige para a sua consumação a verificação de perigo de lesões corporais graves. É pois típico quer o perigo causado de forma grave,
quer leve, em particular para a integridade física.
7 cf. o Regime Jurídico e processual dos Acidentes de Trabalho (Lei 100/97 de 13-9; Regulamento da Lei 100/97 pelo DL 143/99
de 30.4 e também o Código do Processo do Trabalho – DL nº 480/99 de 9-11).
4
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
responsabilidade criminal impõe, mais do que aconselha, que o Ministério Público observe o
princípio da oficiosidade.
Há pois que proceder à abertura de inquérito sempre que as circunstâncias em que o acidente
ocorre indiciem omissão de deveres relevantes por parte das “entidades” responsáveis, na observância
das regras de segurança no trabalho, normas estas resultantes das disposições legais ou regulamentares
ou das regras técnicas relativas ao desempenho funcional da actividade onde se produziu o sinistro.
Esta orientação funcional teve consagração numa Circular – a Circular nº 19/94 de 9-12-94 –
da Procuradoria-Geral da República, nos termos da qual, relativamente a acidentes de trabalho
mortais, foi recomendado «aos Senhores Magistrados e Agentes do Ministério Público, junto das jurisdições
laborais que, relativamente a tais casos e sempre que não seja de excluir a existência de responsabilidade
criminal, providenciem pela imediata abertura de inquérito, nos termos previstos no Código de Processo Penal».
Uma orientação que era acertada e pertinente. Grande parte das vezes o acidente mortal
ocorre por violação grosseira de regras, disposições legais ou regulamentares sobre segurança no
trabalho. Porém, a responsabilidade criminal que se objectivava na recomendação – atenta à
respectiva data de emissão e circulação – era a que estava tipificada no art. 263º nº 1 a 3 e art. 267º,
ambos do Código Penal (CP/C.Penal) de 828, portanto na versão anterior às alterações introduzidas
pelo DL nº 48/95 de 15 de Março. Ora, o tipo de crime em causa dificilmente permitiria que a
violação de regras de segurança no trabalho se considerasse incluída e tipificada na previsão
normativa do art. 263º do CP/82, que sancionava exclusivamente a violação das regras quanto “à
construção” e não quanto à “segurança no trabalho”9.
Em todo o caso, dir-se-á que a orientação extraída da circular esteve «à frente do seu tempo»,
em consonância superveniente com a alteração entretanto introduzida pelo DL 48/95, que no art.
277º consagrou (a par com o art. 152º nº 4 do CP) a tutela jurídico-penal da violação das regras de
segurança no trabalho10.
A mesma Circular considerava também, ainda que de modo implícito, a intervenção da
justiça penal como sendo tardia ou reactiva ao dano – característica que se mantém ainda hoje.
8 Dispunha o artigo 263º do C.Penal/82: «1- Quem, no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição, instalação eléctrica
em construção, ou na sua modificação, infringir as disposições legais ou regulamentares, ou ainda as regras técnicas que no caso, segundo as
normas geralmente respeitadas ou reconhecidas, devem ser observadas, criando desse modo um perigo para a vida, integridade física ou para bens
patrimoniais de grande valor de outrem, será punido com prisão de 2 a 6 anos e multa de 100 a 120 dias. 2 - Se o perigo referido no número
anterior for criado por negligência, a pena será a de prisão até 3 anos e multa até 120 dias. 3 - Se a acção referida no nº 1 deste artigo for
imputável a título de negligência, a pena será a de prisão até 2 anos e multa até 100 dias.» O artigo 267º dispunha que: «Quem, através dos
crimes descritos nos artigos anteriores, causar, com negligência, a morte ou lesão corporal grave de outrem será punido na moldura penal que ao
caso caberia, agravada de metade.».
9 Assim se decidiu, de forma correctamente fundamentada, na sentença de 2 de Março de 1998, proferida no processo n.º
331/95.0 GTSTB do 3º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal (não publicada).
10 Essa é a conclusão que se retira das actas da comissão revisora do Código Penal, onde por sugestão do Sr. Dr. Lopes Rocha
ficou consagrada no tipo-de-ilícito referido a previsão da «não instalação da aparelhagem para prevenir acidentes de trabalho». Vide
Código Penal Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, pp. 358.
5
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Embora o sentimento geral e consensual seja o de que para debelar a sinistralidade laboral a
prevenção é o melhor remédio, o direito penal, na verdade, só intervém «ex post facto», embora dessa
intervenção também deva resultar um préstimo pedagógico e preventivo, em outro sentido11.
Se olharmos desde já o enunciado típico do crime em questão, cedo se lhe advinha a natureza
de um crime de perigo concreto, em que o resultado é esse mesmo perigo concreto para os bens
jurídicos que a norma tutela – vida, integridade física e património alheio. Porém, a intervenção
judiciária faz-se quase sempre – quer por decorrência implícita na orientação da Circular, quer por
«saber de experiência feito» – por reacção ao evento morte ou ofensa corporal grave, evento esse que
está para além e, por isso, fora do resultado típico de base.
No que interessa pois ao procedimento criminal, só em caso de resultado fatal, rectius de dano
efectivo, é que, por regra, a comunicação para efeitos de instauração de inquérito criminal acontece.
A isso não é certamente alheio o facto de, em termos de fiscalização da violação das regras de
segurança no trabalho, a intervenção da Inspecção-Geral do Trabalho (IGT) ser também ela, por
norma, reactiva ao evento danoso. Nada de admiração, se pragmaticamente trouxermos ao debate a
fastidiosa questão da falta de meios. O número de funcionários competentes na área da inspecção às
condições de trabalho tem diminuído e até na proporção inversa da área territorial de actuação. A
exemplo, refira-se que até 2005, o número de funcionários do ex-IDICT no Distrito de Setúbal
diminuiu drasticamente em comparação com a área geográfica de actuação que, no âmbito do
Distrito, vai de Palmela a Cercal do Alentejo!12
A abertura do inquérito, reportando-se a matéria tão sensível e especializada como é a da
inobservância de «deveres de actuação que consubstanciam violação de regras de segurança no trabalho – regras
legais, regulamentares ou técnicas» requereria certamente que a primeira abordagem fosse efectuada por
um Órgão de Policia Criminal (OPC) com conhecimentos especiais e preparação para actuar na fase
crucial da notícia do crime. Porém, a notícia do crime é normalmente colhida, de modo nem sempre
totalmente satisfatório, pela PSP ou GNR. A Polícia Judiciária não tem nesta matéria qualquer
competência reservada.
O único organismo público com vocação para intervir na fase da notícia do crime é de facto a
própria IGT. No entanto, a IGT não é um OPC13. Este estado de coisas gera a seguinte perplexidade:
11 Cf. Jesús Martínez Ruiz, Sobre los delitos contra la seguridad en el trabajo, RECPC, 04-j09 (2002), (criminet.ugr.es/recpc consultado
em 20-5-2005).
12 Segundo dados oficiais recolhidos na Delegação Distrital de Setúbal da IGT, o número de Inspectores do Trabalho era de 7 em
2005. No âmbito Nacional, a edição do jornal «Público» de 8-8-2005 dava conta que o número de inspectores do Trabalho era de
280, o número de empresas era de 615.000 e o número de trabalhadores no activo era de 5.000.000. Os conflitos laborais e o
aumento das falências (a crise) fez aumentar drasticamente o trabalho dos inspectores, dizia-se na notícia, exigindo deles maior
disponibilidade para as funções de consultadoria e de informação ao público, em prejuízo das inspecções “no terreno” (Emília
Monteiro, Falta de funcionários encerra ao público nalguns dias delegações da IGT, pp. 18).
13 cf. o estatuto da IGT (Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho) e do extinto IDICT.
6
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
os OPC disponíveis não têm vocação de competência para uma área de abordagem tão específica e os
organismos que têm essa vocação específica de competência não são OPC14. Este quadro exige por
vezes recurso a soluções pragmáticas, como a de aproveitar para o inquérito os relatórios e autos de
notícia que a IGT elabora para o procedimento contra-ordenacional e solicitar-lhe, no âmbito do
dever geral de colaboração com os Tribunais15, as informações e a coadjuvação que se julgarem
pertinentes, embora sem as garantias de colaboração próprias de uma relação de dependência
funcional.
3.2. Enquadramento normativo e as questões penais:
Mas, se com maiores ou menores dificuldades, se vem a iniciar o procedimento penal
preliminar, só depois dele instaurado é que a tarefa que se empreende se vem a revelar bem mais
espinhosa do que inicialmente se poderia suspeitar.
O caso habitual do trabalhador da construção civil que cai em altura e morre, por falta de
redes de protecção ou de ligação por arnês a “fio de vida” ou mais prosaicamente o que sofre acidente
por falta de um simples capacete ou botas de protecção, convoca, por pré-compreensão, o tipo de
crime p.p. pelo art. 277º do C.Penal. Convoca-o porém, a nosso juízo, no segmento exclusivo da
omissão, já que consideramos que a violação das regras de segurança no trabalho sucede quase sempre
por omissão da instalação dos mecanismos ou aparelhagem destinados a prevenir tais eventos,
omissão essa de amplitude e densificação típicas variáveis, em violação das regras legais,
regulamentares ou técnicas pertinentes. De facto, na prática judiciária são residuais, senão mesmo
inéditas, as hipóteses de “destruição, danificação ou inutilização das aparelhagens destinadas a prevenir
acidentes…”. É antes o manso e indolente desrespeito pelos níveis normativos do risco permitido que
gera a alta sinistralidade laboral.
Temos então o enquadramento típico do caso no seguinte enunciado normativo (na forma de
dolo de omissão e dolo de perigo16):
14 Embora no Código de Trabalho se reserve à IGT competência em matéria de inspecção e fiscalização das condições de trabalho,
o inquérito a que se alude no art. 279º nº 2, que compete à IGT realizar em caso de acidente de trabalho, não é o (um) inquérito
criminal (vide também o nº 7 do artº 24º do DL 273/2003 de 29-10). O facto de não se tratar de OPC implica essencialmente que
não possa usar dos mecanismos cautelares e de recolha de prova que o CPP reserva aos OPC (art. 55º e 249º CPP). No campo de
intervenção contra-ordenacional, a IGT também não pode ser tida como autoridade policial (cf. art. 48º do Regime Geral das
Contra-Ordenações - DL nº 433/82 de 27-10). Veja-se ainda com interesse nesta área o disposto no referido artº 24º do DL 273
quanto à obrigação de comunicação dos acidentes graves e mortais em estaleiro à IGT e a obrigação que recai sobre todos os
intervenientes no estaleiro, em particular sobre a entidade executante/empreiteiro/adjudicatário, de preservarem os vestígios do
acidente e do local do acidente. A omissão desses cuidados constitui contra-ordenação muito grave segundo o artº 25º nº 3 al. c),
d) e e) do DL 273.
15 Cf. art. 9º nº 2 do CPP.
16 Os crimes de perigo comum têm no C.Penal a apresentação clássica da estruturação tripartida de uma imputação de gravidade
crescente: dolo de acção/omissão+dolo de perigo; dolo de acção/omissão+negligência de perigo e negligência de
acção/omissão+negligência de resultado de perigo.
7
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Art. 277º n. 1 alínea b) – 2ª parte do Código Penal, sob a epígrafe «Infracção de regras de
construção, dano em instalações e perturbação de serviços»:
1 - Quem:
a) No âmbito da sua actividade profissional, infringir regras legais, regulamentares ou
técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção,
demolição ou instalação, ou na sua modificação;
b) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente, aparelhagem ou
outros meios existentes em local de trabalho e destinados a prevenir acidentes, ou,
infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas, omitir a instalação de tais meios ou
aparelhagem;
…e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para
bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Em termos classificatórios, nos aspectos mais relevantes da estrutura do tipo-de-ilícito, trata-se,
segundo o critério do bem jurídico, de um crime de perigo comum, na modalidade de perigo
Quanto à noção de dolo de perigo e ao alcance do dolo requerido ao preenchimento do tipo: «O dolo de perigo
corresponde à negligência consciente de dano e é um juízo conclusivo positivo sobre a verificação do perigo acrescido de um juízo sobre a
verificação do dano que o identifica com a negligência consciente do dano. A negligência de perigo é um juízo conclusivo negativo sobre o perigo
acrescido de um juízo sobre a verificação do dano que o identifica com a negligência inconsciente de dano» cf. Paulo Sérgio Pinto
Albuquerque, Crimes de perigo e contra a segurança das comunicações, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, CEJ,
vol. II, Lisboa, 1998 pp. 268-269.
No crime que se analisa, o dolo (possível em todas as formas) é complexo. Deve abarcar em primeiro lugar o
conhecimento (ou admissão como possível) pelo agente da existência de norma legal, regulamentar ou técnica que determine
certas condições em que se deve desenvolver a actividade do trabalhador. Apesar desse conhecimento o agente omite a obrigação
que a norma determina em matéria de SHST. A par daquele conhecimento e desta omissão o agente sabe (ou admite como
possível) que tem que implementar meios ou instrumentos ou desencadear medidas que garantam que o trabalho se desenvolva
em condições de segurança e apesar disso não o faz. Por fim, o agente sabe que com as omissões referenciadas resulta um perigo
concreto para a vida, para a saúde ou para a integridade física do trabalhador (ou permite que o trabalhador desenvolva o trabalho
nas condições de insegurança, conformando-se com aquele resultado de perigo). cf. María Ángeles H. Hernández e José Alberto
Serrano Rodríguez, Delitos contra la securidad y la salud en el trabajo, Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografia y Ciencias
Sociales, Univ. Barcelona, vol. VI, nº 119 (108), 2002, (disponível em www.ub.es/geocrit/sn/sn119108.htm, consultado em 17-8-
2006), para quem a forma de dolo eventual é a mais corrente neste tipo de crimes.
8
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
concreto17/18, segundo a qualidade dos autores, é um crime específico próprio19, no segmento
seleccionado, é omissivo puro ou próprio20, segundo o critério do resultado material, é de resultado
de perigo, na perspectiva da imputação objectiva, trata-se de crime que Roxin apelida de «violação de
dever»21. A norma é uma “norma penal em branco”22.
Face a tamanha confluência de características, a norma não é já um simples «dado», é antes
um «problema» e portanto um campo de ampla discussão. Nesse campo de discussão, as interrogações
são múltiplas e colocam-se em diversos campos. Mas só podemos abordar algumas dessas questões,
mantendo-nos fiéis ao propósito inicial de apenas as inventariar.
3.2.1.Normas e(m) concurso.
Sem preocupações de sistematização formal, dir-se-á que as interrogações se colocam desde
logo nas relações entre a previsão típica do art. 277º nº 1 al. b) e a do art. 152º nº 4 do C.Penal, este
também um crime de perigo concreto.
A manutenção do nº 4 do art. 152º do CP após as alterações introduzidas no CP pela revisão
de 1995 dir-se-ia resultar de uma «distracção» do legislador, pois que o crime previsto e punível pelo
17 As questões classificatórias do crime p.p. pelo artº 277º do C.Penal estão tratadas com maior profundidade na obra do Dr. Rui
Patrício, Erro sobre regras legais, regulamentares ou técnicas nos crimes de perigo comum no actual direito português (Um caso de infracção de
regras de construção e algumas interrogações no nosso sistema penal), Lisboa, AAFDL, 2000, pp. 250 ss. Essa classificação é apenas
referida ao nº 1 al. a) desse artigo. No âmbito da teoria geral, vide por todos, Américo A. Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte
Geral – Teoria Geral do Crime, II vol., Porto, Publicações Universidade Católica, 2004, pp. 81e ss.
18 Sobre os crimes de perigo após a revisão de 1995 do C.Penal, vide Paulo Sérgio Pinto Albuquerque, op. cit., pp. 252 e ss. O
autor, a propósito da uniformização pela expressão «e criar deste modo perigo», considera que as alterações ocorridas nos crimes de
perigo consagrados no C.Penal mantiveram arredadas as teorias extensivas e restritivas do risco de perigo (respectivamente
baseadas numa estrita prognose ex ante ou conjugada com uma diagnose ex post da entrada do objecto do crime no circulo do
perigo) e algumas formulações da teoria do resultado de perigo, mantendo-se a teoria normativa modificada do resultado de perigo
como a teoria que em face do direito constituído português melhor define o conceito de perigo concreto (pp. 263 e ss.). Segundo
esta teoria, «só pode considerar-se que há perigo concreto quando se verificarem cumulativamente as seguintes condições: a existência de um
objecto de perigo (vida, integridade física de alguém ou um ou mais bens patrimoniais de valor elevado), a entrada do objecto do crime no circulo
de perigo e a não ocorrência da lesão por força de circunstâncias inesperadas ou de esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis de
terceiros ou do ameaçado ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis e irrepetíveis (como por exemplo as
forças da natureza)» op. cit., pp. 265-266.
19 Só podem ser sujeitos activos do delito do artº 277º nº 1 al. b 2ª parte aqueles que estejam obrigados a instalar meios ou
aparelhagens destinados a prevenir acidentes em meios laborais, infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas. Esta
específica obrigação só se dá no âmbito da actividade laboral/profissional do agente (questão de tipicidade), variando a fonte da
obrigação.
20 Nesse sentido também Paulo Sérgio Pinto Albuquerque, op. cit, pp. 292., que considera ter sido o crime da alínea b) (dos quatro
crimes de perigo concreto distintos que o artº 277º do C.Penal prevê) cindido em dois tipos: um comissivo por acção na 1ª parte
dessa alínea e um omissivo próprio consagrado na 2ª parte dessa alínea, sem que com isso deixe de ser possível cometer o da
primeira parte por omissão, o autor considera que os vários tipos do artº 277º, ressalvando a especificidade da referida alínea b),
são crimes de violação de dever (Roxin) em que a tipicidade pode ser preenchida quer por omissão do cumprimento das regras,
quer por violação expressa (por acção) das ditas regras, sem que se tenha que recorrer, na omissão, à equiparação do artº 10º do
C.Penal. No mesmo sentido, referindo a forma omissiva como marca de inovação da revisão do C.Penal operada pelo DL 48/95
de 15-3, cf. Jorge Leite, Jurisprudência – Direito penal do trabalho: uma sentença histórica, Revista «Questões Laborais», ano V, nº 11,
1998, pp. 109 e 113.
21 Tema a desenvolver infra
22 Tema a desenvolver infra.
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
art. 277º nº 1 al. b) é especial e naturalmente é este que sobreleva no concurso.
Não se compreende facilmente qual o espaço que resta para o art. 152º nº 4 do CP23, a não
ser, talvez, o de manter uma simbólica punição do trabalho infantil, dado o enquadramento
sistemático e o contexto típico do art. 152º, após as alterações introduzidas pela referida revisão24.
Mesmo que se apure na formulação típica a referência expressa à acção e não à omissão,
sempre haverá que aceitar que, por um lado, a aplicabilidade do art. 10º do CP não está excluída e,
por outro, a ter-se em conta, tout court, a noção de Roxin de «crime de violação de dever», ela é
operativa tanto para o art. 152º nº 4 como para o 277º do CP, pois que o dever pode ser violado
indistintamente por acção ou por omissão. Acresce ainda que ambos são crimes de perigo concreto, se
bem que o do art. 152º seja de perigo concreto individual ou singular (só a vida e integridade física de
determinado trabalhador é tutelada), enquanto o do art. 277º é de perigo comum. Neste estão
incluídos uma pluralidade de bens jurídicos referentes a outros sujeitos que não apenas os
trabalhadores, mas em que estes estão certamente incluídos. Não resulta daí prejudicada a natureza de
crimes de perigo e a relação de consumpção entre as duas normas. Em benefício desta consideração
milita também o facto de a pena aplicável ao crime p.p. pelo 277º ser superior, mesmo na agravação
pelo resultado, à pena aplicável ao crime p.p. pelo 152º nº 4 CP.
Parece pois ser defensável a relação de consumpção por especialidade entre os dois tipos de
crime, ditando as boas regras que se aplique o art. 277º CP em detrimento do 152º.
Se em primeira impressão a conclusão é defensável, a prudência cartesiana não aconselha que
se negligenciem outras hipóteses. Para isso devemos descortinar quais os possíveis objectos de tutela
num e noutro tipo, tendo por princípio sistemático que em matéria de concurso o critério do bem
jurídico é decisivo, embora deva ser sempre corrigido pelos dados empíricos do caso concreto25,
Se tivermos em conta o bem jurídico protegido nos art. 152º nº 4 e do art. 277º nº 1 al. b) 2ª
parte do C.Penal podem não coincidir ambos os tipos. Aparentemente, o bem jurídico protegido no
art. 277º26, no segmento da norma em questão, é de natureza ou titularidade colectiva (não sendo
23 De cuja amplitude de tipo-de-ilícito estão estranhamente excluídas as «regras técnicas».
24 Em todo o caso, parte da relevância da punição do trabalho infantil, antecipando talvez a tutela do menor em relação à sua
utilização em situações de risco, está abrangida pelo novo tipo de crime introduzido pelo artigo 608º do Código do Trabalho, sob
a epígrafe “Utilização indevida de trabalho de menor”
25 Onde é relevante, por exemplo, o mesmo contexto comportamental ou unidade de acção, com relevo autónomo para a mesma
resolução criminosa ou para as mesmas circunstâncias de tempo e lugar, ou em que se deve ter em conta os factos concomitantes
co-punidos, ou em que sobretudo se deve aferir pelo princípio «ne bis in idem» as aparentes ofensas a diversos bens jurídicos, etc.
Adverte para a necessidade de uma hermenêutica dos tipos, para as dificuldades de uma teorização e para a não exclusividade do
critério interpretativo do bem jurídico na identificação de situações de concurso e sobretudo de concurso aparente, Augusto Silva
Dias, “Entre «Comes e Bebes»: Debate de algumas questões Polémicas no âmbito da protecção jurídico-penal do consumidor (A propósito do
Acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Julho de 1996), in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9º 1º vol. (1999) pp. 81-84.
26 Sobre o bem jurídico tutelado, o professor Juan Basoco dá conta da discussão (com reflexos óbvios para as questões de
concurso) das várias possibilidades para a sua identificação: umas que restringem a tutela à vida e saúde dos trabalhadores,
incluindo nesta a integridade física, outras que entendem o bem jurídico como correspondente à segurança no trabalho. O autor
sustenta que esta visão merece críticas e deve ser apenas considerada como referência condicionante da eficácia da protecção da
10
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
aqui objecto da nossa preocupação o perigo causado para pessoas diferentes dos trabalhadores). Em
concreto, tutela-se a segurança da vida ou da integridade física e saúde dos trabalhadores designados a
uma frente de obra ou a determinado estaleiro (tendo-se em conta o contexto da construção civil que
aqui nos ocupa).
Isto é diferente da vida concreta ou saúde do trabalhador (ad hominem) que é posto
efectivamente em perigo pela conduta tipificada no art. 152º nº 4 do C.Penal. Este tutela bens
jurídicos individuais ou individualizáveis («quem, não observando disposições legais ou regulamentares,
sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde»). Por outro lado,
por via de melhor análise, é possível distinguir vários campos de tutela no art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte
do C.Penal27. Por um lado, bens jurídico-penais supra individuais (vida, saúde e integridade física de
trabalhadores sujeitos a perigo resultante de condições de insegurança) e por outro bens jurídicopenais
individuais ou individualizáveis resultantes da concretização do perigo, representada pelo dano
na concreta saúde ou vida de um trabalhador efectivamente lesado, incluindo portanto os casos em
que se vem a verificar a agravante do art. 285º do C.Penal.
A distinção é necessária porque não é apenas a segurança no trabalho a se que é objecto de
tutela jurídico-penal, mas a SHST como referente personificável, i.e., enquanto conjunto de
condições adequadas a evitar o perigo para a vida, a saúde e a integridade física dos trabalhadores.
Portanto, a SHST não constitui objecto autónomo de tutela, mas só é objecto de tutela se vinculada
aos trabalhadores concretos sobre os quais recai o perigo28.
Deste modo, a par da SHST, que faz parte da titularidade colectiva dos trabalhadores, há uma
dimensão individual dos direitos dos trabalhadores que é objecto da protecção normativa, se bem que
vida ou saúde, pois que não pode estar em causa a exigência de impedir toda e qualquer lesão na vida ou integridade física dos
trabalhadores. O que se deve sobretudo exigir é que sejam controladas todas as fontes de perigo que estão no âmbito de domínio
do garante e que sejam normativamente exigíveis, embora também aqui se acrescente a crítica de que o penal ficaria subordinado
às normas laborais e administrativas e que o comportamento típico se reduziria a mera desobediência, pondo em causa as
exigências do princípio da lesividade. Tão pouco se vê melhorias em distinguir dois bens jurídicos, um de natureza colectiva (a
segurança) e outro de natureza individual ou pessoal (a vida e saúde), pois que parece óbvio que sem maior segurança se não
protege convenientemente a vida e a saúde. Isto é, a protecção de um é referente da protecção do outro, pois que a lesão não é
típica quando se diminuem as condições de segurança exigidas por lei, mas antes e só quando essa diminuição constituiu meio
idóneo e objectivo para fazer perigar a vida ou saúde dos trabalhadores. Portanto, a tutela da segurança é instrumental em relação
à tutela dos autênticos bens jurídicos em causa. Adverte-se, porém, que a titularidade dos bens jurídicos vida e integridade física
não pode entender-se como uma titularidade individual. Se assim fosse o consentimento teria que operar como causa de
justificação ou atipicidade e com maior relevância por se tratar de um consentimento apenas reportado ao perigo e não ao
resultado lesivo. Por outro lado, atendendo a que a pena aplicável ao perigo concreto de lesão da vida ou saúde dos trabalhadores
é mais grave do que a punição de alguns dos correspondentes crimes de lesão ou resultado, tudo indica que o bem jurídico em
questão seja colectivo, enquanto se deva entender que a tutela é da dimensão colectiva da vida e saúde dos trabalhadores
enquanto tal e não enquanto titulares individuais de bens jurídicos de natureza pessoal. De facto, a conduta típica de omitir as
condições de segurança legalmente exigíveis projecta um perigo sobre todos os trabalhadores, quaisquer que eles sejam, i.e.,
colectivamente sujeitos às condições de insegurança. (cf. Juan Mª Terradillos Basoco, Delitos contra la vida y la salud de los
trabajadores, Tirant Lo Blanch “colección los delitos” nº 48, Valencia, 2002).
27 Se tivermos em conta todas as alíneas do artº 277º do C.Penal e os vários tipos de crimes que elas estabelecem, teremos que ter
em conta que o objecto de tutela se estende para bens jurídicos que vão muito para além dos trabalhadores e que podem ser
dissociáveis consoante o caso concreto.
28 Cfr nesse sentido a posição de María Ángeles H. Hernández e José Alberto Serrano Rodríguez, op. e loc. cit.
11
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
no art. 152º nº 4 surja mais acentuada e valorizada a protecção desta dimensão individual, ao invés do
que sucede no art. 277º nº 1 al. b) do C.Penal.
E essa sobrelevação da dimensão individual resulta em quê? Parece dela resultar – e aqui
reside a importante diferença entre os dois tipos – que, em matéria de concurso de crimes, se a
preferência recai na aplicação do art. 277º, tal opção vem a traduzir-se numa desvalorização jurídicopenal
do resultado lesivo ou numa desproporção entre a penalidade aplicável e o resultado lesivo
efectivo (é mais restritivo por via da natureza de perigo comum do crime em questão, sendo
defensável apenas a verificação de um crime apesar de poderem ser vários os trabalhadores a entrarem
no circulo de perigo proibido). Um só crime, pois, quando são vários os trabalhadores que tenham
corrido perigo de vida ou para a sua integridade física. Um só crime, ainda, mesmo que tenha
resultado morte ou incapacidade grave para outro ou outros deles, embora nesta hipótese se possa
admitir a existência de um concurso efectivo entre dois crimes de infracção às regras de segurança,
como veremos adiante. Já o art. 152º nº 4 do C.Penal, em matéria de concurso de crimes (ideal)
parece não desvalorizar o resultado lesivo, de perigo ou de concretização da lesão, pois que a cada
trabalhador sujeito às condições de perigo típicas corresponde o preciso âmbito do objecto de tutela
normativo, o que tem por consequência que sejam tantos os crimes quantos os trabalhadores
colocados em perigo ou lesionados na vida ou na integridade física (nº 5 do art. 152º do C.Penal)29.
Portanto, em matéria de concurso de crimes a primeira impressão contraprova-se, pois não é
despicienda a opção pela aplicação do art. 152º nº 4 do C.Penal, apesar das críticas inicialmente
escrutinadas quanto à efectiva existência de distintos campos de tutela.
Ainda em matéria de aparente pluralidade de crimes é recorrente na prática judiciária ver
colocadas hipóteses de concurso com variados outros tipos de crimes. Assim sucede quanto à hipótese
de homicídio por negligência por vezes imputado (e às vezes por acréscimo!) ao(s) arguido(s)30.
A questão situa-se sempre no campo da interpretação. É sobretudo um problema de concurso
e confronto (de normas31) com o art. 277º do C.Penal. Deve assim considerar-se que o facto de o art.
277º nº 1 al. b) 2ª parte e nº 3 do C.Penal, com a agravação constante do art. 285º do mesmo Código,
proteger bens jurídicos colectivos (o resultado de perigo afecta mais trabalhadores ou terceiros do que
29 Em aparente coerência sistemática este entendimento teria apoio no disposto no art. 624º do Código do Trabalho, que dispõe:
«Quando a violação da lei afectar uma pluralidade de trabalhadores individualmente considerados, o número de infracções corresponde ao
número de trabalhadores concretamente afectados, nos termos e com os limites previstos em legislação especial».
30 Há mesmo referência a uma condenação judicial com base na qualificação da violação de normas regulamentares de segurança
na construção civil como homicídio negligente: Sentença do Tribunal de Vila Nova de Gaia de 26-6-2000 – processo 178/99 1º
Criminal, apud J. Soares Ribeiro, Responsabilidade pela Segurança na Construção Civil e Obras Públicas, Almedina, Coimbra, 2005, pp.
60, nota 139.
31 Nega a autonomia e existência do «concurso de normas» em direito penal Luís Duarte D´Almeida, O concurso de normas em
direito penal, Almedina, Coimbra, 2004.
12
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
os que ficaram lesionados) e por ter uma penalidade mais severa que a correspondente ao homicídio
negligente, resolve de forma mais congruente o aparente concurso e representa uma forma mais eficaz
de tutela penal. Se fosse de outro modo, a punição por homicídio negligente desvalorizaria todo o
comportamento lesivo da SHST no trabalho. Há também aqui, portanto, um concurso aparente, a
resolver por especialidade, no confronto entre o crime de homicídio por negligência p.p. pelo art.
137º do C.Penal e o crime p.p. pelo art. 277º nº 1 e 3 e 285º32 do C.Penal. Acrescente-se que a
agravação pelo «resultado morte» (art. 285º do CP) pode entender-se que neutraliza a relevância da
hipótese de crime de homicídio por negligência33.
Questão próxima desta, e que acima antecipámos, é a de eventual concurso real homogéneo
de dois crimes de infracção às regras de segurança no trabalho (art. 277º nº 1 al. b 2ª parte) quando for
possível identificar de um lado e como objecto de perigo concreto um ou mais trabalhadores que não
morreram nem sofreram lesões graves e, de outro lado, e como objecto de perigo, um conjunto de
32 O resultado é preterintencional, mas atendendo à natureza do próprio dolo de perigo (enquanto negligência consciente do
dano) «não necessita de comprovação autónoma da verificação de negligência relativamente ao dito resultado preterintencional, uma vez que a
negligência em relação ao dano resulta do existência do próprio dolo do resultado de perigo» cf. Paulo Sérgio Pinto Albuquerque, op. cit. na
nota 16 pp. 269.
33 Considerações heurísticas podem ainda abrir debate alternativo quanto a outro possível concurso (de normas). Por exemplo, a
situação de risco no trabalho poderia chamar à colação o crime de abandono (art. 138º do C.Penal). Essa possibilidade, que
concretamente já foi objecto de sustentação num caso concreto, não parece constituir um bom diagnóstico. Desde logo, pondo o
tipo objectivo do crime de «abandono» em confronto com a situação que, por meros tópicos, colocámos no âmbito de previsão do
art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal, não se mostra preenchido o tipo objectivo do crime de abandono nos segmentos de: a)
Expondo-a (a vítima/trabalhador) em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou b) Abandonando-a sem
defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir. Por um lado, no âmbito de tutela do bem jurídico, há a
consideração maioritária de que o bem jurídico protegido no art. 277º do C.Penal é de natureza tendencialmente colectiva e
plural (vida, integridade física de outrem e património alheio de valor elevado) e não de titularidade individual (imediata) da vida
ou integridade física de pessoa concreta sobre a qual haja especial dever de garante na não exposição ao perigo (podendo embora
colocar-se hipóteses alternativas, como as que se vão referir a propósito da «acção a próprio risco»). Por outro lado, há que
considerar que, na génese da relação laboral, existe, de facto o consentimento ou acordo de vontade das partes, mas a
(inter)dependência que daí nasce é apenas funcional, não correspondendo a uma qualquer relação de dependência por via da
idade ou condição física (indefesa da vítima), nem parece que numa relação funcional de natureza laboral possa caber ao
empregador o dever de guardar, vigiar ou assistir, próprios, por exemplo, das relações parentais ou outras. A relação que se
estabelece não é pois de dependência pessoal, própria da posição de garante típica, mas uma mera relação negocial a que se pode
pôr termo por vontade das partes, uma relação negocial livre na formação e (em princípio) no seu termo. Não pode, contudo,
negar-se a existência de pontos de confluência valorativa, essencialmente no que respeita às características do lugar em que a
vítima é exposta e à situação geradora de perigo que delas pode decorrer (um estaleiro de obra em que se não cumpram as regras
legais, regulamentares ou técnicas de SHST é um lugar fonte de perigos…). Situando-nos ainda nas relações de concurso, a
pretexto da relevância ou não do consentimento e das hipóteses possíveis do concurso com o crime de exposição ou abandono,
deve ter-se presente que o tipo do art. 277º é mais congruente e pre-compreensivamente é o que deve ser chamado à situação de
facto que se pode identificar pelos tópicos mais correntes – meio laboral, perigo resultante da falta de condições de segurança no
trabalho, especial dever de implementação dessas condições pelos agentes obrigados (crime especifico próprio), etc. Ainda neste
campo interpretativo, embora sendo os crimes de abandono e o de violação de regras de segurança ambos crimes de perigo, a
punição prevista no art. 277º é uma punição mais forte, pelo que qualquer hipótese de relação de concurso (que se prefiguraria
como meramente aparente) teria também que se resolver pela especialidade consumptiva do art. 277º.
13
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
trabalhadores que morreram ou sofreram lesões físicas graves34. Como acima deixámos indiciado, o
concurso efectivo é aqui defensável35.
Noutro plano, dir-se-á que este campo de problemática das questões concursais não tem
interesse meramente técnico, podendo permitir a abertura de vias alternativas com efeitos na própria
estratégia processual, como mais adiante será referido. Independentemente das razões da técnica
jurídica, não é possível olvidar que quando ocorrem morte ou lesões físicas por via da violação de
regras em matéria de SHST, estamos, indiciariamente, perante crimes de homicídio e/ou de ofensas à
integridade física a que pode acrescer o concurso com o crime de perigo do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte
do C.Penal para outros trabalhadores que se encontravam na mesma ocasião e na mesma situação em
que ocorreu a morte ou lesão, sem prejuízo das correcções a que haja de se proceder sempre que do
crime de dano ou lesão resulte a punição em menor pena do que a que resultaria da punição do
crime de perigo.
3.2.2.Bem jurídico, tipicidade, imputação e subsunção.
Retomando pontos de enquadramento geral, as questões ligadas à SHST, por via da
multiplicidade e dramatismo de alguns dos acidentes de trabalho, podiam desencadear um interesse
mais militante por parte da sociedade. No entanto, ele toma, a maior parte das vezes, o tom da
fatalidade e não a forma de iniciativas políticas ou exigências sociais organizadas que, em nome de
uma outra cultura na organização do trabalho, imponham o efectivo respeito, no mínimo, pelos
objectivos que já constam de directivas comunitárias e da legislação vigente. De facto, a par da
evolução legislativa persistem situações de alheamento, de incúria e mesmo de desprezo em relação às
condições de trabalho e de segurança, a que são expostos os trabalhadores, particularmente na
construção civil36. Nalguns casos, é tão flagrante e ostensiva a inobservância das regras elementares da
34 Neste sentido cf. Augusto Silva Dias, “Entre «Comes e Bebes», in RPCC, ano 8º, 1998, fascículo 4º, pp. 269. Em situações
normais, quando o resultado de perigo é o da morte de mais do que uma pessoa ou a lesão grave em mais do que uma vítima, ou
mesmo a verificação de ambos esses resultados, é comum considerar que se consumou um só crime de perigo agravado pelo
resultado. Nesse sentido, Paulo Sérgio Pinto Albuquerque, op. e loc. cit., pp. 280.
35 Sobre as questões de concurso efectivo de crimes de perigo depois da revisão de 1995, vide Paulo Sérgio Pinto Albuquerque, op.
e loc. cit., pp. 279 segundo o qual as regras básicas são: A punição do crime de dano não consome a do perigo concreto se o perigo se
verificou em outros bens além do que foi objecto do dano; a punição do crime de perigo concreto consome a do perigo abstracto; e a punição do
crime de dano não consome em princípio a de crime de perigo abstracto.
36 O jornal «Público», na sua edição de 27-7-2005, dava notícia de que a IGT, no ano de 2005 e apenas no primeiro semestre,
detectara falhas de segurança ou irregularidades em 86% das construtoras, o que deixava apenas em 14% a percentagem de
empresas cumpridoras da legislação da SHST. No ano de 2004 o número de mortos vítimas de acidentes no trabalho na
construção civil foi de 101, e nos demais sectores foi de 96 mortos, o que representava uma inversão da tendência decrescente do
ano anterior. Quanto às causas foi indicado que o maior número de falhas ocorria nas quedas em altura. Grande número de
empresas apresenta um nível reduzido ou nulo de avaliação de riscos. O cumprimento das regras é reduzido ou nalguns casos
objectivamente violador dessas regras. Ainda na mesma notícia se dava conta de que, apesar de se notar um acréscimo no respeito
pela obrigação de nomeação de coordenadores de segurança e na elaboração dos planos de segurança e saúde, em relação a anos
14
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
segurança na construção civil (falta de entivação de uma vala ou de escoramento de um muro, por
ex.), constituindo-se em iminentes causas directas e fatais de um acidente, que mesmo a inexistência
de lei imporia o agir de outro modo na protecção dos trabalhadores que estão sujeitos a tais
condições. Neste campo, a realidade continua desfasada da lei, cuja coercibilidade parece substituída
pela mera indicação sugestiva.
Apesar da realidade e da sugestão, não podemos esquecer que a consagração legal da
protecção das condições de SHST está ao nível da Lei Fundamental. O nosso texto Constitucional
consagra no art. 59º nº 1 al. c) o direito dos trabalhadores «à prestação do trabalho em condições de
higiene, segurança e saúde». A Carta Social Europeia37, no art. 3º da Parte II e no Ponto 3 da Parte I
proclama que todos os trabalhadores têm direito à higiene e segurança no trabalho.
Esse enquadramento remete-nos para o âmbito do bem jurídico e a esse propósito o Prof.
Jorge Leite defendeu, em texto já datado, que “... Sendo a vida, a saúde e a segurança no trabalho
praticamente ignoradas pelo Código Penal, não curando da defesa da dignidade da integridade física e moral do
Homem no trabalho, o legislador contribui, voluntária ou involuntariamente, para que a sociedade represente
como normais condutas verdadeiramente criminosas”38. De modo mais construtivo, o mesmo autor refere-se
ao bem jurídico protegido como a segurança no trabalho, com expresso referente constitucional nos
direitos fundamentais dos trabalhadores39.
De igual modo Monteiro Fernandes dizia “...no plano do direito a constituir, nos parece imperioso
que a protecção jurídico-pública do trabalho – operada, inclusive, através da acção punitiva do Estado – se
“carregue de eticidade”, transferindo-se, ao menos parcialmente, para o plano do ilícito criminal de justiça”40
Dir-se-á que estas palavras encontraram eco no legislador, porquanto a redacção do art. 277º
do Código Penal, após a revisão de 1995, subordinado à epígrafe “Infracção de regras de construção, dano
em instalações e perturbação de serviços”, passou a contemplar (a par do art. 152º nº 4, que aqui não é
objecto da nossa atenção) a expressão da integridade do bem jurídico da segurança dos trabalhadores
na alínea b) do n.º 1. Ou seja, a justificação da dignidade penal e da necessidade da pena tiveram eco
a um tempo na intolerabilidade social da conduta violadora da SHST, a outro na dignidade de tutela
anteriores, o facto é que, segundo informações do Sr. Sub-inspector Geral do Trabalho, citado na notícia, o respeito por esses
instrumentos é meramente formal, não sendo conhecidos em obra. (Mariana Oliveira, IGT detecta falhas de segurança em 86 por
cento das construtoras, pp. 18).
37 Ratificada pelo Decreto do P.R. 54-A/2001 de 17-10.
38 Apud João Palla Lizardo, Existem, no nosso País, “crimes laborais ”?, Revista do Ministério Público, ano 17, n.º 67, pp. 125.
39 Jorge Leite, Jurisprudência – Direito penal do trabalho: uma sentença histórica, Revista «Questões Laborais», ano V, nº 11, 1998, pp.
110.
40 Apud João Palla Lizardo, ibidem.
15
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
penal do bem jurídico, a outro na danosidade social da conduta e a outro ainda na carência de tutela
penal por ausência de alternativa válida e idónea41.
Ainda quanto a generalidades, a problematização das questões de tipicidade podem
contextualizar-se de uma forma que lhe é anterior, abrindo lugar a outros aspectos de reflexão. Há que
reconhecer que neste campo da SHST o judiciário surge em palco quase sempre por reacção aos
eventos danosos e não tanto às situações de perigo que estão (estiveram) na origem ou a montante do
evento danoso para a vida e integridade física do trabalhador42. A justificação – abra-se aqui um
parêntesis para o dizer – deve-se à dificuldade prática em olhar o perigo e distinguir nele a fronteira
entre o perigo abstracto e o perigo concreto, a fronteira entre o plano do ilícito de mera ordenação
social e o do ilícito penal, entre o perigo leve e o grave, muito ou pouco provável, mais ou menos
próximo de causar lesão, entre o mero risco objectivo da actividade e o perigo típico, etc. A
dramatização que envolve a morte de um trabalhador por esmagamento, trucidação, soterramento ou
fogo impele depois, quase mecanicamente, à identificação de uma norma que sossegue o clamor
social. Muitas vezes o que importa é que o “insuportável” possa ter uma qualquer qualificação penal43.
E na diferença entre o resultado danoso e o perigo para esse resultado nasce outro campo de questões
que, metodologicamente, pode condicionar a opção na qualificação dos factos e na estruturação do
processo, reflexão que está antes da discussão da tipicidade da conduta e que naturalmente a
condiciona.
Qual a fronteira, na conduta omissiva que consistiu em não implementar instrumentos ou
aparelhagem destinada a prevenir acidentes, entre o perigo e o dano ou, dizendo de outra forma,
entre o perigo para a vida ou integridade física do trabalhador e o dano para a vida ou integridade
física do mesmo trabalhador? Ou melhor ainda, quando é que o dano constituiu concretização, ainda
que destacada, do perigo e quando é que o dano já podia ser objectivado como resultado directo,
ainda que eventual? Pensando em consequências, trata-se de questões que conformam, a jusante, a
subsunção típica e influenciam o caminho a seguir quanto à estruturação do processo e à sua
direcção, sabendo-se de antemão que a opção pela via do crime de perigo concreto (complexo) é uma
«via dolorosa», especialmente nas fases de contraditório do processo, atenta a complexidade do
próprio enunciado típico do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal. Para quê qualificar como conduta
perigosa a situação em que ocorreu ofensa corporal grave ou morte, quando muitos dos problemas
41 Cf. Manuel da Costa Andrade, A «dignidade penal» e a «carência de tutela penal» como referência de uma doutrina teleológico-racional do
crime, in RPCC, ano 2, fasc. 2, Abril-Junho 1992, pp.173 e ss.
42 A que não será alheia, como veremos, a razão prática de ultrapassar a complexidade das questões que se levantam na
comprovação do perigo concreto ou no resultado de perigo e no que respeita aos critérios de momento, medida e circunstâncias
do juízo de perigo. Sobre as questões normativas do perigo e complexidade da respectiva estrutura, vide Augusto Silva Dias, “Entre
«Comes e Bebes», pp. 566 e ss.
43 Antoine Garapon, Denis Salas, “O «salafrário» da democracia”, in A justiça e o mal, Instituto Piaget, 1999, pp. 7.
16
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
postos ao intérprete/aplicador/juiz poderiam ser ultrapassados pela qualificação da conduta como
negligente de dano?44 Afinal, ao nível subjectivo, o dolo de perigo não corresponde à negligência de
dano ou, porventura, ao estágio da tentativa de homicídio ou de ofensa à integridade física, já que o
perigo comporta, como elementos a probabilidade (elevada), do resultado lesivo? Naturalmente que
esse debate, que aqui se lança mas não acompanha, sugere a possibilidade de enveredar pela supressão
prática do crime p.p. pelo art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte45.
No que respeita à subsunção legal ou à delimitação do âmbito da previsão normativa ou
mesmo à violação de regras legais, regulamentares e técnicas que estejam na origem de acidente de
trabalho de que resulte perigo para os bens jurídicos protegidos na norma, não serão nosso objecto
principal alguns dos elementos do tipo referenciados na alínea a) do nº 1 do art. 277º, como por
exemplo «...planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua
modificação...». A delimitação, que precisa de ser feita, deve adaptar-se àquele conjunto de tópicos que
considerámos relevantes para caracterizar o objecto do nosso estudo, onde a conduta relevante
consiste, primeiro, no desrespeito de regras legais, regulamentares ou técnicas sobre SHST e, depois
em não proporcionar (ou omitir) os meios e instrumentos necessários destinados a prevenir acidentes,
para que os trabalhadores disponham das adequadas condições de segurança no trabalho, resultando,
por fim, dessa omissão um perigo concreto para a vida ou integridade física do(s) trabalhador(es).
Em todo o caso, apurar quais os elementos do tipo-de-ilícito (complexo) que interessam e não
interessam à delimitação do âmbito da previsão normativa do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal,
serve para remontar aos antecedentes históricos e através deles discutir noções que podem ser pouco
evidentes ou confusas, pelo que o remontar à sua raiz é a forma de perceber ambiguidades ou
esclarecer as dúvidas.
Muito brevemente: quer no art. 277º nº 1 al. a) (Revisão de 1995 do CP/82), quer já no
anterior art. 263º (CP/82) distinguem-se situações geradoras de perigo que incidem ou sobre
construções ou demolições ou sobre instalações técnicas em construção, ou suas modificações46.
Hesita-se na determinação exacta dos elementos descritivos e dos elementos normativos deste tipo
44 A par desta questão outra se costuma colocar, em termos teóricos: quando é que a conduta já representa perigo concreto para
os bens jurídicos tutelados e não apenas perigo abstracto? Quando é que o perigo é ainda socialmente tolerável, em função da
actividade de risco que se exerce, e quando é que já não o é? A fronteira é difusa e a doutrina dá conta das dificuldades em
proceder a definições neste campo. Na medida em que a questão é, essencialmente, de interesse teórico para o problema que nos
ocupa, não vamos aqui reportá-la, bastando a consideração pragmática de que o crime é de perigo concreto.
45 No caso clássico conhecido por “lederspray” a opção do Supremo Tribunal Alemão em aferir a responsabilidade dos directores
da empresa não foi feita segundo os crimes de perigo comum mas segundo os crimes de lesão contra pessoas individuais
precisamente por a jurisprudência e doutrina considerarem que aqueles são tipos repletos de imperfeições e inadequados à
efectivação da responsabilidade, apud Augusto Silva Dias, obra citada na nota 34, pp. 577.
46 O artº 2º do DL 273/2003 de 29-10 descreve esses e outros trabalhos de construção de edifícios e de engenharia civil que se
desenvolvem em estaleiros móveis ou temporários e para os quais prevê as regras gerais de promoção da SHST.
17
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
objectivo de ilícito. Desde logo, “construção” pode ter um significado plural. Tanto pode significar a
arte (de edificar, de arquitectar, de organizar), como pode significar a obra em si, como resultado da
arte. No enunciado típico (em raciocínio desenvolvido para o anterior art. 263º do CP/82 mas que
vale para o actual 277º) há quem lhe desenhe um significado próprio. Corresponde a “uma obra em
que são reunidas e dispostas metodicamente as partes de um todo” ou “a obra que tenha solidez com carácter
não precário e que tenha uma dignidade mínima para nela serem aplicados os princípios básicos relativos às
normas de construção ou à arte de construção”47. A noção de construção, sendo mais normativa que
descritiva, faz apelo a outros tópicos, de natureza funcional ou teleológica, como o de que a execução
deve ser acompanhada por pessoas qualificadas e de que são exigíveis padrões de qualidade e
quantidade de materiais que sejam funcionalmente adequados ao destino da construção.
Quanto às “regras técnicas que, no caso, segundo as normas geralmente respeitadas ou reconhecidas,
devem ser observadas” não existe nenhum critério seguro para as definir e considerar que tais regras
técnicas correspondem «às condições técnicas gerais a observar nas construções” e que tais condições
respeitam “à solidez e perfeição da construção, à boa qualidade dos materiais, que devem ser adequados à
satisfação das condições exigidas pelos fins a que se destinam, obedecendo a sua aplicação a prévia fiscalização,
na hipótese de não existirem especificações oficiais sobre as respectivas características”48 tem tanto de genérico
quanto de imprestável para o conteúdo normativo. Neste campo, por mais que se tente ser razoável,
não há solução para a vacuidade da expressão, nem justificação para o recurso à opinião dos peritos,
nem muito menos a juízos de generalidade como a menção à «qualidade e quantidade dos materiais
usados»49. O conteúdo deste elemento típico acrescenta – diremos nós – pela indeterminabilidade
normativa da sua fonte, problemas ainda maiores às dificuldades resultantes de natureza de norma
penal em branco da previsão típica.
Este breve excurso interpretativo pela alínea a) do nº 1 do art. 277º do C.Penal, não
totalmente deslocado, serve para evidenciar o quanto é inapropriada a subsunção dos casos de
acidentes de trabalho, por infracção a regras de segurança, à previsão normativa dessa mesma alínea.
É, pois, também por opção de ordem semântica e por fidelidade à precisão interpretativa que nos
temos referido recorrentemente à “infracção de/às regras de segurança…” e não à efectiva epígrafe do
artigo “infracção de regras de construção…”50.
47 cf. J. Marques Borges, Dos crimes de Perigo Comum e dos Crimes contra a Segurança das Comunicações, Lisboa, Rei dos Livros, 1985,
pp. 111.
48 J. Marques Borges, Ibidem, pp. 115.
49 Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 2º vol., 2ª Edição, Lisboa, Rei dos Livros, 1997, pp. 853 ss.
50 A norma incriminadora do nº 1 alínea a) do art. 277º do C.Penal (à semelhança do que resultava do anterior art. 263º) prevê
apenas a violação das normas de construção, demolição, etc., no que tange ao edifício em si próprio, isto é, se o edifício é
executado no respeito das «regras de arte» quanto à qualidade dos materiais utilizados, quanto à sua solidez e estabilidade, etc. Mas
nada aí é estabelecido no que respeita à violação das regras existentes quanto à segurança no trabalho. Como referiam Leal
Henriques e Simas Santos em comentário ao art. 263º do C. Penal/82 “em resumo trata-se das condições a observar na arte de
18
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Recordadas algumas das possíveis ambiguidades de enquadramento sistemático e típico, o
crime de omissão de instalações de aparelhagens ou meios destinados a prevenir acidentes, p.p. pelo
art. 277º n.º 1 al. b) 2ª parte do C.Penal, além de crime de perigo concreto, tem sido entendido como
um crime específico próprio pois que autor é aqui quem, no âmbito da sua actividade profissional,
infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas, omitir o dever de
instalar meios ou aparelhagens destinadas a prevenir acidentes. Agente será então aquele sobre quem
recair a referida obrigação ou dever. Esta específica obrigação só se dá no âmbito profissional,
funcional e até apenas laboral (questão de tipicidade) se apenas tivermos em conta o segmento da
norma em análise e os tópicos relevantes que acima considerámos. A especial relação, função ou
posição, normalmente de tipo profissional (ex. do empreiteiro ou entidade executante, director
técnico de empreitada, técnico responsável da obra, técnico de segurança, fiscal da obra, etc.) que
caracteriza o destinatário da norma é o critério básico da imputação e o fundamento da ilicitude,
evidenciando que se trata de um crime específico próprio. Desta consideração não resulta grande
obstáculo ao preenchimento do tipo em qualquer forma de comparticipação51.
Além dessa caracterização, e retomando aqui algumas especificidades identificadas pela
doutrina, vem-se entendendo que crimes como os p.p. pelo art. 277ºdo C.Penal – já que aí se
tipificam diferentes condutas – são crimes de violação de dever, conceito a que Roxin deu o
entendimento de crimes em que existe uma equiparação da acção à omissão e em que na
determinação da autoria não é de exigir a detenção do domínio do facto reportado à acção, bastando
a titularidade do dever violado como momento típico de domínio, uma vez que essa titularidade é
condição essencial para o preenchimento do tipo52. Contudo, no que ao crime p.p. pelo art. 277º nº 1
al. b) 2ª parte respeita, apenas possa ser preenchido por omissão, e não indistintamente por acção e
omissão, não parece que, por isso, não se possa caracterizar o crime como de violação de dever53.
Todo o campo de aferição do âmbito das responsabilidades penais se intercepta
obrigatoriamente com os elementos típicos (descritivos, normativos e predominantemente mistos) do
construção para que esta atinja o seu termo em moldes de completa segurança e o perigo não surja, como sejam as que usualmente se reúnem
para a robustez e boa execução da obra, ou as que dizem respeito à adequada qualidade dos materiais relativamente à obra em concreto, bem
como à quantidade ajustada dos componentes”.
51 Como do art. 28º do C.Penal parece resultar, embora com algumas limitações identificadas em geral para os casos de autoria
mediata e para os denominados crimes de mão própria, casos geralmente apontados como de excepção da comunicabilidade das
relações especiais – cf. art. 28º n.º 1 parte final.
52 Vide Rui Patrício, Apontamentos sobre um crime de perigo comum e concreto complexo, in Revista Ministério Público nº 81, pp. 91 e
ss.
53 Segundo Paulo Saragoça da Matta, O artº 12º do Código penal e a responsabilidade dos “quadros” das “instituições”, Coimbra,
Coimbra Editora, 2001, pp. 87: «Nestes Crimes de violação de dever o critério para delimitar a autoria não é o domínio do agente sobre o
facto, mas a infracção de um dever extra penal, activa ou omissivamente, dado equipararem-se os deveres que sustentam a autoria nos crimes
activos e omissivos». Diz o mesmo autor, citando Roxin, que nos crimes de violação de dever, “não interessa a qualidade externa da
conduta do autor, porque o fundamento da sanção radica em que alguém infringe as exigências de conduta derivadas do papel social que
desempenha”.
19
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
crime, em especial com a noção de “meios”. E desde logo, esse particular segmento da previsão
normativa típica é gerador de problemas novos. Será de incluir na noção de “meios”, por exemplo, o
dever de informação aos trabalhadores sobre aspectos da segurança individual e colectiva no local de
trabalho? A omissão desse dever, se identificável como uma das causas de um acidente ou apenas de
uma situação de perigo concreto para a vida e integridade física de trabalhadores basta para o
preenchimento do tipo-incriminador?
Sobre a questão pode aqui referenciar-se o estudo que o Prof. Juan Mª Terradillos Basoco
desenvolveu para o quadro normativo espanhol54, o qual obedece às mesmas normativas europeias em
matéria de prevenção de riscos laborais e no qual os tipos penais relevantes têm formulação bem mais
incisiva do que o nosso artº 277º nº 1 al. b) 2ª parte ou mesmo o art. 152º nº 4 do C.Penal 55. As
posições deste autor em matéria de tipo-incriminador motivam reflexões que interessam à nossa
discussão, por contribuírem tanto para a compreensão da tipicidade, como para a delimitação do
círculo de autoria. Segundo ele, a conduta consiste em não facultar os meios necessários para que os
trabalhadores desempenhem a sua actividade com as medidas de segurança adequadas. O tipo
corresponde a uma estrutura omissiva própria e o relevante é a omissão da acção esperada e tipificada,
cuja realização teria evitado o resultado de perigo. Incorre na omissão típica não só quem não facilita
os meios materiais adequados, mas também todos aqueles que configuram e integram o genérico
dever de prevenção e de tutela inerente à condição de empresário/empregador, a saber, o dever geral
de prevenção, acondicionamento dos lugares de trabalho, controlo periódico da saúde dos
trabalhadores, obrigações de proporcionar informação e formação, etc.56. O autor prefere uma
interpretação ampla da noção de “meios” (que naturalmente comporta riscos para os princípios da
legalidade e tipicidade penal), incluindo nessa noção os meios pessoais, intelectuais e organizativos57,
entre os quais se destaca muito especialmente o dever de informação sobre o risco, desde que a dita
informação resulte como meio imprescindível para que o trabalho possa realizar-se debaixo de
parâmetros adequados de protecção. Assim, a omissão de informação pode considerar-se típica, ou
54 Obra citada na nota 26
55 Os artigos do Código Penal Espanhol a que o autor se refere na dita obra são os artº 316º, 317º e 318º, sob o título « Delitos
contra los derechos de los trabajadores». O artº 316º estabelece: « Los que con infracción de las normas de prevención de riesgos laborales
y estando legalmente obligados, no faciliten los medios necesarios para que los trabajadores desempeñen su actividad con las medidas de seguridad
e higiene adecuadas, de forma que pongan así en peligro grave su vida, salud o integridad física, serán castigados con las penas de prisión de seis
meses a tres años y multa de seis a doce meses». Artº 317º dispõe que « Cuando el delito a que se refiere el artículo anterior se cometa por
imprudencia grave, será castigado con la pena inferior en grado». O artº 318º dispõe que « Cuando los hechos previstos en los artículos de este
título se atribuyeran a personas jurídicas, se impondrá la pena señalada a los administradores o encargados del servicio que hayan sido
responsables de los mismos y a quienes, conociéndolos y pudiendo remediarlo, no hubieran adoptado medidas para ello. En estos supuestos la
autoridad judicial podrá decretar, además, alguna o algunas de las medidas previstas en el artículo 129 de este Código.». Quanto ao quadro
legislativo específico rege a «Ley de Prevención de Riesgos Laborais, L 31/95 de 8-11 alterada pela L 54/2003 de 12-12».
56 Cf. no nosso ordenamento jurídico os artº. 272º n. 2 e 3, o artº 273º, o artº 275º, o artº 276º e o artº 278º do Código do
Trabalho.
57 Tese que é maioritária na doutrina Espanhola, como dão conta María Ángeles H. Hernández e José Alberto Serrano Rodríguez,
op. et loc. cit.
20
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
enquanto meio de evitar o perigo ou porque aumenta ilicitamente o perigo. Quem, conhecendo um
risco que é criado pela tarefa em cujo desenvolvimento se produziu o acidente, não facultou os meios
para evitá-lo, nem deu aos trabalhadores as instruções necessárias para que eles mesmos os evitassem –
se à omissão dos meios de segurança material somarmos a omissão que num caso destes deve ser
considerada decisiva, como a de não advertir os trabalhadores da especial tarefa que se leva(va) a cabo
em perigosas condições – deve considerar-se que os responsáveis pela informação omitida puseram em
grave perigo a vida e integridade física dos trabalhadores.
Não facultar os meios tem assim o mesmo significado que não procurar as condições para evitar
a criação do risco juridicamente relevante, incluindo a obrigação de exigir aos trabalhadores o
cumprimento das medidas de segurança. O dever de informação pode ser assim um dever ainda típico
porque resulta das normas laborais pertinentes, não esquecendo pois que falamos de um tipo penal
em branco58. Por via disso o campo de interrogações amplifica-se: e para além do dever de informação,
deve o empregador ou responsável em matéria de SHST controlar ou vigiar ainda o modo de
cumprimento das suas instruções e informações? Considera-se ainda como típica a falta de formação
do trabalhador ou a imposição de ritmos de trabalho desadequados?
As respostas deverão procurar-se sempre por referência à intencionalidade normativa: o não
serem facultados os «meios» de segurança passa a ser um possível facto típico (omissivo) desde logo se
impedir que se atinjam os níveis de segurança exigidos pelo lei ou então se reduzir os níveis de
segurança já existentes, criando desse modo perigo relevante e comprovável para a vida e saúde dos
trabalhadores, enquanto bens jurídicos tutelados. Muito do conteúdo da noção de «meios» depende
de cada caso concreto e das circunstâncias geradoras do perigo, o que vale por dizer que a previsão
normativa carece em muito de um preenchimento empírico. Adverte-se, porém, para o risco das
interpretações demasiado amplas da tipicidade, interpretações que podem ir ao ponto de considerar
responsável, penalmente, quem não tenha obrigação de implementar os instrumentos e meios
adequados, apesar de genérica ou factualmente implicado na prevenção, como é o caso das comissões
de consulta constituídas por trabalhadores ou do delegado vigilante ou do representante dos
trabalhadores na área da SHST (cf. artº 221º e ss. do Regulamento do C. Trabalho)59,
*
Ao nível da imputação objectiva e da causalidade no tipo, a panóplia de questões ainda é
maior. É-o especialmente porque no campo da SHST ocorrem alguns casos de «acção a próprio risco» do
trabalhador60. De facto, por vezes, o perigo ou mesmo o dano para a vida ou integridade física do
trabalhador tem a contribuição temerária do próprio. Esta é uma constatação que, objectivamente, se
58 Cf. acerca do dever de informação sobre os riscos os artº. 272º nº 3 al. d), o artº 273º nº 2 al. l), n), o) e o artº 275º do Código
do Trabalho.
59 Que não se exclui possam vir a ser responsabilizados por omissão imprópria negligente.
21
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
tornou relevante se tivermos em consideração que a recente Legislação Geral do Trabalho, em
concorrência com as obrigações dos próprios empregadores61, introduziu obrigações específicas para
os trabalhadores no campo da SHST, com a agravante de penalizar a violação de algumas delas como
contra-ordenações muito graves62 (mas com a diferença que ao nível contra-ordenacional, só está em
causa o perigo abstracto). Criou-se, talvez, um exagero, a ponto de se ter sancionado, legalmente, uma
política que acaba por criminalizar a própria vítima.
Todas estas questões postas no campo da imputação e da responsabilidade penal, por
infracção às regras de SHST, podem atingir uma complexidade prática extrema. Será o caso da
contribuição paralela ou cumulativa da omissão da entidade patronal com a actuação a próprio risco do
trabalhador. Quando há concurso de responsabilidades, como nesta hipótese, qual o patamar de
exigência que justifica a intervenção do direito penal? Poderá ser ele estatístico? Nesse caso, a
contribuição da entidade patronal ou do funcionário responsável terá que ser superior a 50%, 60%,
80% ?63 Que critério adoptar? A fronteira entre a alteridade da responsabilidade e a autoresponsabilidade
da vítima ou co-actuação desta para o resultado de perigo, é, por vezes, algo difusa e
por isso insusceptível de apreender por qualquer esquema estatístico ou matemático (que estaria
sempre sob suspeita de arbitrariedade). Questiona-se, portanto, se a eventual contribuição da vítima
para o resultado de perigo ou de dano, quando, por exemplo, não usa mecanismos disponibilizados
pelo empregador ou pelo responsável pela implementação das condições materiais de SHST. Nestas
situações deve ou não deve ser excluída a responsabilidade dos últimos, quer se entenda que, de todo
o modo, não foi cumprido o dever de vigiar a efectiva observância das regras sobre SHST, quer se
entenda que o conhecimento da prestação do trabalho em condições de insegurança impunha o uso
do poder de direcção funcional a ponto de impedir a continuação do trabalho em condições de
insegurança64. Dir-se-á, porém, que no aspecto do incumprimento de um dever de vigiar (“culpa in
60 Decorrência do relevo doutrinal e normativo da actuação a risco próprio é a de que o resultado não é imputável a quem
primacialmente tinha a posição de garante na omissão, tudo em virtude da interposição da auto-responsabilidade da vítima. Cf.
Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal – Doutrina Geral do Crime, Lições ao 3º ano da FDUC, ano de 2001, pp. 69.
61 Cf. art. 274º nº 5 do Código do Trabalho e cf. artº 22º do DL 273.
62 Cf. artº 274º e 671º do Código do Trabalho. Pode dizer-se que a responsabilização dos trabalhadores pelo incumprimento de
regras de SHST já vem desde os diplomas de 1958 e 1965 (vide nota ). Assinale-se bem que no nº 5 do artº 274º do Código do
Trabalho não é substituído o incumprimento das obrigações do trabalhador em matéria de SHST pelas responsabilidades do
respectivo empregador. Uma e outra não se anulam, restando saber em que planos elas se podem efectivar.
63 No sistema Anglo-Saxónico a notícia é a da introdução de critérios de proporcionalidade na imputação objectiva, quando há
concurso da vítima, particularmente nos casos de morte negligente. Se o concurso da vítima for superior a 50%, iliba-se o agente.
Sendo a responsabilidade do agente superior a 50% a punição tem a correspondência proporcional na respectiva pena abstracta
que está prevista. Sobre o tema, cf. a descrição das teses em confronto na obra colectiva Casos e materiais de direito penal,
coordenação da Prof. Maria Fernanda Palma et al., Coimbra, Almedina, 2000, pp. 399 e ss.
64 No campo do direito laboral a questão das responsabilidades concorrentes e causalidades cumulativas tem sido tratada na
jurisprudência de 1ª instância em desfavor da entidade patronal, a qual, desde que não observe normas e condições de SHST ou
desde que não implemente instrumentos ou mecanismos de segurança necessários a anular ou limitar os riscos de acidente, não
pode valer-se, para afastar a sua culpa, do eventual comportamento temerário ou excessivo do trabalhador. A ocorrer este tipo de
comportamento do trabalhador num contexto de incumprimento pela entidade patronal das regras de SHST não fica afastado o
nexo de causalidade entre a violação das regras de segurança e o acidente. A entidade patronal só pode eximir-se de
22
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
vigilando”) por parte do empregador ou de intermediário seu, não chega só por si, como veremos, para
que, desse modo, a conduta se possa (ainda) considerar típica. O incumprimento desse dever de
vigiar, para se manter dentro do respeito pelo princípio da legalidade e tipicidade da conduta punível
teria que ter um enquadramento legal alternativo, num crime de lesão (homicídio negligente omissivo
ou ofensas corporais por negligência e omissivas) e não na conduta tipificada no artº 277º nº1 al. b) 2ª
parte do C.Penal, com os custos inerentes dessa solução em termos de fragilidade dogmática. São
questões que geram outras e que acabam por ser exploradas no processo penal concreto, onde são
usadas como instrumentos de estratégia processual dos sujeitos demandados, por vezes de forma
hesitante, mas sempre experimentadas como meio para alcançar ganhos na exclusão da eventual
responsabilidade penal. Os espaços de incerteza são aqui propícios à exploração do princípio in dubio
pro reo, mesmo que seja erradamente deslocado do campo da prova e da aplicação restringida a
questões de facto para o campo da interpretação e aplicação normativa.
A par da questão da auto-colocação da vítima em situação de perigo65 podem colocar-se
questões sobre a relevância do consentimento66 do trabalhador, que é exposto a perigos para a sua
integridade física, saúde e vida67. O pressuposto de que aqui se parte é o de que nos estamos a referir,
em primeira linha, ao consentimento sobre situações de diminuem as condições legais,
regulamentares ou técnicas de segurança e, só em segunda linha, a bens jurídicos pessoais, como a
integridade física, e quanto a esta, apenas à «não essencial», deixando, pois, de fora a integridade física
«essencial» (art. 144º C.Penal) e, naturalmente, a vida, enquanto bens jurídicos indisponíveis68.
A hipótese corresponde a um acordo quanto à criação de um perigo em violação das regras
sobre SHST, pois que a aceitação de um risco em conformidade com as regras (risco permitido) não é
típico. E esse acordo, certamente tácito, por via do conhecimento das condições de trabalho e dos
riscos inerentes, só seria ilidido em condições apertadas: se os trabalhadores solicitassem,
previamente, ainda antes do início dos trabalhos a implementação dos meios adequados à segurança,
e, assim, só perante a negação desses meios pelo empresário/empregador ou obrigado, se entraria no
responsabilidade se tiver havido culpa exclusiva (não repartida) do trabalhador na produção do acidente (cf. artº 7º nº 1 al. a) e b)
da Lei 100/97 de 13-9). No âmbito da Lei 2.127 de 3-8-65 podia haver ponderação de graus e concorrências de culpa, o que
condicionava «o prudente arbítrio do julgador» na fixação do grau de agravamento da pensão (cf. Bases XIX e XVII). Questão
difícil é quando o trabalhador sinistrado é o próprio encarregado de segurança por conta da entidade patronal enquanto vítima da
sua própria incúria. (Sobre parte destas questões se debruça a sentença do Tribunal do Trabalho de Setúbal, datada de 27.7.2001
no processo nº 718/96ATA)
65 Ou, como Roxin prefere «heterocolocação em perigo consentida» apud Costa Andrade, op. cit, pp. 319.
66 Partindo-se do pressuposto de que o trabalhador está plenamente esclarecido (vontade séria, livre e esclarecida) quanto às
condições de risco. Não o estando, o consentimento perante condições de trabalho perigosamente ilegais representa uma
deficiência da vontade que leva à falta de pressupostos legais do consentimento (cf. art. 38º e 39º e 149º do CP)
67 Essa questão do consentimento não é aqui tão relevante e perigosa como o é por exemplo no âmbito do artº 152º nº 4 do
C.Penal, onde por se estar perante bem jurídico de titularidade individual, o consentimento é possível como causa de justificação
ou atipicidade, que ainda por cima é reportado apenas ao perigo.
68 Neste sentido, cf. Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral – Teoria Geral do Crime, II vol., Porto, Publicações
Universidade Católica, 2004, pp. 282 e ss.
23
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
âmbito da tipicidade. Não pode afastar-se porém a consideração de que as imposições legais em
matéria de SHST são de interesse público e por isso não são livremente disponíveis, o que para a
hipótese que aqui se escrutina sobre a relevância do consentimento, representa um risco de
disfuncionalidade argumentativa, mas ainda assim, congruente com o bem jurídico tutelado.
Em termos dogmáticos, uma característica fundamental dos crimes de perigo comum, em que
se inclui formalmente o crime p.p. pelo art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do CP, é a que consiste na
aparente indeterminabilidade do objecto de perigo69, o que, desde logo, constituiria um grande
obstáculo à relevância do consentimento70. Mas vista a questão com mais cuidado, tal conclusão não é
totalmente transponível, nem deve ter-se por linear quando o acidente de trabalho é enquadrável na
previsão do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do CP. De facto, no âmbito de protecção normativa do art.
277º nº 1 al. b) 2ª parte do CP, quanto aos beneficiários imediatos da implementação de meios ou
aparelhagens destinados a prevenir acidentes (em suma, os trabalhadores), deve considerar-se que são
determináveis os titulares dos bens jurídicos protegidos ou pelo menos há um claro referente
individual ou no mínimo a uma categoria de vítimas. Acrescente-se também que a idoneidade lesiva
do facto, para ultrapassar o mero perigo abstracto e ser típica, exige que sejam identificáveis os sujeitos
individuais em que se densificam os bens jurídicos protegidos, ou seja, que aquela idoneidade se
manifeste num perigo concreto.
Assim, a ter-se por correcta essa hipótese (inteiramente verdadeira quanto ao art. 152º nº 4
CP), então, já é possível ponderar a relevância do consentimento do trabalhador, resultante quiçá da
aceitação das condições contratuais que pressuponham a prestação de trabalho em condições
particulares de perigo, ponderação que não seria possível face à característica, por regra, da
indeterminabilidade do objecto de perigo nos crimes de perigo comum. A questão é portanto a de
saber se é relevante a aceitação pelo trabalhador de condições de trabalho e de risco que pressupõem
infracção às regras de SHST e se tal aceitação contratual ou se a execução da relação contratual em
tais condições releva para a figura do consentimento como causa de exclusão da ilicitude ou como causa
de atipicidade ou de exclusão do tipo indiciário (consentimento stricto sensu ou concordância)71. O
titular do bem jurídico, na medida em que consente na sua colocação em perigo, justifica ou não a
69 Cf. Augusto Silva Dias, op. e loc. cit., pp. 544 ss.
70 Augusto Silva Dias, ibidem. Nos crimes de perigo comum, segundo o autor, a indeterminabilidade do objecto de perigo
impossibilita o consentimento por terceiros como forma de exclusão da ilicitude.
71 Na medida em que o consentimento possa deixar excluída a lesão ou afectação do próprio bem jurídico e portanto a verificação
do tipo indiciário e mesmo de toda a antijuridicidade (responsabilidade jurídica geral por facto ilícito), o consentimento é causa
de exclusão da tipicidade da conduta, pese embora ela encaixe formal e aparentemente na descrição legal, se entendermos esse
consentimento ou acordo como manifestação da liberdade da vontade onde ela é possível. Além do consentimento (numa
conduta usual, habitual e corrente ou não transcendente), também a adequação social, o caso fortuito e a ausência de um
elemento expresso ou tácito do tipo são causas de atipicidade ou de exclusão do tipo indiciário de injusto – Cf. Diego-Manuel
Luzón Peña, Causas de atipicidad, in Colóquio Internacional de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Lisboa, 2000, pp.
114 e ss; coordenação de Maria da Conceição Santana Valdágua
24
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
conduta típica? E na medida em que os demais trabalhadores se encontram em iguais condições
contratuais ou de vínculo laboral, o consentimento de cada um deles interfere ou não na protecção
que a norma concede ao colectivo? E se interfere, até onde? Lembramos que não é a lesão que aqui
está em causa, mas apenas a relevância do consentimento reportado ao mero perigo, pois que, como
acima já se referiu, as lesões para a vida e a integridade física essencial devem ficar de fora do âmbito
do consentimento, além de serem indisponíveis para terceiros. Quanto ao próprio titular do bem
jurídico, o consentimento, no que ao perigo respeita, excluirá em princípio a intervenção do direito
penal, questão que é diferente, mas que pode confundir-se com a da auto-colocação da vitima em
situação de perigo que, em princípio, não deverá excluir aquela intervenção, pois que em matéria
penal não há lugar à compensação de culpas72. Pode então admitir-se ou não a relevância do
consentimento restringida apenas ao risco para os bens jurídicos tutelados (que são em si um
resultado normativo, por estarmos perante crime de perigo concreto)?
Uma resposta afirmativa pode ser precipitada. Numa «sociedade de risco» há uma tácita e
concomitante aceitação dos riscos inerentes às actividades que se exercem, variáveis conforme a
natureza dessas actividades, mas sempre presentes de forma quase inevitável. Mas quem aceita os
riscos nunca quer aceitar os danos e por isso não se pode exigir, é certo, que quem conscientemente
aceita trabalhar numa actividade que comporta riscos aceite clara e concomitantemente o dano
possível, mas não desejado, de poder vir a sofrer ofensa corporal ou mesmo a morte. De facto, o
perigo está sempre presente, de forma mais ou menos visível, embora ninguém faça a representação
auto-consciente do dano (ao aceitar o exercício de determinada actividade tem-se consciência dos
riscos para bens jurídicos pessoais que dessa actividade podem resultar, embora se não aceite ou
reflicta a eventualidade de sofrer grave ofensa corporal ou mesmo a morte) 73.
Em todo o caso, no campo laboral onde os acidentes mais ocorrem – precisamente aquele
onde nos concentramos, que é o da construção civil – a alternativa é reduzida para quem tem a
posição subordinada e mais fraca, pois quem não aceita os riscos inerentes à actividade que exerce
apenas pode recusar essa actividade e eliminar o risco na fonte, o que de todo em todo não é exigível,
pois que isso corresponde à não obtenção dos ganhos de subsistência que o trabalho representa,
quantas vezes sem a alternativa de qualquer outra actividade (desqualificada e) de menor risco. Daí
que nos pareça dever existir um necessário correctivo ético à hipótese de dar relevância ao
72 Cf. em sentido algo divergente o Prof. Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1991,
onde observa que por via da auto-colocação em perigo «quem, de forma esclarecida, livre e responsável, incorre no risco, assume o risco de
realização do perigo em termos tais que, na realização efectiva do perigo, acaba por se concretizar o perigo por ele assumido e não o perigo que
um terceiro tenha criado ou elevado». Com isto não se quer dizer que o consentimento da vítima numa acção que põe em perigo a sua
vida pressupõe que ela queira a sua morte. Colocar conscientemente os seus bens jurídicos em espaços qualificados de risco
importa que a ordem jurídica recue na tutela, por razões de justiça e das metas de política criminal imanentes ao sistema do
direito penal, mesmo que ao arrepio das expectativas do ofendido.
73 Sobre mais aspectos gerais da figura do “consentimento”, ainda Costa Andrade, op. cit, pp. 271 e ss.
25
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
consentimento no perigo. Como instrumento dessa correcção deve, por princípio de base, partir-se da
ideia de que a relação laboral em contexto de risco é, por via da subordinação que juridicamente a
caracteriza, uma relação heterodeterminada. Daí também, como vimos, não se deve confundir autocolocação
em risco com o consentimento pressuposto na relação jurídico-laboral. Quem determina a
prestação do débito laboral em contexto de perigo não se limita a «proporcionar, possibilitar, favorecer ou
consentir numa tal colocação em perigo», antes tem o domínio do facto e do nexo de perigo, pois que
sempre a última e irreversível causa do dano pode ser identificada no poder de conformação da
relação laboral de que é titular o empregador, portanto terceiro em relação ao trabalhador, este sim
titular dos bens jurídicos protegidos de que só ele pode dispor e mesmo assim com limites, como
vimos anteriormente. Portanto, excluindo situações evidentes de auto-colocação em risco pelo
trabalhador, o consentimento do trabalhador para a prestação laboral só deve incluir a sua força de
trabalho e não o perigo para a sua vida ou integridade física.
Retomando e resumindo posicionamentos: O crime previsto e punível no art. 277º nº 1 al. b)
2ª parte do C.Penal, sendo de perigo concreto, tutela bens jurídicos plúrimos – vida, saúde ou
integridade física e bens patrimoniais de grande valor –, que são individualizáveis no “outrem” que
vier a entrar no círculo de perigo da acção. Quanto ao perigo para a vida, saúde e integridade física
dos trabalhadores em local de trabalho estamos aparentemente na presença de bens jurídicos de
titularidade colectiva, que na verdade são individualizáveis, se nos cingirmos à tutela que é dirigida,
na forma omissiva, aos trabalhadores que constituem parte do universo típico constituído pelo
“outrem”. De facto, a lesividade do crime manifesta-se na criação de um perigo que se projecta sobre
o colectivo dos trabalhadores, cuja vida e saúde se põe em perigo. Mas esta dimensão é apenas uma
dimensão de género, já que na situação concreta de perigo é identificável (espacio-temporalmente) o
trabalhador ou o número dos trabalhadores que entrariam no circulo de perigo (prognose póstuma).
Assim, o sujeito passivo do crime (no segmento que nos interessa) é o trabalhador (ou os
trabalhadores presentes no estaleiro) cuja condição, concretamente, posta em perigo permite
identificar a(s) vítima(s) ou sujeito(s) passivo(s). Esta dimensão colectiva sui generis não permite
desconsiderar totalmente a relevância do consentimento no perigo por parte do trabalhador/vítima,
pois ele pode consentir num perigo cuja lesividade, apesar de ser em princípio colectiva e genérica,
não o transcende totalmente74. No entanto, há que introduzir aqui correcções valorativas por via da
natureza da relação laboral, na qual é o empregador quem tem o poder de conformação das condições
de prestação do trabalho e das causas do perigo resultantes das situações que diminuem as condições
legais, regulamentares ou técnicas de segurança. Parece pois irrelevante, para a elisão da
74 Coisa diferente seria o caso de estarmos perante um bem jurídico que tutelasse um interesse difuso. Cf. Augusto Silva Dias,
RPCC, ano 9º 1º vol. (1999) pp. 65.
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
responsabilidade por esse perigo, o consentimento do trabalhador pressuposto na génese da
correspondente relação contratual, da qual só se deve pressupor que resulta disponibilidade e
consentimento em relação à sua força de trabalho. Esta questão do consentimento não se confunde
com a da auto-colocação em situação de risco pelo trabalhador. Por sua vez, a auto-colocação em
situação de risco não pressupõe subjacente um eventual consentimento do trabalhador relativamente
a bens jurídicos tutelados não essenciais, pois que por via da auto-colocação em risco não fica eximido
o empregador da quota parte de responsabilidade na situação de risco, já que na eventualidade de
uma concorrência de culpas não tem que haver lugar à compensação entre elas.
4. Uma norma penal em branco. Diplomas de enquadramento geral e de regulamentação
sectorial da SHST na construção civil (breve referência):
Paira a noção de que enveredar pela qualificação pré-compreensiva do evento como
integrando o crime p.p. pelo art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do CP é entrar em terreno movediço, onde
conflui – parece - grande parte dos problemas que são objecto de debate doutrinário actual.
Não são só os problemas associados aos crimes de perigo. São também os problemas
associados às normas penais em branco, em cujo campo se situa o tipo-de-ilícito do art. 277º nº 1 al. b)
2ª parte do CP. E enquanto norma penal em branco, reclamam-se outros normativos que, como se
pode ver, já de si, por serem complexos, não facilitam a tarefa ao intérprete/aplicador75.
De facto, no âmbito da SHST, como instrumento de identificação e densificação do conteúdo
do ilícito, mostra-se necessário efectuar aqui a relação dos diplomas pertinentes em matéria de
Segurança na Construção Civil, aproveitando-se para referenciar algumas das questões que esses
diplomas nos colocam. E elas são várias. As fontes são tanto internas, aí se incluindo o normativo
comunitário, como internacionais, com particular relevo para as que provêm da OIT, e não ficam
excluídas as fontes convencionais, já que estamos em grande parte numa área – a área jurídico-laboral
– onde os instrumentos colectivos de trabalho são tidos como fonte normativa.
As reflexões feitas levam sobretudo a considerar que aquela característica (a de norma penal
em branco) tem, em boa verdade, uma dupla vertente: não só se tem que reclamar o recurso a outras
normas para preenchimento do conteúdo do ilícito (definição das regras legais, regulamentares e
técnicas relativas à implementação de instrumentos…), mas também se reclama esse recurso a outras
normas para o preenchimento da titularidade da obrigação ou dever funcional violado no âmbito da
75 Sobre o conceito, âmbito e questões suscitadas pelas normas penais em branco, além de uma relação exaustiva de fontes
bibliográficas vide, por todos, Rui Patrício, Norma penal em branco – Um comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de
17.4.2001, Revista do Ministério Público nº 88, Ano 22, Out./Dez 2001, pp. 137 e ss. Do mesmo autor, o já citado Erro sobre
regras legais, regulamentares ou técnicas nos crimes de perigo comum no actual direito português (Um caso de infracção de regras de construção e
algumas interrogações no nosso sistema penal), pp. 264 e ss.
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
actividade profissional desenvolvida, i.e., dos específicos agentes do crime (« Quem no âmbito da sua
actividade profissional…»).
Portanto, os conteúdos da ilicitude e mesmo da titularidade do dever não estão descritos na
norma penal sancionatória ou incriminadora, sendo remetido o intérprete para as «normas legais,
regulamentares ou técnicas» que devem ser observadas na instalação de mecanismos ou aparelhagem
destinados a prevenir acidentes e cuja omissão de observância conduz ao resultado de perigo.
Fixando uma atenção breve nessa característica, há um conjunto de problemas que este tipo
de normas convoca e que são coincidentemente identificados pelos vários autores76: problemas
relativos à legalidade, sobretudo se a remissão legal para regras regulamentares e técnicas vier a
abranger normas convencionais; problemas relativos à culpa; problemas relativos à técnica legislativa
de configuração do enunciado normativo; problemas de constitucionalidade levantados quando a
norma secundária ou de comportamento não respeita o princípio da reserva de lei da Assembleia da
República; problemas de definição das «normas técnicas» resultantes dos usos da profissão ou das legis
artis; saber quem define essas normas e usos e por que processos; etc.
Estas e outras questões, como as que fomos tentando já identificar, transportam-nos para um
campo de complexidade, concentrada num só tipo de crime, que atinge algum paroxismo. Em todo o
caso, o nosso objectivo é modesto e é apenas – recordemos – o de inventariar algumas dessas questões
e não o de descortinar metodologias de «pensamento complexo». Estamos portanto no ponto em que
parece oportuno relacionar os diplomas que no âmbito da SHST são pertinentes ao preenchimento
da ilicitude da conduta (norma de comportamento) sancionada no art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do CP
(norma de ameaça ou de incriminação). A relação desses diplomas fica feita em nota de rodapé77 (v.
76 Vide a referência feita a esse debate por Rui Patrício, Norma penal em branco…, pp. 137 e ss.
77 Sem preocupação de exaustividade, relacionam-se de seguida alguns dos diplomas legais e outros que contêm normas técnicas
que têm interesse no campo SHST da construção civil (normas legais, regulamentares ou técnicas e com definição de conteúdos
funcionais dos agentes). Por ordem cronológica:
Decretos nº 41.820 e nº 41.821 de 11-8-1958 (Regime e Regulamento da segurança no trabalho da construção civil)
Decreto nº 46.427 de 10-7-1965 (Regulamento das instalações provisórias destinadas ao pessoal da construção civil).
Convenção OIT nº 155 de 22-6-81, aprovada para ratificação pelo Decreto do Governo nº 1/85 de 16-1-85.
DL 49/82 de 18-2 (Regulamento de Higiene e Segurança do Trabalho nos caixões de ar comprimido)
DL 62/88 (Obrigatoriedade de uso da língua Portuguesa nas instruções dos equipamentos, máquinas e materiais de
trabalho em estaleiro)
DL 162/90 de 22-5 (Regulamento geral de SH no trabalho nas minas e pedreiras)
Portaria 879/90 de 20-9 (Estabelece disposições legais sobre a poluição sonora emitida por diversas actividades)
DL 105/91 de 8-3 (Estabelece as regras de colocação no mercado de máquinas e equipamentos de estaleiro)
DL 273/91 de 7-8 (Disciplina os instrumentos de elevação de cargas)
DL 286/91 de 9-8 (Prescrições técnicas de construção, verificação e funcionamento dos aparelhos de elevação e
movimentação)
Portaria 933/91 de 13-9 (Estruturas de protecção de certas máquinas em caso de capotagem)
Portaria 934/91 de 13-9 (Estruturas de protecção de certas máquinas em caso de queda de objectos)
DL 441/91 de 14-11 – art. 5º a 7º e 18º a 21º (Estabelece os princípios que visam promover a segurança, higiene e saúde
no trabalho, transpondo a directiva nº 89/391/CEE). Diploma que foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 133/99, de 21 de Abril e
regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 191/95, de 28 de Julho. Em grande parte tem apenas interesse histórico. Apenas os artigos
referenciados se devem considerar ainda em vigar, tendo os restantes sido objecto de revogação tácita pelo (novo) Código do
Trabalho.
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
infra), advertindo que uns são de enquadramento geral, outros de regulamentação sectorial, como no
caso da construção civil, que é a área que nos interessa aqui.
4.1. Diplomas em matéria de SHST e os titulares dos deveres.
A entrada em vigor do Código do Trabalho assim como a do Regulamento ao Código do
Trabalho veio criar a instabilidade que quase sempre se segue às alteração legislativas e, em particular,
a resultante do volume das alterações em matéria laboral geral, que passou a estar concentrada num
DReg 1/92 de 12-12 (Regulamento da segurança de linhas eléctricas de alta tensão)
DL 72/92 de 28-4 (Estabelece o quadro geral de protecção dos trabalhadores contra os riscos decorrentes da exposição
ao ruído durante o trabalho)
DReg 9/92 de 28-4 (Regulamenta o DL 72/92)
DL 113/93 de 10-4 (Características dos materiais a usar na construção)
DL 128/93 de 22-4 (Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva do Conselho nº 89/686/CEE de 21-12 relativa
aos equipamentos de protecção individual)
Portaria 566/93 de 2-6 (Exigências essenciais das obras e certificação de conformidade CE)
DL 330/93 de 25-9 (Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 90/269/CEE do Conselho de 29-5, relativa
às prescrições mínimas de segurança e de saúde respeitantes à movimentação manual de cargas que comportem riscos para os
trabalhadores)
DL 347/93 de 1-10 (Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 89/654/CEE do Conselho, de 30-11,
relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde nos locais de trabalho)
DL 348/93 de 1-10 (Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 89/656/CEE do Conselho, de 30-11,
relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de protecção individual)
Portaria 987/93 de 6-10 (Estabelece as prescrições mínimas de segurança e saúde nos locais de trabalho,
regulamentando o DL 347/93)
Portaria 988/93 de 6-10 (Estabelece as prescrições mínimas de segurança dos trabalhadores na utilização de
equipamentos de trabalho, regulamentando o DL 348/93)
DL 362/93 de 15-10 (Regula a obrigação do Estado de divulgação das estatísticas de acidentes de trabalho e doenças
profissionais)
Portaria 1131/93 de 15-10 (Aprova as exigências essenciais relativas à saúde e segurança aplicáveis aos equipamentos de
protecção individual)
DL 48/95 de 15-3 (Os artº 277º a 280º do Código Penal).
DL 141/95 de 14-6 (Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 92/58/CEE do Conselho, relativa às
prescrições mínimas para a sinalização de segurança e de saúde no trabalho)
DL 214/95 de 18-8 (Estabelece as condições de utilização e de comercialização de máquinas usadas, com vista a eliminar
os riscos para a saúde e segurança das pessoas, quando utilizadas de acordo com os fins a que se destinam)
DL 324/95 de 29-11 (Prescrições mínimas de Segurança e saúde em industrias extractivas)
Portaria 1456-A/95 de 11-12 (Regulamenta as prescrições mínimas de colocação e utilização da sinalização de segurança
e de saúde no trabalho)
Portaria 101/96 de 3-4 (Regulamenta as prescrições mínimas de segurança e de saúde nos locais e postos de trabalho
dos estaleiros temporários ou móveis – é complementar do Decreto 41.821 e a sua vigência foi ressalvada no art. 29º do DL 273)
Portaria 109/96 de 10-4 (Altera os anexos I, II, IV e V da Portaria 1131/93 de 4-11 – Estabelece as exigências essenciais
relativas à saúde e segurança aplicáveis aos equipamentos de protecção individual)
Portaria 695/97 de 19-8 (Altera os anexos I e V da Portaria 1131 de 4-11)
Portaria 247/98 de 11-4 (Aprova as normas de construção das barragens)
DReg 22-A/98 de 1-10 (Regulamento da sinalização de trânsito)
DL 374/98 de 24-11 (Altera os DL 378/93, DL 128/93, DL 383/93 de 18-11, DL 130/92 de 6-7, DL 117/88 de 12-4 e
DL 113/93 de 10-4, que estabelecem, respectivamente as prescrições mínimas de segurança a que devem obedecer o fabrico e
comercialização de máquinas, de equipamentos de protecção individual, de instrumentos de pesagem de funcionamento não
automático, de aparelhos a gás, de material eléctrico destinado a ser utilizado dentro de certos limites de tensão e de materiais de
construção civil)
DL 59/99 de 2-3 (Regime do contrato administrativo de empreitada de obras públicas)
DL 133/99 de 21-4 (Altera o DL 441/91 de 14/4 relativo aos princípios de prevenção de riscos profissionais, para
assegurar a transposição de algumas regras da Directiva Quadro relativa à segurança e saúde dos trabalhadores nos locais de
trabalho – sem interesse actual, pois que grande parte dos artigos alterados devem considerar-se revogados tacitamente pelo actual
Código do Trabalho)
DL 159/99 de 11-5 (Regulamenta o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes)
29
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Código com várias centenas de artigos. Essa codificação incluiu também a SHST, embora com o
prejuízo de, em vez de ter reunido e organizado num só instrumento a legislação que interessasse à
SHST, ter acrescentado à legislação extravagante sobre SHST, ainda em vigor, um conjunto de
normas que instituem, em geral, várias e novas obrigações para empregadores e trabalhadores no
campo da SHST. No que respeita à SHST na construção civil, ela também foi atingida por esse
acrescento de normas gerais, tratando-se de um sector em que a SHST era e é objecto de
regulamentação extravagante em dezenas de diplomas que, directa ou indirectamente, têm interesse
para essa área de actividade.
DL 555/99 de 16-12 (Estabelece o regime jurídico da urbanização e da edificação).
Lei 113/99 de 3-8 (Desenvolve e concretiza o regime geral das contra-ordenações laborais, através da tipificação e
classificação das contra-ordenações correspondentes à violação da legislação específica de segurança, higiene e saúde no trabalho
em certos sectores de actividades ou a determinados riscos profissionais)
Portaria 172/2000 de 23-3 (Estabelece a definição de máquinas usadas que pela sua complexidade e características
revistam especial perigosidade)
DL 69/2000 de 3-5 (Avaliação do Impacto Ambiental)
DL 110/2000 de 30-6 (Estabelece as condições de acesso e de exercício das profissões de técnico superior de segurança e
higiene do trabalho e de técnico de segurança e higiene do trabalho)
DL 292/00 de 14-11 (Regulamento geral do ruído)
DL 4/2001 de 10-1 (Altera e republica o DL 244/98 que aprova as condições de entrada, permanência, saída e
afastamento de estrangeiros do território nacional)
DL 320/01 de 12-12 (Estabelece as regras a que deve obedecer a colocação no mercado e a entrada em serviço das
máquinas e dos componentes de segurança colocados no mercado isoladamente – transpõe a denominada «Directiva Máquinas».
Para a as máquinas usadas rege o DL 214/95, vide supra)
DL 29/2002 de 14-2 (Programa de adaptação dos serviços de segurança higiene e saúde no trabalho)
DL 76/2002 de 26-3 (Regulamento das emissões sonoras para o ambiente de equipamento para utilização no exterior –
transpõe a Directiva 2000/14/CEE do Parlamento Europeu e do Conselho de 8-5)
DReg 41/2002 de 20-8 (Altera o regulamento de sinalização de trânsito)
DL 34/03 de 25-2 (Altera o regime jurídico d as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros
do território nacional)
DReg 13/2003 de 26-6 (Altera o regulamento da sinalização de trânsito)
Lei 99/2003 de 27-8 (Código do Trabalho - em particular capítulo IV)
DL 236/2003 de 30-9 (Transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/92/CE, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 16 de Dezembro, relativa às prescrições mínimas destinadas a promover a melhoria da protecção da segurança e
da saúde dos trabalhadores susceptíveis de serem expostos a riscos derivados de atmosferas explosivas)
DL 273/03 de 29-10 (Estabelece as regras gerais de planeamento, organização e coordenação para promover a SHST em
estaleiros da construção e transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva 92/57/CEE do Conselho, de 24-6, relativa às
prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho a aplicar em estaleiros temporários ou móveis)
DL 12/04 de 9-11 (Procede à definição das regras de acesso e permanência na actividade da construção civil)
Portaria 15/2004 de 10-1 (Procedimento para emissão de alvarás)
Portaria 16/2004 de 10-1 (Quadro mínimo de pessoal técnico qualificado nas empresas de construção civil, incluindo
na área da SHST)
Portaria 17/2004 de 10.1 (Habilitações para o exercício da actividade de construção)
Portaria 18/2004 de 10-1 (Documentação necessária para o ingresso e permanência na Construção Civil)
Portaria 19/2004 de 10-1 (Tipos de trabalho incluídos nos alvarás e que conferem habilitação para execução)
Lei 35/2004 de 29-7 (Regulamento do Código do Trabalho – em particular artº 211º a 289º)
DL 50/2005 (Transpõe para a Ordem jurídica interna a Directiva nº 89/655/CEE do Conselho, de 30-11, relativa às
prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho – Directiva
«Equipamentos de Trabalho» ).
Outras fontes:
- Convenção Colectiva Trabalho Vertical para a Construção Civil e Obras Públicas (BTE 1ª série, nº 15, de 22-4-1999, pp. 1023
com revisão global em 2005 disponível em www.aiccopn.pt)
- Regulamento 27/99-R de 8-11-99 do Instituto de Seguros de Portugal
- Manual de sinalização temporária da J.A.E.
- DL 376/84 de 30-11 (Regulamento sobre o licenciamento dos Estabelecimentos de fabrico e de armazenagem de produtos
explosivos)
- DL 265/94 de 25-10 (Transpõe para a OJI a Directiva nº 93/15/CEE do Conselho, de 5-4, relativa à harmonização das
legislações dos Estados membros respeitantes à colocação no mercado e ao controlo dos explosivos para utilização civil)
30
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Em concreto, começando pelo Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003 de 27/8,
este reservou o capítulo IV78, do art. 272º ao 280º, para os princípios gerais e para o enquadramento
da matéria da SHST, aí residindo os princípios e obrigações gerais, quer de empregadores, quer de
trabalhadores. O art. 280º do Código do Trabalho remete a regulamentação de todo esse capítulo
para legislação especial. Esse regime geral veio a ser especificamente regulamentado pela Lei 35/2004
de 29 de Julho – o Regulamento do Código do Trabalho – que nos art. 211º79 a 289º desenvolve as
normas gerais e de enquadramento que o Código de Trabalho prescreve em matéria de SHST. O
regime geral ou de enquadramento da SHST, agora estabelecido por via destes dois diplomas
fundamentais, era, até à respectiva entrada em vigor, objecto do DL nº 441/91 de 14 de Novembro.
Sobre a revogação tácita, total ou parcial, deste diploma há mais ou menos o consenso80 de que a
revogação não foi total, pois que as normas dos art. 5º a 7º e art. 18º a 20º do DL 441/91, por serem
de cariz programático quanto a obrigações de política pública, retior do Estado, em matéria de SHST,
devem considerar-se em vigor. Mais não são, porém, do que tradução fiel do que já resultava da
Convenção OIT nº 15581 ou da Directiva 89/391/CEE. O Regulamento do Código do
Trabalho revogou ainda o DL 26/94 de 1-282 que estabelecia o regime de organização e
funcionamento das actividades de SHST, actualmente objecto dos art. 218º e ss. do mesmo
Regulamento.
Entrando no âmbito específico da SHST na construção civil ou mais propriamente quanto a
estaleiros móveis, rege actualmente o DL nº 273/2003 de 29 de Outubro83. Este é pois o diploma que
teremos mais em atenção ao referenciar matéria específica de SHST no âmbito da construção civil.
Trata-se de um diploma que por conter deveres objectivos de cuidado e conteúdos da licitude a
observar (a não omitir) se torna fonte de responsabilidade penal desde que, claro está, aliada à
inobservância ilícita se comprove o resultado de perigo assim como a idoneidade específica e
- DL 139/2002 de 17-5 (Aprova o regulamento de segurança dos estabelecimentos de fabrico ou de armazenagem de produtos
explosivos)
Para obras próximas das linhas-férreas:
- Regulamento Geral de Segurança e Instruções Complementares de Segurança da REFER e da CP.
- Instruções Técnicas e Instruções complementares: IT 01/70 para trabalhos em linhas electrificadas.
- Instrução de Exploração Técnica nº 77 – Normas e Procedimentos de Segurança em Trabalhos de Infra-estruturas, de
1-6-2004, do Instituto Nacional de Transporte Ferroviário).
78 Capítulo inspirado na Directiva 89/391/CEE, que já servira de mote ao DL 441/91.
79 Artigo este que dispõe: «O presente capítulo regulamenta o art. 280º do Código do Trabalho»
80 De entre os especialistas que leccionaram o “Curso de Higiene, Segurança e saúde no Trabalho”, promovido pelo CEJ em
4,11,18 de Abril e 2 de Maio/2005, parece ter sido essa a conclusão mais consensual.
81 A Convenção OIT nº 155 de 22-6-81 sobre a segurança e a saúde dos trabalhadores e o ambiente de trabalho foi aprovada para
ratificação pelo Decreto do Governo nº 1/85 de 16-1-85, e portanto já tinha, por via disso, plena eficácia e validade interna.
82 Alterado pela Lei nº 7/95 de 29/3 e pelo DL nº 109/2000 de 30-6.
83 Este diploma, como resulta do seu artigo 1º, estabelece regras gerais de planeamento, organização e coordenação para promover
a segurança, higiene e saúde no trabalho em estaleiros da construção e transpõe a Directiva 92/57/CEE do Conselho, de 24 de
Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho a aplicar em estaleiros temporários ou móveis.
31
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
hipotética da omissão da observância dos preceitos regulamentadores para o desencadear do processo
causal típico.
É preocupação desta legislação sectorial de SHST não excluir de obrigações e
responsabilidades quem quer que seja, desde empregadores84, técnicos e até trabalhadores. É, de
alguma forma, uma regulamentação “esgotante”, embora por vezes repita responsabilidades em
diferentes protagonistas, dificultando a jusante a intervenção do direito penal ao nível da fonte da
ilicitude e da titularidade do dever violado85. Claro está que estas e outras alterações legislativas
colocaram problemas de aplicação da lei no tempo no desenvolvimento dos processos penais por
infracção às regras de segurança no trabalho86. Mantém-se ainda em vigor o Decreto nº 41.821 de 11-
8-1958 (regulamento da segurança no trabalho), Decreto muito importante e a que se recorre amiúde
para se encontrar norma legal em matéria de SHST que possa ter sido infringida em obra (p. ex.
abertura e entivação de valas, deficiência de andaimes, etc.). Também se mantém em vigor a Portaria
101/96 de 3 de Abril, que regula as prescrições das normas técnicas mínimas de segurança e de saúde
nos locais e postos de trabalho dos estaleiros temporários ou móveis87. Na conjugação dos diplomas
de enquadramento geral com os diplomas sectoriais, há que prestar particular atenção às regras que
dizem respeito ao campo das responsabilidades funcionais ou profissionais pela observância de regras
de SHST, já que essa área é das que interessam para a matéria que nos ocupa, pois que representa
uma das duas principais vertentes da norma penal em branco.
Vistos em geral os diplomas de referência, já é possível fazer uma aproximação às questões da
autoria.
Em geral poderemos identificar os sujeitos activos do crime em causa como aqueles que têm a
obrigação, no âmbito da sua actividade profissional definida por exemplo nas fontes legais ou
convencionais, de implementar os mecanismos e facultar os meios destinados a garantir a segurança
no trabalho e portanto destinados a evitar o perigo para os bens jurídicos objecto de tutela jurídicopenal.
84 Cf. art. 274º do Código do Trabalho e cf. artº 22º do DL 273.
85 Algumas incongruências e dificuldades de conciliação conceptual já eram evidentes no DL 155/95, tal como é referido por J.
Soares Ribeiro, op. cit., pp. 20 e ss. O DL 273 veio revogar o DL 155/95 de 1 de Julho, o qual tivera uma alteração pela Lei
113/99 de 3 de Agosto.
86 Problemas tão ou tão pouco complexos como o de saber que regras de segurança observar quando um diploma legal revoga um
outro que previa essas regras e o novo diploma estabelece um prazo de vacatio para a entrada em vigor das novas regras de
segurança. Isso aconteceu com o DL 82/99 de 16-3 (entretanto e revogado pelo DL 50/2005 de 25-2) relativo às prescrições
mínimas de segurança na utilização de equipamentos de trabalho. O respectivo art. 41º revogou o diploma que estabelecia essas
prescrições mínimas, mas no seu artº 5º nº 2 relegava para Dezembro de 2002 a observação dos requisitos mínimos de segurança
relativamente a equipamentos de trabalho móveis ou de elevação que estivessem em serviço e à disposição de trabalhadores antes
de 8 de Dezembro de 1998. Como decidir se o acidente de trabalho ocorresse nesse período temporal e por causa da não
observância mínima das regras de segurança nos equipamentos? Estaríamos perante uma qualquer «amnistia» à observância dessas
regras mínimas? Se não, qual o regime a aplicar? O revogado?
87 A vigência destes diplomas foi ressalvada por via do art. 29º do DL 273.
32
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Tal como se referiu em relação a outras questões, muito depende do caso concreto e do
preenchimento empírico da previsão normativa. De facto, embora o Código do Trabalho se refira,
essencialmente, ao «empregador» como obrigado em matéria de SHST, poderemos estar perante
acidente ou perigo concreto provocado por erro técnico na fabricação de determinada máquina ou de
veículo de transporte ou de carga que venha a causar a morte ou ofensa à integridade física de
trabalhador. Neste caso, a noção de «empregador» é aqui inoperável, enquanto critério heurístico para
a determinação do sujeito activo do crime p.p. pelo art. 277º nº 1 al. b) do C.Penal, e o facto de se
estar perante norma penal em branco impõe que se recorra às disposições legais sobre regras de
segurança na fabricação ou manutenção de maquinaria88.
Embora, em geral e em tese, seja ao «empregador» que, de acordo com o Código do Trabalho,
cabe a adopção das medidas necessárias à implementação da SHST – seja pela implementação dos
mecanismos destinados a prevenir acidentes, seja por outras vias, de natureza preventiva, como a
formação, a informação sobre os riscos, etc. – essa centralização das responsabilidades no
«empregador» é insuficiente para solucionar alguns dos problemas que na prática se colocam.
De facto, nem sempre é referenciado o «empregador» como o responsável pela implementação
dos meios e mecanismos destinados a prevenir acidentes no trabalho. Acontece assim no DL 273, em
que as obrigações em matéria de SHST são acometidas, por exemplo, e, em grande medida, ao
empreiteiro ou entidade executante, sem que a lei se preocupe em fazer coincidir nele a noção de
«empregador», que até, para o conteúdo das obrigações que lhe cabem, se torna pouco relevante. E,
quando o empregador, o dono da obra, o empreiteiro ou subempreiteiro é pessoa colectiva, de
estrutura e complexidade variáveis, de natureza privada ou pública, em resultado da complexidade,
estrutura ou natureza da pessoa colectiva, as necessidades organizativas derivadas implicam que sejam
conferidos poderes de direcção a executantes, a técnicos, ou simplesmente a intermediários
dependentes do empregador ou representantes deste que, por via dessas responsabilidades delegadas,
ainda que subalternas e ainda que não excluam as responsabilidades gerais do empregador, ficam
também responsabilizados pela implementação dos meios e instrumentos destinados a prevenir
acidentes no trabalho. O exercício dessas funções de direcção técnica ou de comando e execução por
responsáveis subalternos tanto faz que resultem de acto formal do empregador que confira tais
poderes, como do exercício «de facto» de poderes delegados, assunto que adiante será mais
desenvolvido.
Portanto, há figuras funcionalmente dependentes do empresário/empregador (com especiais e
bem delimitadas responsabilidades em matéria de SHST) e que o representam (por serem
normalmente trabalhadores do empresário, dono da obra, empreiteiro, etc.), sendo por isso
88 Cf. alguns dos diplomas pertinentes a essa matéria enunciados na nota 77 .
33
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
responsáveis penais na medida em que tenham a obrigação derivada de implementar mecanismos
destinados a prevenir acidentes ou de dirigir a actividade dos trabalhadores ou de orientar a execução
de obras, ou mesmo de impedir a realização de trabalhos em condições que propiciem o aumento de
perigo para a vida ou integridade física dos trabalhadores, etc.89.
Entrando por aproximação crescente ao conjunto de sujeitos activos do crime, que em termos
gerais se tenta delimitar, o n.º 4 do art. 273º do Código do Trabalho indicia que nem só o
empregador ou nem só o empreiteiro têm responsabilidades em matéria de SHST. Em todo o caso, ao
relacionar-se essa norma com o art. 20º do DL 273 torna-se evidente que é na entidade executante
(adjudicatário ou empreiteiro) que recai o grosso das responsabilidades em matéria de SHST90. Dispõe
aquele nº 4 do art. 273º do Código do Trabalho que «quando várias empresas, estabelecimentos ou serviços
desenvolvam, simultaneamente, actividades com os respectivos trabalhadores no mesmo local de trabalho, devem
os empregadores, tendo em conta a natureza das actividades que cada um desenvolve, cooperar no sentido da
protecção da segurança e da saúde sendo as obrigações asseguradas pelas seguintes entidades: a) A empresa
utilizadora, no caso de trabalhadores em regime de trabalho temporário ou de cedência de mão-de-obra; b) A
empresa em cujas instalações os trabalhadores prestam serviço; c)Nos restantes casos, a empresa adjudicatária da
obra, para o que deve assegurar a coordenação dos demais empregadores através da organização das actividades
de segurança, higiene e saúde no trabalho, sem prejuízo das obrigações de cada empregador relativamente aos
respectivos trabalhadores.»91. Quanto ao art. 20º do DL 273, o mesmo estabelece as obrigações gerais da
entidade executante ou adjudicatária, entre as quais «... c) Elaborar fichas de procedimentos de segurança
para os trabalhos que impliquem riscos especiais e assegurar que os subempreiteiros e trabalhadores independentes
e os representantes dos trabalhadores para a SHST que trabalhem no estaleiro tenham conhecimento das
mesmas; d) Assegurar a aplicação do plano de segurança e saúde e das fichas de procedimentos de segurança por
parte dos trabalhadores, de subempreiteiros e trabalhadores independentes; e) Assegurar que os subempreiteiros
cumpram, na qualidade de empregadores, as obrigações previstas no art. 22º; f) Assegurar que os trabalhadores
independentes cumpram as obrigações previstas no art. 22º...», embora existam outros deveres da entidade
executante em matéria de SHST objecto de outros artigos do DL 273, como os art. 9º, 11º, 13º, 14º e
24º.
89 Cf. nesse sentido a posição de María Ángeles H. Hernández e José Alberto Serrano Rodríguez, op. et loc. cit.
90 As responsabilidades em causa têm natureza diversa (contra-ordenacional essencialmente) e dirigem-se não só ao empreiteiro,
mas também ao dono da obra ou simplesmente ao «empregador». A responsabilização é por interposta pessoa, normalmente por
acto de pessoal subordinado que pode ser, por exemplo, o coordenador em projecto ou em obra, o director técnico de
empreitada, etc.
91 Se de imediato parece que a responsabilidade de cada uma das entidades intervenientes não exclui a responsabilidade de todas
em matéria de SHST, é possível identificar círculos de responsabilidades sucessivos. Para o dono da obra recai a responsabilidade
de nomear coordenadores de segurança e promover a elaboração de instrumentos como o Plano de Segurança e Saúde,
responsabilidade que não anula a dos projectistas, quanto à garantia por estes da segurança no projecto, nem afasta a dos
empreiteiros e subempreiteiros e em geral de todas as entidades que sejam empregadoras e tenham trabalhadores no local de
trabalho e que individualmente têm a responsabilidade de garantir a segurança dos seus trabalhadores.
34
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Portanto, para o empreiteiro ou entidade executante está reservada a grande fatia de
responsabilidade na observância e cumprimento das normas legais, regulamentares ou técnicas em
matéria de SHST, incluindo a de organizar a cooperação e coordenação das várias entidades/empresas
envolvidas, obrigações que encontram no Plano de Segurança e Saúde o principal instrumento desse
cumprimento92/93. Para esse cumprimento, do/ao lado do empreiteiro pode ter que existir um
Coordenador de Segurança em projecto e em obra94/95.
Começam assim a aparecer as figuras que serão escrutináveis como responsáveis penais em
caso de acidente que tenha sido motivado por omissão/infracção às regras de segurança no trabalho.
Vamos olhar mais de perto o conteúdo funcional de algumas dessas figuras – e apenas algumas – pois
o DL 273 designa, de forma mais ampla e tipificada, quem tem responsabilidades e obrigações em
matéria de SHST nos estaleiros temporários ou móveis96.
92 Quando exista, já que a sua obrigatoriedade depende dos critérios estabelecidos no DL 273 – artº 5º nº 4 e artº 7 ou depende
de obras que exijam comunicação prévia (caso de obras que durem mais de 30 dias e envolvam mais do que 20 trabalhadores em
simultâneo). Sendo obrigatório, o PSS é da iniciativa do Dono da Obra, é elaborado pelo Coordenador de Segurança em Projecto
durante a fase de projecto e deve integrar o processo de concurso e ser passível de consulta pelos interessados. Em casos de não
obrigatoriedade do PSS, a entidade executante deve elaborar as fichas de procedimentos de segurança, nos termos do artº 14º do
DL 273.
93 Ainda quanto ao Plano de Segurança e Saúde, a sua importância é assinalável na instrução do processo de inquérito. Mas para
além desse PSS existem outros elementos de grande relevo e cuja existência – nuns casos legal e obrigatória – é de ter em conta
como acervo probatório. Referimo-nos às Fichas de Procedimentos de Segurança, à Comunicação Prévia, à Compilação Técnica
da Obra (DL 273), ao Projecto de Estaleiro, ao Plano de Acesso, Circulação e Sinalização no estaleiro (DL 141/95; Portaria 1456-
A/95; DReg. 22-A/98), ao Plano de Protecção Colectiva, aos Planos de Monitorização e Prevenção, ao Plano de Protecções
Individuais, Planos de Escavação, Planos de Montagens e Tubagens, Planos de Cofragens e Betonagens, Plano de Montagem de
Estruturas Metálicas, Plano de Montagem, Utilização e Desmontagem de Andaimes, etc.
94 O coordenador de Segurança em Projecto (CSP) é tão importante como o Coordenador de Segurança em Obra (CSO) e não é
de excluir dos possíveis responsáveis penais. Dir-se-á que, em traços largos, 1/3 dos acidentes de trabalho na construção Civil
ocorrem por erros de concepção, outro tanto por erros de organização e outro tanto por erros de execução no estaleiro. Não é
sobre o CSP que vamos centrar a nossa atenção. De entre as funções, cabe-lhe a função importante de elaborar ou validar o Plano
de Segurança e Saúde e de elaborar a compilação técnica, estando esta descrita no art. 16º do DL 273.
95 O Coordenador de Segurança é, segundo o DL 273, de nomeação exclusiva pelo Dono da Obra. A violação dessa regra é
sancionada com coima. Porém, não é inédito encontrar, amiúde, o Coordenador de Segurança como pessoa nomeada pela
entidade executante/empreiteiro. E também não é inédito, embora seja espantoso, que o Coordenador de Segurança, o Técnico
de Segurança, o Director de Obra, etc., sejam a mesma pessoa. Acontece, também, que, por vezes, o Dono da Obra nomeia como
Coordenador de Segurança, nada mais nada menos, que a entidade executante, o que constitui também contra-ordenação. Na
prática, esses casos baralham a identificação dos responsáveis penais e tamanhas ubiquidade e ilegalidade apenas servem o
cumprimento de meras formalidades.
96 O elenco dos sujeitos é feito no artº 3º do DL 273, onde constam os seguintes: Autor do projecto de obra, coordenador em matéria de
segurança e saúde durante a elaboração do projecto de obra, coordenador em matéria de segurança e saúde durante a execução da obra,
responsável pela direcção técnica da obra, o director técnico da empreitada, dono da obra, empregador, entidade executante, equipa de projecto,
fiscal da obra, representante dos trabalhadores, subempreiteiro, trabalhador independente. No âmbito do referido diploma legal o facto de
se identificarem esses sujeitos com obrigações em matéria de SHST não significa que lhes seja directamente assacável, por
exemplo, responsabilidade contra-ordenacional. Em muitos casos, ela não está prevista como tal (cf. artº 25 e ss. do DL 273), o
que significa que apenas pode estar em causa uma responsabilidade disciplinar (?) para com o empregador, caso alguns desses
sujeitos sejam também trabalhadores subordinados. E em muitas situações é ao empregador/entidade patronal [dono da obra,
entidade executante ou subempreiteiro – artº 3º nº 1 g)] que cabe a maior fatia da responsabilidade em matéria contraordenacional.
Em qualquer caso, fora do contexto específico desse diploma e dos problemas que ele levanta nessa matéria (que
estão bem identificados por J. Soares Ribeiro, op. cit., pp. 22 e ss.), o elenco dos responsáveis em matéria de SHST permite a
selecção dos possíveis responsáveis penais, já que a violação do conteúdo funcional que a cada um cabe permite um
correspondente juízo indiciário formal e investigatório de ilicitude consonante com a natureza de crime específico próprio que é
característica do artº 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal, como veremos ainda mais adiante.
35
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
No elemento normativo do tipo que respeita à autoria e que necessita de densificação por via
de norma secundária, também se podem incluir outras figuras com conteúdo funcional ligadas à
observância de regras de segurança. Por exemplo o Técnico de Segurança, o Director de Obra, o
Encarregado de Obra e, em resultado da análise do caso concreto, quem tiver por conteúdo funcional
obrigações de (zelar pela) implementação de meios ou aparelhagens destinados a prevenir acidentes
no trabalho. A enumeração pode ir além do próprio DL 273, pois que o alcance de tais conteúdos
funcionais pode constar de lei ou de outra fonte, como por exemplo de Contratos Colectivos de
Trabalho ou, porque não, do contrato de empreitada. Vejamos algumas dessas figuras a exemplo
aleatório:
O Coordenador de Segurança integra – naturalmente que em resultado da ponderação do
caso concreto – a natureza “específica própria” do tipo-de-ilícito do art. 227º nº 1 al. a) e b) 2ª parte do
C.Penal. O apelo típico ao «âmbito da sua actividade profissional...» dirige-se a figuras como a do
Coordenador de Segurança. Tanto importa ser o Coordenador em Projecto, como o Coordenador
em Obra, dependendo a selecção de um ou outro da identificação da causa próxima e decisiva do
acidente, embora nada impeça concorrência de responsabilidades na criação do perigo97. De facto, a
eventual contribuição paralela e cumulativa de responsabilidades por parte dos dois Coordenadores
não exclui nenhum deles do escrutínio da responsabilidade penal98.
O Coordenador de Segurança em obra: Normalmente, é apenas trabalhador do dono da
obra, mas pode ser pessoa colectiva, prestadora de serviços, embora nesse caso tenha que ter
identificado o indivíduo que assegura o exercício da coordenação - cf. art. 9º nº 3 al. b) do DL 273 -
além do preenchimento dos requisitos exigidos ao desempenho da sua função (requisitos de
idoneidade técnica a estabelecer em regulamentação especial99). Ele tem por obrigações de conteúdo
funcional, entre outras, a de executar, durante a realização da obra, as tarefas de coordenação em
matéria de segurança e saúde previstas no DL 273, (portanto de nível organizativo) incluindo-se aí as
de promover e verificar o cumprimento do Plano de Segurança e Saúde bem como de outras
obrigações da entidade executante; promover a divulgação entre os intervenientes no estaleiro de
97 Sendo ambos de nomeação pelo dono da obra, o coordenador em projecto assegura, em nome daquele, três obrigações em
matéria de SHST, enquanto o coordenador em obra assegura dez obrigações (artº 19º DL 273).
98 A nomeação do coordenador em projecto tem lugar quando o projecto é elaborado por mais que um sujeito. A nomeação do
coordenador em obra tem lugar quando intervêm mais do que uma empresa e/ou trabalhadores independentes. Explica-se a
incumbência de ser o dono da obra a nomeá-los pela necessidade de ser garantida a autonomia e independência face aos interesses
económicos em jogo. A missão dos coordenadores consiste em planificar e organizar a prevenção desde a fase do projecto até à
fase de execução da construção. O Coordenador em Projecto tem, de entre as várias actividades principais, a de elaborar o plano
de segurança e saúde, que terá continuação, desenvolvimento, especificação ou reformulação em fase de execução da obra. O
Coordenador em Obra determinará o desenvolvimento de actividades de coordenação dos diversos intervenientes no estaleiro,
promoverá a implementação das medidas previstas no Plano de Segurança e Saúde, assegurará o cumprimento da programação
relativa a trabalhos que impliquem riscos especiais, além de organizar inspecções ao estaleiro, entre muitas outras incumbências,
que estão descritas e enumeradas na obra de divulgação Construção civil e obras públicas – A coordenação de segurança, Lisboa, edição
do IDICT, da autoria de Fernando A. Cabral e Manuel M. Roxo, 1996, pp. 38 e ss.
99 Cf. nº 3 do art. 9º do DL 273.
36
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
informação sobre riscos profissionais e a sua prevenção, etc. (cf. art. 3º 1 c) e 19º nº 2 do DL 273);
coordenar actividades com vista a prevenir riscos de acidentes; efectuar inspecções às instalações, aos
locais de trabalho e ao material que interesse à segurança no trabalho, verificar o cumprimento das
disposições legais e outras quanto à segurança; tomar medidas imediatas com vista à eliminação de
anomalias verificadas que ponham em risco a integridade física dos trabalhadores; etc.
O Técnico de Segurança: tinha o conteúdo funcional previsto no DL 26/94 de 1-2, na
redacção do DL 109/200 de 30-6, designadamente nos art. 16º e 24º. Por via da revogação operada
pelo Regulamento do Código do Trabalho, que regula actualmente os Serviços de Segurança, Higiene
e Saúde no Trabalho, esse conteúdo funcional encontra-se agora nos art. 239º, 240º e 241º desse
Regulamento e ainda no art. 2º do DL 110/2000 de 30-6, ainda em vigor, que estabelece as condições
de acesso e de exercício das profissões de técnico superior de SHST e de técnico de SHST. O
conteúdo funcional das respectivas competências traduz-se em organizar, desenvolver, coordenar e
controlar as actividades de prevenção e protecção contra riscos profissionais; efectuar inspecções às
instalações, locais de trabalho e material que interesse à segurança no trabalho, verificar o
cumprimento das disposições legais e outras quanto à segurança, etc.100
O Director de obra: tinha o conteúdo funcional directamente definido no DL 155/95. Por
via da revogação operada, esse conteúdo funcional está agora definido no DL 273, mas sob a
designação de « Responsável pela Direcção Técnica da Obra». Cabe-lhe assegurar a direcção efectiva
do estaleiro e, nessa função, conduzir a execução da obra de modo a cumprir as regras em matéria de
segurança e o plano de segurança. Enquanto dirigente efectivo do estaleiro, não pode desconhecer as
regras mínimas de segurança e saúde nos estaleiros temporários ou móveis101.
O Encarregado de Segurança da obra, cujo conteúdo funcional se encontra na CCT para a
Construção Civil, publicado no B.T.E. 1ª série, nº 15, de 22-4-1999, pp. 1023, tem por funções, por
exemplo, verificar o cumprimento das normas de segurança internas e oficiais, efectuar inspecções
regulares aos locais de trabalho e tomar medidas com vista à eliminação de anomalias, etc.
A par deste encarregado e por vezes coincidente com ele, o Encarregado da obra, enquanto
trabalhador que chefia uma frente de obra e de trabalho é co-responsável pela organização do estaleiro
e gestão de equipamentos, incluindo os destinados à segurança. É, normalmente, a figura mais
colocada no terreno para verificar o não cumprimento de regras de segurança, já que tem funções de
proximidade temporal e espacial com as fontes de perigo, além do dever de os evitar ou prevenir.
100 Cf. também, quanto ao conteúdo funcional, o CCT para a indústria da construção civil e obras públicas (revisão global), a
consultar no site www.aiccopn.pt, visitado em 18-12-2005.
101 No âmbito do DL 155/95 era cargo ou função de existência obrigatória (cf. art. 5º nº 3 desse diploma), sempre que não fosse
necessária a nomeação de coordenador de segurança. Nada impedia então a existência dos dois, que se deviam articular entre si.
37
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
A responsabilidade destas figuras, como das demais, depende sempre, como se disse, das
coordenadas do caso concreto e da identificação das causas ou conjunto delas que estiverem na
origem do acidente de trabalho ou da situação de perigo para os bens jurídicos protegidos pela norma
penal, e também não é o facto de algumas destas figuras existirem formalmente identificáveis num
estaleiro, que ficam exonerados de responsabilidade os demais intervenientes (vide artº 10º do DL
273 que parece apelar a uma responsabilidade solidária).
Toda esta matéria de contacto com conteúdos funcionais e de âmbito profissional nos
transportam para as questões que se vão colocar no campo da autoria e da imputação. É nesses
campos que a diferença de significado entre “crimes de violação de dever” ou a definição de autoria por
via do “domínio do facto”102 se faz valer nas consequências.
Por via da classificação como “crime de violação de dever”, o facto de se ter atribuído
determinadas funções ou conteúdo funcional basta para a determinação dos imputáveis. A requerer-se
a verificação dos requisitos da teoria do “domínio do facto” para afirmar a autoria, então, vai fazer com
se dependa ainda mais do caso concreto. Da avaliação empírica feita, é corrente – e foram vários os
processos em que se viu debatida a questão – verificar que alguns dos indiciados responsáveis
invocam terem aquilo que poderíamos denominar «categoria-habilitação» (no sentido de que são os
titulares formais dos cargos relevantes para previsão normativa) mas negam serem eles os titulares da
«categoria-função» (no sentido de serem aqueles que desenvolvem efectivamente o conteúdo funcional
das profissões ou responsabilidades abrangidas pela norma - os intranei). Isto tem sucedido em relação
aos supostos titulares daquelas categorias de funções que acima identificámos a mero título de
exemplo e que são, afinal, executantes das obrigações em matéria de SHST, actuando na dependência
e interesse do empregador/empresário, seja ele dono da obra ou empreiteiro ou subempreiteiro103.
Quando estas questões surgem, elas representam, na maioria dos casos, a abertura de um
campo importante na estratégia processual por parte dos indiciados, e, ainda, a abertura de um
complexo debate judiciário para o qual é necessário o conhecimento preciso dos diplomas legais que
definem conteúdos funcionais e obrigações ou regras em matéria de SHST. Só dessa forma se evita a
desistência no controlo do processo aquando das primeiras dificuldades de compreensão. Estas e
outras questões reportadas à identificação dos imputáveis reclamam um conjunto de questionamentos
102 Domínio do facto que se traduz: no domínio positivo ou negativo do processo causal (o que inclui a omissão), no domínio da
vontade (para os casos de autoria mediata) ou no domínio funcional (para os casos das estruturas criminosas colectivas)
103 Bernd Schünemann sustenta que a responsabilidade penal dos que actuam «de facto», sem habilitação funcional, deve ser
baseada no juízo de que a efectiva entrada na esfera de actuação típica, com o consentimento do destinatário primário da norma
de responsabilidade ou a quem este delegou poderes, corresponde à assumpção de um âmbito de domínio, ainda que sem
delegação formal, “Responsabilidad penal en el marco de la empresa. Dificultades relativas a la individualización de la imputación”, Anuário
de derecho penal e ciências penales, tomo LV, MMII, 2004, pp. 8 ss.
38
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
concretos sobre a autoria, a responsabilidade penal e a imputação objectiva, reclamando também por
isso um novo capítulo de discussão.
5. Algumas questões de autoria e imputação objectiva por omissão.
Quer no DL 273, quer no Código do Trabalho e respectiva Lei Regulamentar, quase todos os
intervenientes verticais numa obra de construção civil têm responsabilidades ao nível da observância
ou respeito por regras legais, regulamentares ou técnicas que visem prevenir acidentes de trabalho.
Tais responsabilidades vão desde o dono da obra, ao empreiteiro ou entidade executante, passam
pelos coordenadores de segurança em projecto e em obra e por outros profissionais, e acabam no
próprio trabalhador, dependente ou independente, também ele destinatário dessas normas. A
responsabilidade prefigura-se pois, já alguém o disse, como uma responsabilidade em cascata.
Mas serão todos eles possíveis autores ou responsáveis penais em caso de resultado de perigo
para bens pessoais ou patrimoniais importantes, que resulte da infracção a regras legais,
regulamentares e técnicas que impõem a implementação de instrumentos ou mecanismos destinados
a prevenir acidentes no trabalho?
A ser requerida uma resposta concreta, ela parece-nos ser tendencialmente positiva, embora
com a prudência inerente aos juízos heurísticos e sem prejuízo de se manterem abertas todas as
hipóteses de prováveis ou improváveis responsáveis. Importa ter a cautela de distinguir previamente o
tipo de responsabilidade de que estamos a falar, pois ela pode ser, horizontalmente, de natureza civil e
jus-laboral, pode ser contra-ordenacional e pode ser igualmente equacionada em termos criminais. De
facto, em maior ou menor grau de probabilidade, grande parte dos intervenientes num estaleiro,
39
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
vinculados ao cumprimento ou observância de regras em matéria de SHST, são passíveis de
responsabilidade contra-ordenacional. A par desta, está a eventual responsabilidade civil no âmbito da
legislação própria dos acidentes de trabalho. Paralelamente, podem levantar-se questões de
responsabilidade civil contratual ou aquiliana104. Todo um universo de eventuais campos de
responsabilidade pode, pois, mover-se quando ocorre um acidente de trabalho.
Havendo campo de intervenção para o direito penal, as questões da autoria e da identificação
dos responsáveis reclama alguma contenção, já que a legislação pertinente que preenche a norma
penal em branco identifica responsabilidades sem distinguir em quais daqueles três campos as quer
reclamar, ou sem impedir a intersecção dessas responsabilidades de diferente natureza.
Se nos cingirmos ao campo penal e tivermos em conta todas as possibilidades de intersecção
das responsabilidades de diferente natureza, e, se o critério para a determinação da autoria for a tese
de Roxin sobre os crimes de “violação de dever”105, então qualquer um dos obrigados pela lei a cumprir
regras em matéria de SHST é susceptível de vir a ser responsabilizado penalmente.
Deve, porém, considerar-se, seguindo assim a posição de outros autores106, que essa tese deve
ser corrigida com a teoria do “domínio do facto” enquanto critério definidor da autoria adoptado no
Código Penal, além de que outros princípios de direito penal têm que constituir também critérios de
selecção dos responsáveis penais. Vejamos em que termos: Em princípio, haverá responsabilidade
criminal se se comprovar a imputação objectiva entre a omissão da implementação dos instrumentos
ou da disponibilização de «meios» resultantes de imposição legal, regulamentar ou técnica e o
resultado de perigo concreto para a vida, integridade física ou saúde dos trabalhadores. No entanto,
verificar que determinada regra de segurança foi violada, que determinado tópico do Plano Segurança
104 Reportamo-nos a defeitos de obra ou a desrespeito das normas de segurança na construção e à responsabilidade do dono da
obra, do empreiteiro perante aquele e perante terceiros, do subempreiteiro, do projectista, da entidade fiscalizadora e mesmo ao
concurso de responsabilidades entre estas entidades, sem excluir eventual concurso cumulativo das responsabilidades contratual e
aquiliana Esta pode decorrer de ofensa de direitos de personalidade, por violação da obrigação geral de segurança ou dos princípios
neminem laedere e alterum non laedere. Muitas vezes as obrigações decorrentes da regras de SHST são objecto de clausulado
contratual entre dono da obra e empreiteiro, entre este e subempreiteiros e assim sucessivamente, em contínua transferência de
responsabilidades quanto à observância das regras de SHST. Porém, não se trata de matéria que possa ser objecto de total
conformação contratual, já que lhe subjazem interesses de ordem pública e outros que visam a tutela de direitos absolutos. Nas
relações entre por ex. subempreiteiro e empreiteiro e entre este e o dono da obra os danos sofridos são indemnizáveis no âmbito
da responsabilidade contratual. Nas relações daqueles com terceiros os danos sofridos são indemnizáveis nos termos gerais da
responsabilidade civil extracontratual. Sobre questões próximas cf. Parecer sobre «Empreitada e Responsabilidade Civil», João Calvão
da Silva, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1999, pp. 6 e ss.
105 Sobre a noção de delitos de dever, sem que quanto à caracterização desses tipo-de-ilícito faça qualquer apreciação crítica, vide F.
Dias, Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e social português, Revista
Direito e Justiça, IV, 89/90, pp. 44. Este autor reporta que nos delitos de dever é pressuposto do preenchimento do tipo a violação de
um especial dever, em regra extra penal … em que o bem jurídico se constitui por sobre esse especial dever, revelando-se particularmente
acentuada a sua característica de relação (em geral comum, aliás, a todo o bem jurídico). São normalmente delitos específicos, aos quais é
consubstancial a violação de um dever específico anterior à norma penal e cujos destinatários se caracterizam por uma especial relação, v. g. de
tipo profissional com o conteúdo ilícito do facto. No campo da autoria identificam-se especificidades por apelo empírico aos diversos papeis sociais
dos agentes, em que a categoria social em que o agente actua, o seu específico «estatuto social», é determinante para a definição do próprio tipode-
ilícito (o papel social como comerciante, operário, contribuinte…) – pp. 38 e 44-45.
106 É essa a posição de Rui Patrício, ob. citada na nota 17.
40
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
e Saúde (PSS) foi desrespeitado, não implica automaticamente a identificação do responsável penal.
Desde logo, porque o responsável omitente pode ser pessoa colectiva e portanto insusceptível de
responsabilidade penal107. E, se dentro da estrutura da pessoa colectiva, quisermos identificar
responsáveis penais, a tarefa não é fácil. Ao observarmos a estrutura organizativa de uma
empresa/pessoa colectiva, a identificação de um ou mais responsáveis concretos transfere-nos para a
análise da normal cadeia de delegação de competências que, numa estrutura de direcção/comando
vertical, nem sempre permite a responsabilização daqueles que se situam no topo de comando. As
dificuldades são não só jurídicas – quando o dever violado ou omitido não é facilmente reconduzido
ao dever típico, retior tipificado – como são também inerentes às formas e fórmulas complexas de
conformação prática das cadeias de comando.
A existência de uma delegação de poderes em matéria de segurança, que passe por diversos
patamares intermédios até aos cargos mais directamente envolvidos com o contexto laboral onde os
acidentes podem ocorrer, dificulta a responsabilização dos titulares da administração, a qual não deve
subtrair-se aos critérios próprios da teoria do ”domínio do facto”. Veja-se qual o contexto deste
raciocínio: o facto de um acidente de trabalho grave ocorrer em consequência da omissão da
implementação de instrumentos destinados a prevenir acidentes laborais, isto quando, por hipótese,
havia conhecimento difuso da situação de insegurança por parte do Conselho de Administração de
uma empresa, não implica automaticamente uma responsabilidade penal dos respectivos titulares pela
omissão108. Por norma, existe divisão de «pelouros» ou de áreas nos órgãos dirigentes, pelo que nem
todos podiam ser seleccionados como possíveis responsáveis. E, a partir daqui, as questões seriam
sucessivas: seria apenas de chamar o que tivesse responsabilidades na área/«pelouro» da segurança?
Ou seria antes de escrutinar se houve uma decisão colegial que esteve na origem da situação de
insegurança? E, se sim, só seria de chamar os que votaram favoravelmente essa decisão? Que juízos de
causalidade e de imputação objectiva seriam os correctos em decisões colegiais não unânimes e
porquê? E as dificuldades de prova para demonstrar que o sentido de determinado voto reduziu ou
aumentou o risco de produção do resultado? Sobretudo, que relevância dar ao sentido de voto, à
discussão que gera ou à identificação de uma vontade esclarecida ou equivocada que participa numa
decisão colegial que, por simples maioria, manifesta e imputa a vontade da pessoa colectiva? Quais os
parâmetros da capacidade de acção e de culpa da pessoa colectiva posta perante estas vicissitudes na
manifestação de vontade?
107 Pelo menos por enquanto, pois ainda não há disposição legal que permita conclusão diversa da que resulta do artº 11º
C.Penal.
108 Um pouco diferente seria a conclusão no caso de haver uma clara decisão da administração para a prática de acto ilegal em
matéria de SHST e que fosse criadora do perigo relevante.
41
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
As dúvidas criadas antecipam um resultado que se prefigura bastante insatisfatório, por deixar
impunes os que se colocam no topo de uma hierarquia de responsáveis109. Porém, o esforço em
justificar a responsabilidade dos titulares dos cargos directivos pela omissão não é simples ou mesmo
plausível. De facto, a querer sustentar-se a responsabilidade criminal dos membros de um qualquer
conselho de administração de uma empresa (ou, pelo menos, de um dos administradores titular do
pelouro da segurança, embora este esteja quase sempre dependente do pelouro financeiro) só, pela via
lógica de uma eventual violação de deveres de cuidado, seria a mesma possível, na dupla perspectiva
de uma eventual «culpa in eligendo» e/ou «in vigilando» relativamente aos subordinados/delegados.
Sobre o dirigente que delega nos sucessivos patamares da hierarquia inferior o cumprimento das
normas de segurança (por exemplo no interior de uma fábrica ou, enquanto entidade
executante/adjudicatário, no interior de um estaleiro de obra), a responsabilidade que se lhe pode
assacar, em concreto, é só a de não cumprir o dever de vigilância quanto ao efectivo cumprimento dos
poderes que delegou. Mas, admitir, através desse dever geral de eleger e vigiar os subordinados, a
responsabilidade do delegante/empresário/director com encargos na área da segurança da empresa,
por uma omissão negligente, não basta. Por um lado, no enunciado normativo, a acção típica é o não
facultar os meios, não a de não vigiar. É a falta de implementação desses meios que incrementa ou,
não diminui o risco. E sendo já difícil, por esta via, socorrermo-nos da causalidade hipotética, mais
difícil seria se se fundasse a omissão relevante também na violação de um dever de vigilância. Por
outro lado, sendo o crime em questão um crime de omissão própria ou específica, alargar os deveres
especiais expressamente previstos no tipo legal levaria a equiparar na prática a omissão em causa a
uma omissão imprópria, por levá-la a abarcar afinal uma causalidade desmedida e um grande leque de
possíveis autores, ultrapassando-se assim o limite da culpa. Valem aqui as considerações de que «…só
se deve punir o que tiver intensa reprovação moral da comunidade, reprovação que tem que ser tão reconhecida
como no crime de acção correspondente, de forma a evitar que alguém possa ser apanhado de surpresa pela
punição severíssima da omissão imprópria»110.
Assim, a eventual violação, por algum particular membro de um Conselho de Administração,
dos deveres de vigilância a que o mesmo estava adstrito, poderá fundamentar a responsabilidade civil
daquele. Não é claro, nem lógico que fundamente a sua responsabilidade criminal, para mais quando
estiver em causa a forma dolosa de crime.
109 O laivo de impunidade aparente verifica-se quando, a titulo de exemplo, o dono da obra, por ser pessoa colectiva, não
responde penalmente, ficando nessa posição por exemplo o coordenador de segurança, muitas vezes simples assalariado do dono
da obra, quando é aquele quem tem o poder económico e o poder de implementação e de conformação técnica e organizacional
das condições de SHST num estaleiro. Na prática, facilmente este juízo deixa de ter equivalência quando o coordenador de
segurança é prestador de serviços e portanto entidade externa ao dono da obra. No primeiro caso é raro ver o dono da obra a
reclamar para si alguma quota-parte de responsabilidade. No segundo caso é o primeiro a imputá-la ao prestador de serviços a
quem contratou a coordenação de segurança em obra.
110 Cf. Neste sentido José António Veloso, Apontamentos sobre Omissão, AAFDL, 1993, pp. 11.
42
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
Parece pois evidente que, no que respeita à definição dos critérios de autoria do crime em
questão, não basta a mera titularidade formal ou funcional do dever extra penal. Tem de existir,
relativamente a cada agente, o respectivo domínio do processo causal típico (para além de que têm os
mesmos de estar sujeitos ao dever omitido no âmbito da sua actividade profissional). Nesta sede, no
âmbito complexo da actual estruturação das empresas, não se afigura sequer possível o recurso à teoria
de domínio da vontade através de um aparelho de poder, da autoria de Roxin, para imputar a prática do
crime de infracção de regras de construção aos membros de um Conselho de Administração ou
gerência, para o caso de se ter efectivamente identificado um incumprimento do dever de vigiar os
seus subordinados, em quem foram delegados poderes para serem implementados os instrumentos ou
meios de SHST. São estreitíssimos os pressupostos a partir dos quais Roxin constrói e pensa a figura do domínio
da vontade através de um aparelho de poder organizado, a saber: a total fungibilidade do executor no seio da
organização; a existência de uma estrutura empresarial rigidamente organizada; e que tal organização se tenha
decididamente “autodeterminado” na senda do crime111. Embora se experimentem novas abordagens112,
parece desaconselhado, por abrir novo e sucessivo palco de controvérsia, defender, neste campo, a
teoria do domínio da vontade através de um aparelho organizado de poder, já que não é consensual, nem
maioritário que essa teoria possa ser transposta directamente para a actividade empresarial com o fim
de fundamentar a responsabilidade criminal dos dirigentes de uma empresa. Algumas fragilidades
seriam exploradas. Por exemplo, para aquela teoria é requerida a fungibilidade113 dos agentes
executores, só que dificilmente se poderiam considerar “fungíveis” as relações jurídicas que servem de
contexto ao crime que analisamos, pois que as relações laborais ou o contrato de trabalho à sombra
do qual se delegam poderes são, ao contrário, tidas como intuitu personae. Aqui não poderia pois
verificar-se a total fungibilidade do executor a que alude Roxin na sua tese114.
111 Pedro Soares de Albergaria, A Posição de Garante dos Dirigentes no Âmbito da Criminalidade de Empresa, in Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, 1999, p. 616.
112 Referimo-nos ao texto do Prof. Francisco Muñoz Conde, Domínio de la voluntad en virtude de aparatos de poder organizados en
organizationes “no desvinculadas del derecho”?, in Problemas Fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin,
(Colóquio), Coord. de Maria da Conceição Valdágua, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002, pp. 87 e ss. O autor não
abrange explicitamente na sua tese a forma omissiva e parece excluir dela os crimes específicos e de violação de dever. O autor
testa esta teoria para os aparelhos de poder que não se organizam à margem do direito, como sucede normalmente com as
empresas. Conclui que, no quadro de um aparelho de poder não estatal e não à margem do direito, como o são as empresas
(pessoas colectivas), não pode admitir-se um domínio da vontade por via desse aparelho de poder. Antes se tem que apelar às
figuras explicativas ou de (co)autoria mediata em contexto de erro, quando o executor não pode ser responsabilizado, ou de coautoria,
quando o executor/autor material pode ser responsabilizado.
113 Além da fungibilidade do agente executor, são ainda elementos da teoria do domínio da vontade através de um aparelho organizado
de poder (que fundamentam uma autoria mediata do «homem por detrás do executor ou do homem de cúpula» em primeiro lugar
o (1)domínio da organização, depois a referida (2)fungibilidade do executor e por fim a (3)limitação do domínio da actuação da
organização a estruturas à margem do direito [cf. F. Muñoz Conde (nota112)].
114 Numa apreciação mais geral, o espaço de incerteza que se abre aqui faz por vezes compensar situações de injustiça e de aparente
impunidade com um «entusiasmo» voluntarista na qualificação dos factos e na atribuição de responsabilidades. Não raras vezes,
nos casos levados a juízo, há a propensão para, perante as dificuldades em responsabilizar os dirigentes da empresa/pessoa
colectiva pelo crime do art. 277º, imputar-lhes outros crimes, como por exemplo o de homicídio por negligência, do art. 137º do
C.Penal. Parece-nos, no entanto, que a questão não pode ter esse tratamento disperso.
43
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
No aprofundamento da identificação do círculo de eventuais responsáveis penais deve
começar por se observar que, na legislação relativa à prevenção dos riscos laborais, o obrigado pelo
dever de protecção dos trabalhadores face aos riscos laborais é muito mais do que apenas o
empresário/empregador. Antes do mais, uma coisa é esse dever de protecção, outra o dever
decorrente do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal de instalar os meios ou instrumentos destinados
a prevenir acidentes. O dever típico pode pois não coincidir com o conjunto de deveres do
«empregador» que, como já se repetiu, pode bem ser, e na maior parte das vezes é, uma pessoa
colectiva que enquanto tal está organizada numa escala de hierarquias, bem como numa distribuição
de funções e responsabilidades. De facto, retomando a avaliação dos responsáveis por competências
delegadas, o dever de segurança não compete só ao empresário/empregador. A estrutura empresarial e
em particular as normas relevantes neste campo constituem um conjunto de regras e
responsabilidades pela segurança que, sem eximir de responsabilidade (não necessariamente de
responsabilidade penal) a cúpula empresarial, configura também como eventuais garantes os escalões
mais próximos à execução dos trabalhos propriamente ditos (compreendendo os que «de facto»
exercem posições de direcção ou comando ou ocupam posições funcionais de prevenção de riscos)115.
115 Acompanhamos aqui Juan Mª Terradillos Basoco na obra citada na nota 26, pp. 58 e 63 ss., cuja leitura permite retirar
algumas alusões a esta problemática da aproximação ao círculo de autoria, adaptáveis ao nosso quadro legal. Partindo de algumas
das suas reflexões, deve chamar-se à atenção que a estrutura empresarial se organiza em situações múltiplas, em que ao lado do seu titular
actuam sujeitos integrados nessa mesma estrutura empresarial com distintas quotas de autonomia. Por isso a descentralização das decisões,
característica das empresas, pode ironicamente transformar a organização da responsabilidade na irresponsabilidade organizada, ironia que
também é partilhada por Bernd Schünemann no artigo “Responsabilidad penal en el marco de la empresa. Dificultades relativas a
la individualización de la imputación”Anuário de derecho penal e ciências penales, tomo LV, MMII, 2004, pp. 16, autor que
justifica que a divisão do trabalho conduz a diferenciações funcionais e à descentralização dos processos de acção e decisão, de
modo tal que o poder de domínio da acção e decisão da cúpula empresarial não é mais do que um poder de intermediação ou um
poder de coordenação. Em todo o caso, por via dessa organização, desloca-se tendencialmente a responsabilidade para os sectores inferiores da
organização empresarial, até ao ponto de se ter que considerar que só esses executam por si mesmos a conduta típica. Isso pode conduzir a uma
fraca eficácia preventiva em dois sentidos: para cima – porque os directores não executaram o facto típico; e para baixo – porque os executores
materiais dificilmente ficam à mercê de uma condenação, pois é convocada a confluência difusa de diversos factores para se desculparem dos
acidentes, como a alegação do desconhecimento das consequências do seu próprio modo de actuação – fruto da divisão do trabalho e da
parcelarização da informação na empresa – como a escassa capacidade de resistência inerente a quem está obrigado a obedecer dentro de uma
escala hierárquica, como a invocação altruísta de que se actua no interesse da «casa», como a natural e alta fungibilidade dos elementos que
ocupam a escala inferior da organização, etc; questões que se complicam nos grupos de empresas, em que o centro decisor está tão afastado dos
instrumentos executivos que torna difícil encontrar um centro de imputação objectiva e subjectiva. Isto leva à necessidade de diferenciar dois tipos
de pressupostos: o da intervenção directa do empresário na execução dos factos (omissão de instalação dos meios) e o da execução pelos seus
representantes, delegados e contratados, sem intervenção directa daquele. No primeiro caso não há problemas de maior quanto a saber
quem é o obrigado e fazer corresponder-lhe a instigação, a autoria imediata ou a cumplicidade. Quanto à responsabilização por autoria mediata,
isso é o que defende Roxin segundo a teoria do «autor por detrás do autor», nas organizações ferreamente hierarquizadas/organizações criminais,
sem prejuízo da responsabilidade do sujeito instrumento, já que o autor mediato controla o aparelho de poder, no qual se incluem os executores,
sendo estes meros instrumentos fungíveis, sem autonomia. Mas esta teoria, como já se viu, só se aplica nas organizações de poder com fins
criminais ou associações criminosas. Ora, na criminalidade da empresa a dependência e fungibilidade não são tão óbvias e o fim criminoso não
se identifica normalmente. Há no entanto quem entenda, como Muñoz Conde e também Schünemann poderem considerar-se os directores como
co-autores, desde que concorram na execução do facto com os subordinados mediante prévio acordo de vontades e mediante controlo e domínio do
facto, embora sem estarem presentes. Mas no que ao nosso direito respeita há aqui o obstáculo do artº 26º do C.Penal, que exige
execução conjunta. Quanto à actuação dos representantes, delegados e contratados, no segundo caso em que não tem intervenção
directa o director, que delega as suas competências em matéria de segurança, a responsabilidade dos subordinados está condicionada ao facto de
estes terem um domínio suficiente do facto. Também importa chamar à colação o disposto no artº 12º do nosso C.Penal, nos casos em
que o subordinado não está a violar obrigações que lhe são directamente impostas pela legislação de SHST. Aqui, o representante ou subordinado
também tem que ter os elementos especiais da autoria que representam um domínio sobre o resultado produzido, equivalente ao domínio que tem
o garante na omissão imprópria. Mas em muitos casos, aquilo que pode parecer uma responsabilidade delegada concorre com o que
verdadeiramente é uma responsabilidade originária ou assumida de facto pelo delegado ou subordinado, se este não for um
44
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
É portanto sujeito activo do crime quem, em escalões subalternizados de direcção dos
trabalhos, tem a possibilidade prática de evitar a situação de perigo e estando juridico-laboralmente
obrigado a fazê-lo, omite o cumprimento desse dever. O tipo do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte nem
sequer refere expressamente a figura do empregador. Outros agentes têm incumbências ou obrigações
concretas e específicas em matéria de SHST116. Identifica-se assim um campo de obrigações que tem
por centro de imputação o profissional de uma empresa envolvido(a) no estaleiro com competência
em matéria de SHST (pode afinal ser o fiscal da obra, por parte do dono da obra, ou o coordenador
de segurança em projecto ou em obra ou o director da obra ou o encarregado desta). As obrigações
em matéria de segurança no local de trabalho recaem assim sobre «um heterogéneo conjunto de sujeitos
que vão desde o empresário aos seus representantes, passando pelas autoridades públicas ou pelos próprios
trabalhadores.» E são essas obrigações, de conteúdo e modalidades variadas, que delimitam, embora e
ainda muito genericamente, o âmbito subjectivo da tipicidade117.
Neste campo devemos ter ainda em consideração que no ordenamento jurídico português não
existe uma norma específica que consagre um dever jurídico geral de garante do
empresário/empregador. Quanto a isso, p. ex. Schünemann118 parte da premissa consensual de que o
fundamento da equiparação da omissão à acção assenta no domínio do garante sobre a causa do resultado, e
que, portanto, o domínio do dirigente da empresa tanto poderá resultar (1) do seu domínio fáctico sobre os
serviço externo de SHST que tenha entre as suas incumbências a de implementar meios e aparelhagens destinadas a prevenir
acidentes. Assim, deve considerar-se autor de um delito especial quem, actuando em lugar do sujeito descrito na lei, tenha assumido
facticamente, em resultado de uma relação de domínio, as suas actividades e tenha executado a acção típica. O poder evitar o resultado de perigo
deve entender-se como sendo obrigação que recai sobre quem, devido à sua situação na empresa, goza da capacidade – de facto e de direito – de
actuar e não também de quem meramente conhece a situação de perigo, como sucede com um qualquer estranho. Por isso, devem ser penalmente
responsáveis os sujeitos que pertencem a uma organização empresarial e embora careçam de poder de decisão se colocam em situação idónea,
devido ao seu perfil e posicionamento funcional, para evitar o perigo, como seja o trabalhador com especiais responsabilidades funcionais em
matéria de prevenção de riscos, e que não cumpre as suas funções preventivas quando é necessário. Deste modo, no campo laboral, todos os que
mandam ou têm direcção técnica ou de execução, superiores ou subalternos, estão obrigados a cumprir todas as acções de prevenção impostas pela
legislação de trabalho para evitar acidentes laborais, para preservar e tutelar a vida, a segurança e a integridade dos trabalhadores, quer exerçam
estas funções regulamentarmente, quer de facto, incorrendo em responsabilidade criminal se incumprem esses deveres ou em cumprimento de tais
deveres se vêm a revelar negligentes e com essa conduta causam ou contribuem para causar um resultado danoso ou situação de perigo grave.
Quanto à responsabilidade do delegante: não fica eximido por via da delegação, quer parcial, quer total, por continuar a ter obrigações de vigiar
quem elegeu no cumprimento das instruções dadas. Mas até onde chega a posição de garante do director? Basear a sua responsabilidade num
cumprimento deficiente dos deveres de vigilância chega a ser valorativamente contraditório quanto estão em causa crimes que só dolosamente
estão tipificados, como alertou Schünemann no artigo citado. Pode sustentar-se que aquela posição de garante seja tanto do controlo fáctico sobre
as fontes materiais de perigo como do poder de comando, legalmente fundamentado sobre os trabalhadores – domínio material e pessoal. A
posição de garante deve resultar sobretudo de uma relação objectiva com os factos: quem tem responsabilidade prática ou de facto de evitar a
situação de perigo e estando obrigado a fazê-lo não o faz, incorre em responsabilidade penal.
116 É assim que, de acordo com a legislação pertinente em matéria de SHST, em particular o Código e Regulamento do Trabalho
(art. 276º a 279º do C.Trabalho e art. 218º e ss. do Regulamento), os órgãos ou agentes internos de uma empresa, com
responsabilidades técnicas na área da SHST (serviços de segurança ou técnicos de segurança), têm funções que vão desde o auxílio
ao empresário ou à administração a tomar decisões nesse campo, também facultam informação necessária às decisões, além de
poderem dar formação bem como podem formar os trabalhadores nessa área ou garantir que cumpram as regras em matéria de
SHST. Quando detectam a probabilidade séria e grave de acidente por inobservância da legislação aplicável na matéria, além do
dever de neutralizarem a situação de perigo, se disso tiverem a possibilidade prática, devem exigir ou requerer ao empresário que
adopte as medidas oportunas para sanar a situação de risco. E no caso de a exposição não ser atendida, devem expô-la à
autoridade pública competente (a IGT) ou inclusivamente promover a paralisação da actividade laboral.
117 Cf. Juan Mª Terradillos Basoco, op. cit., pp. 62.
118 Referido por Pedro Soares de Albergaria, ibidem.
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
elementos (coisas e procedimentos) perigosos do estabelecimento, como (2) do poder de mando, legalmente
fundado, que detém sobre os trabalhadores, estando dependente a existência e a extinção do referido domínio da
forma como, “in casu”, se apresentarem a estrutura material de uma ou outra daquelas distintas situações de
garante. Porém, se quanto ao poder de mando a dificuldade de enquadramento típico está vista, também
no que ao domínio fáctico respeita, nos casos mais correntes submetidos à apreciação judiciária, no
particular aspecto da organização empresarial, são os delegados ou os que dentro da repartição de
tarefas e na escala hierárquica inferior – se bem que ainda subordinados aos dirigentes delegantes –
quem, por via da delegação de poderes, tem o dever e a capacidade, de facto e de direito, para actuar e
que, por conseguinte, tem o domínio do processo causal e está investido do dever primário de
garante.
Atendendo a que a estrutura empresarial se organiza em múltiplas situações de
descentralização de decisões e de quotas de autonomia decisória, traduzida em responsabilidades e
execuções por representantes, delegados e contratados, a responsabilidade desloca-se tendencialmente
para sectores inferiores da estrutura da empresa, e basta que os subordinados tenham domínio
suficiente do facto e do processo causal para serem responsabilizados. Assim, o poder e o dever de
evitar o resultado de perigo recai sobre aquele que segundo as funções que desempenha na empresa,
tem a capacidade – de facto e de direito – de actuar. Essa capacidade de actuar é qualificada, não só
em resultado duma qualquer função no campo da SHST, mas sobretudo em resultado da obrigação
tipificada de «instalar os meios ou aparelhagens destinados a prevenir acidentes em local de trabalho» no
âmbito de um específico conteúdo funcional ou profissional e para cuja densificação contribui
decisivamente a definição e preenchimento do conceito aberto de «meios».
Por fim, o controlo da decisão de imputação formal e investigatória de responsabilidades
penais deve fazer-se em critérios objectivos e funcionais ou do «domínio do facto», subjacentes ao art.
26º do C.Penal. Divergindo de Roxin119 e analisando o tipo tal como ficou consagrado na lei
119 Que defendeu a tese de que o critério delimitador da autoria, nesta categoria de crimes de violação de dever, consistiria não na
detenção do domínio do facto, mas na titularidade do dever extra penal abrangido como elemento do tipo. À autoria, quanto ao
crime em apreço (277º nº 1 al. b)2ª parte do C.Penal), deveria bastar a relação funcional com o dever de assegurar a observância de
regras legais sobre segurança a que acresce a prática ou omissão das actividades tipicamente descritas. É pelo menos essa a
decorrência da tese de Roxin, que faz residir na titularidade do dever extra penal violado o fundamento da autoria. Tal tese é
criticada pela Prof. Teresa Pizarro Beleza, A Estrutura da Autoria nos Crimes de Violação de Dever – Titularidade versus Domínio do
Facto, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1992, ano 2, 3º vol., Julho-Setembro de 1992, pp. 337 e ss.), que considera não
dispensável, nos chamados crimes de violação de dever e para determinação da autoria nos crimes específicos próprios (artº 28º
CP), o recurso operativo ao critério do domínio do facto (domínio positivo ou negativo do processo causal, respectivamente para a
acção e para a omissão, ou domínio da vontade, na autoria mediata), que deve coexistir com o critério da dita titularidade do
dever, pois é sempre possível descortinar um comportamento concreto em que se traduziu a violação do dever, ou seja, um
domínio do facto. A autora, porém, não desenvolve as suas observações a propósito da autoria e participação nos crimes
omissivos.
46
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
portuguesa, Rui Patrício120 tece as seguintes considerações121: «Para o nosso caso, diremos apenas que o
desenho legal do tipo em causa, por um lado, permite aproximá-lo da definição roxiniana de crime de violação de
dever (...), porém, cremos que por outro lado, (...) o tipo em causa não autoriza o afastamento como critério de
autoria do domínio do facto, por estarmos na presença de um tipo que, para além da violação das aludidas regras
legais, regulamentares ou técnicas extra penais, que convoca, exige a verificação e, antes disso, a criação, com
aquela violação, de uma situação de perigo para os bens ali nomeados (...). Torna-se, pois, no caso que aqui
tratamos, necessário averiguar, não só a titularidade e a violação do dever extra penal, mas também quem
desenvolveu ou não uma certa actividade e causou um certo resultado, ou seja, “lato sensu”, saber quem
determinou os acontecimentos. Isto é, não deixamos de ter necessidade de buscar os momentos normativos de
domínio, ao que se juntará uma especial vinculação dos seus autores». Em resultado dessas considerações,
que acompanhamos, muito do trabalho de identificação dos eventuais imputados penais há-de
resultar necessariamente, como já repetimos, da valoração dos dados concretos do caso.
E na valoração dos dados do caso concreto ou, se quisermos, no preenchimento empírico do
tipo, encontramos situações (comuns) em que é possível identificar uma pluralidade de possíveis
responsáveis na omissão de instalar os meios necessários e destinados à segurança dos trabalhos, o que nos
transporta para a responsabilização de mais do que um agente. De que modo se equacionará aqui a
co-autoria, por exemplo? No que à natureza omissiva respeita, há entendimento doutrinal de que na
omissão não é possível verificar-se a co-autoria, nem mesmo no plano meramente teórico. Em todo o
caso, não são de descartar situações em que vários agentes decidam prévia e concertadamente não
cumprir o dever de actuar, apesar da dificuldade em conceber normativamente a existência de uma
resolução subjacente a «uma inactividade»122 Enumeram-se como razões para tal asserção a
consideração de que só é autor de crime omissivo aquele sobre quem recai o dever individual de
actuar, não sendo concebível a possibilidade de uma divisão de tarefas, pressuposta na co-autoria (art.
26º do C.Penal - de acordo com o qual a autoria é deferida a: 1 - «Quem executa o facto por si mesmo»; 2 -
«Quem executa o facto por intermédio de outrem»; 3 - «Quem toma parte directa na sua execução, por acordo ou
juntamente com outro ou outros» e 4 - «Quem, dolosamente, determina outra pessoa à prática do facto, desde que
haja execução ou começo de execução»).
Independentemente das dificuldades teóricas que se apresentam, sempre haverá que ponderar
a resolução dessas questões no âmbito do caso de vida ou caso concreto, averiguando se ocorreu ou
120 Apontamentos sobre um Crime de Perigo Comum e Concreto Complexo – art. 277º, nº 1, alínea a) do C.Penal – Infracção de Regras de
Construção –, in Revista do Ministério Público nº 81, Ano 21 Janeiro/Março 2000, pp. 106 ss.
121 No mesmo sentido, embora em sede um pouco diversa, vide, Teresa Pizarro Beleza, op. cit., pp. 337 e ss. Sustentando também
a conjugação dos dois critérios no âmbito geral do art. 28º do C.Penal se pronuncia Susana Aires de Sousa, A autoria nos crimes
específicos: Algumas considerações sobre o artigo 28º do Código Penal, RPCC, ano 15, nº 3, Julho-Setembro 2005, pp. 32 ss.
122 Sobre o estado da questão na doutrina, que aqui não nos interessa desenvolver, vd. Maria Leonor Assunção, Contributo para a
interpretação do artº 219º do C.Penal, Coimbra Editora, 1994, pp. 111 e ss.
47
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
não resolução conjunta na omissão do dever imposto, mesmo se naturalisticamente não for possível
admitir a execução conjunta de uma omissão. Portanto, a linha de separação entre autoria e
participação tem que passar pela análise concreta, não abstracta e teórica, das actividades
desenvolvidas. Mais uma vez é a linha de pesquisa empírica que aqui traça os limites da
responsabilidade penal, dada a complexidade do enunciado típico. Ora, se se concluir, pela análise de
cada caso concreto, que não houve consciência da intervenção (omissão) alheia – casualidade –, e que
não houve intenção de prosseguir um objectivo comum (naturalmente e apenas nos crimes dolosos
por só nesses ser possível a co-autoria/comparticipação), então não existe co-autoria/comparticipação,
mas apenas autorias paralelas, no caso de termos mais do que um responsável identificado, o que é a
hipótese mais corrente ou normal. Em coincidência com as dificuldades teóricas, é remota a
possibilidade, aferida nos concretos processos em que a questão se debateu, de identificar a existência
de resolução conjunta ou execução conjunta (se concebível) na conduta omissiva verificada123. Os
agentes, embora com o domínio negativo do processo causal, com o domínio da vontade e com o
domínio funcional124 contribuem normalmente de forma paralela, não conjunta e concertada, para o
resultado de perigo125.
Enunciando de forma genérica e resumida as considerações heurísticas sobre a autoria e
imputação objectiva, cada agente responsabilizável formalmente pela omissão típica tem,
normalmente, a competência individual e paralela para actuar, anulando as condições de insegurança
verificáveis no estaleiro ou obra, instalando ou mandando instalar os mecanismos ou meios que
evitam o risco de acidentes ou determinando a suspensão dos trabalhos até que tais meios ou
mecanismos sejam instalados. Os agentes têm, paralelamente, o domínio material de garante e podem
agir, cumprindo os deveres legais, regulamentares ou técnicos, na medida em que tenham a
possibilidade e o dever de agir num âmbito espacial e funcional de influência do facto, incluindo as
respectivas competências funcionais, por estarem ou deverem estar próximos da fonte de perigo,
sendo eles em primeira linha quem, cada um por si, pode desenvolver a actividade material de
anulação do perigo, segundo a responsabilidade e domínio que cada um tem no processo causal. E
esse processo causal deve estar normalmente contido no espaço de influência e controlo dos agentes
123 Embora, em tese, nada obste a situações de comparticipação, possível nos crimes de perigo, mesmo que de perigo abstracto.
124 Outros lhe chamam, desenvolvendo o conceito de autoria nos crimes específicos, domínio social do bem jurídico (vide Paulo
Saragoça da Motta, op. cit., pp. 91 e passim), sendo que o domínio social é fonte da posição de garante. Citando G. Martín
“Nalguns crimes o autor é sujeito caracterizado por uma qualidade pessoal que descreve o âmbito social em que existe o bem jurídico e em que
aquele exerce a sua função social”, “O domínio social é a acessibilidade ao bem jurídico protegido, limitada pela valoração jurídico-penal a
algumas classes de sujeitos... significando a situação de dependência de um bem jurídico encastrado essencial ou ocasionalmente numa função
cujo exercício é monopólio de uma classe de sujeitos”, “Nos crimes de domínio social a prática do domínio da realização do tipo só é possível se o
agente exercita o domínio social, ou seja, a função que lhe compete no regime de monopólio e que supõe o domínio da estrutura social na qual se
encontra o bem jurídico ou, dizendo-o de outro modo, domínio do âmbito de protecção da norma”, pp. 93, 94, 95.
125 Acresce que a comparticipação, exigindo a execução de facto doloso, só permite considerar possível a co-autoria, a instigação, a
autoria mediata e a cumplicidade quando os agentes que actuam, actuam com dolo de acção perigosa e dolo de resultado de
perigo (portanto, “só” todo o nº 1 do artº 277º C.Penal)
48
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
(proximidade com os perigos e posição de garante legal e/ou contratual - em suma, domínio social do
bem jurídico ou ainda dever ou obrigação especial em relação aos riscos que tipicamente ocorrem na
sua esfera de acção). Há aqui, na determinação do circulo de autoria, completa congruência com a
possibilidade de agir na omissão, que constitui pressuposto e limite do dever de agir contra-causal e que
se traduz, entre outros, no conhecimento pelo agente da situação típica, na sua proximidade espacial,
no domínio dos necessários conhecimentos técnicos, na disponibilidade dos meios e instrumentos
necessários a impedir a produção do resultado danoso, etc.126. Por fim, a determinação dos eventuais
autores terá de obedecer, paralelamente, a ambos os critérios enunciados: o da titularidade dos
deveres extra penais violados com a omissão e o do domínio do facto. E esses critérios terão que ser
aplicados aos dados de cada caso concreto, procurando-se identificar o círculo de responsáveis
naqueles que, “cada um por si”, em termos espaciais e funcionais, tinham influência no domínio do
processo causal, quer numa base legal, quer meramente de facto.
5.1.Responsabilidade das pessoas colectivas. Remissão127:
Estão mais ou menos superadas as dificuldades em equiparar o substrato jurídico da pessoa
colectiva às pessoas físicas enquanto sujeitos activos de crimes. A questão é hoje essencialmente de
natureza político-criminal e não são os ataques à incapacidade de acção ou à incapacidade de
suportarem um juízo de culpa que vai suster o alargamento da responsabilidade penal da pessoa
colectiva a mais tipos de crimes. Manter a irresponsabilidade das pessoas colectivas teria certamente
mais custos sociais. Mas são até as pessoas colectivas quem mais tem contribuído para a
inevitabilidade desse alargamento, ao reivindicarem as mesmas prerrogativas processuais e sobretudo
garantísticas das pessoas físicas, como se tem visto nalguns sectores do ilícito contra-ordenacional128.
126 Cf. Marta Felino Rodrigues, Teoria penal da omissão e revisão crítica de Jakobs, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 39-40.
127 Neste segmento do estudo vamos manter apenas algumas das reflexões que noutro local desenvolvemos, mas num contexto
legislativo que não é o que agora se antevê vir a ser o da consagração, em regra, da responsabilidade penal das pessoas colectivas
quanto a muitos dos crimes previstos no C.Penal, incluindo o que é aqui tratado. Tal mudança está corporizada na proposta de lei
do Governo nº 130/2006 de 27-3-2006 apresentada à Assembleia da República. Por via disso, algumas das questões perderão
actualidade ou interesse prático. Embora se desconheçam as vicissitudes por que vai passar essa proposta, entendemos levá-la aqui
em consideração, antecipando alguns problemas que dela resultam.
128 Rebuscando noutros planos caminhos novos na substanciação da punição penal das pessoas colectivas, há desenvolvimentos
doutrinários noutras áreas que bem podem ser aproveitados para este específico campo de uma nova política criminal que olhe
para a pessoa colectiva como sujeito de deveres não só extra penais, como também penais, especialmente em matéria como a da
defesa dos direitos dos trabalhadores, um campo em que se podem intersectar essas duas responsabilidades e onde é necessário
evitar incongruências na determinação dos responsáveis. A exemplo disso e da paridade de exigências podemos convocar lugares
paralelos, p.ex. no âmbito do direito europeu da concorrência e de sancionamento das práticas anti-concorrênciais (isto a
propósito dos artigos 17º a 21º do Regulamento (CE) nº 1/2003 do Conselho de 16-12-2002 relativo à execução das regras e
concorrência estabelecidas nos artº 81º e 82 do Tratado), onde se tem considerado ampla a possibilidade, quer das autoridades
nacionais da concorrência, quer da Comissão Europeia, de ordenar e proceder a diligências de recolha de prova no espaço físico
da empresa, em particular nas instalações onde funciona o núcleo decisório principal, bem como à solicitação de informações que
se entenderem relevantes, sem possibilidade de recusa. Sobre a ilegalidade dessas buscas ou inspecções («down raids») sem mandato
judicial/judiciário que as autorize têm-se manifestado cada vez mais vozes (defendem a extensão do conceito de domicílio à sede
49
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
No entanto, se alguns dos problemas se resolvem outros podem nascer. A consagração da
responsabilidade da pessoa colectiva neste campo pode vir a encontrar um óbice prático: ser a mesma,
paralelamente, arguida e eventualmente condenada em processo de contra-ordenação e subsequentes
recursos. É corrente que nos casos em que se identifica a violação de legislação em matéria de SHST a
IGT instaura processo de contra-ordenação às empresas que considera responsáveis, já que estas
podem ser sujeitos activos do ilícito de mera ordenação social (cf. art. 617º do Código do Trabalho).
O sancionamento da pessoa colectiva em sede de processo criminal, pelos mesmos factos, (uma vez
consagrada a responsabilidade penal da pessoa colectiva no âmbito do crime p.p. pelo art. 277º do
C.Penal) constituiria uma violação do princípio do non bis in idem, ou seja, em caso de duplo
sancionamento (penal e contra-ordenacional) o princípio non bis in idem sairia afectado e por via disso
afectado o princípio da legalidade penal de que ele é parte integrante e além de tudo uma contradição
com a presunção de inocência, todos com valor constitucional, pressupondo, claro está, que exista
identidade de sujeitos, de factos e de fundamentos de responsabilidade. Este problema pode vir a
resultar do desrespeito da regra geral de que havendo no caso a interposição de eventual
responsabilidade penal, a actividade sancionadora da administração no âmbito do ilícito de mera
ordenação social deve ceder lugar à intervenção judiciária. As dificuldades de comunicação entre
entidades administrativas e o MºPº é que podem muitas vezes gerar esses desencontros. E esses
desencontros podem certamente comprometer a preferência e precedência da jurisdição penal,
embora não seja imediatamente a precedência de intervenções que é condicionada pelo princípio non
bis in idem, mas sim o momento em que o mesmo facto, sujeitos e fundamentos são apreciados129.
das pessoas colectivas J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, bem como M. Costa Andrade e Paulo Mota Pinto, apud. Ana Luísa
Pinto, Aspectos problemáticos do regime das buscas domiciliárias, RPCC, ano 15, Julho-Setembro 2005, pp. 428 ss.). Por exemplo,
quanto à possibilidade de recusa em fornecer informações relevantes, é argumento principal que por um lado as pessoas
colectivas, tal como as singulares, têm o direito à “não incriminação” e portanto a não responder quando da resposta resulte
incriminação. No que respeita às buscas e à exigência de mandato judicial/judiciário de autorização da busca não domiciliária, a
noção de domicílio pessoal é estendido às pessoas colectivas, quanto se trata de invadir o espaço onde os respectivos órgãos
funcionam ou onde são tomadas as decisões fundamentais da empresa, pois que os vários direitos nacionais, mesmo ao nível das
leis fundamentais (cf. artº 12º e 37º da CRP) e da CEDH, fazem expressa equiparação da posição jurídica da pessoa colectiva à
pessoa singular. Em suma, trata-se de reclamar e fazer aplicar a protecção que é conferida aos direitos fundamentais das pessoas
singulares também às pessoas colectivas. E essas tentativas já tiveram eco em alguns processos do TJCE, como no caso do Acórdão
Hoechst/Comissão, C-46/87, e no Acórdão Mannesmam/Comissão, T-11298, Col. 2001, p.II-729. O que se retira daqui é que a defesa
de uma equiparação dos direitos processuais-penais das pessoas colectivas e das pessoas singulares deve ter um desenvolvimento
teórico e prático nos dois sentidos: não só no da invocação dos mesmos direitos de não incriminação e dos benefícios das mesmas
garantias judiciárias, mas também o ónus de se ser sujeito efectivo de responsabilidade penal. Sobre isto a justificação colhe-se no
velho brocardo «ubi commoda, ibi incommoda».
129 O obstáculo aqui representado à responsabilidade penal pode ser debatido (o debate, embora inédito entre nós, não o é em
Espanha, onde foi objecto das Sentenças do Tribunal Constitucional STC 2/2003 e STC 152/2001) e superado, recusando ver-se
no concurso entre as duas formas de responsabilização (mesmo com coincidência de sujeitos, factos e fundamentos de
responsabilidade) uma ofensa ao princípio do non bis in idem. Ou seja, mesmo que tenha havido um primeiro procedimento
contra-ordenacional, em desrespeito da precedência da jurisdição penal, não fica inviabilizado um segundo procedimento
sancionador, desde que não haja duplicação material de sanções. A argumentação desenvolvida considera que, primeiro, o
princípio non bis in idem não impede que o mesmo facto tenha relevância em campos jurisdicionais diferentes, o que portanto
requer resolução por via da aceitação de uma certa ordem de precedência, que parece dever recair em favor da jurisdição penal,
pois se determinado facto é tipificado como crime, não pode por via de um erro de processamento beneficiar de uma
desvalorização ad hoc violadora do princípio da legalidade sancionadora e da competência exclusiva da jurisdição penal para
50
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
O contexto da evolução nesta matéria é pois favorável ao avanço legislativo, embora se deva
reconhecer que no específico campo do crime p.p. pelo artº 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal seja
politicamente problemática a consagração da responsabilidade das pessoas colectivas130.
De facto, intersecta-se, neste campo, a responsabilidade civil por acidente de trabalho, sendo,
normalmente, a seguradora quem assume o encargo da reparação, quando se está no campo da
responsabilidade objectiva pelo risco. Nos casos em que se constate a violação das regras de SHST é a
entidade empregadora que tem que assumir, em primeira linha, e de forma agravada, o encargo com
as reparações devidas e com as pensões devidas ao trabalhador sinistrado ou familiares131. Se a isso
vier acrescida a responsabilização penal (normalmente por via de pena pecuniária), a entidade
patronal (dependendo muito da dimensão da empresa) poderia ficar em situação de insolvabilidade,
com a consequente transferência dos encargos que àquela cabiam para a sociedade e para o Estado132.
Em todo o caso, persistir na não consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas neste
campo ou, preferencialmente, na não consagração da responsabilidade penal dos seus
administradores133 serve apenas preocupações económicas imediatas, com prejuízo para as finalidades
preventivas e dissuasoras de toda a panóplia de legislação sobre SHST que existe no nosso país.
exercer o poder punitivo; que, segundo, resulta da lei vigente (Regime jurídico geral das contra-ordenações e respectivo processo –
artº 38º do DL 433/82 de 27-10, alterado pelo DL 356/89 de 17-10 e DL 244/95 de14-9) que a pendência de processo penal
constitui obstáculo à simultânea tramitação do processo contra-ordenacional, pelo que, mesmo perante o desconhecimento
oficioso da dupla pendência, não deve permitir-se que o arguido possa alegar esse desconhecimento, pois assim se premiaria a máfé
de iludir tal facto a coberto de uma aparente atitude passiva, mas na verdade manipulada, calculada e táctica, aproveitando-se de
um erro por si conhecido mas que lhe vai servir de meio de defesa, ora invocando umas vezes ora tolerando outras a violação do
princípio non bis in idem e concedendo-se assim a faculdade de escolher a sanção que melhor serve os seus interesses; que, terceiro, é
sempre possível recorrer-se à solução de, na sanção penal, se descontar a sanção administrativa já aplicada (absorção da mais leve
pela mais grave), o que evita o bis in idem e a afronta constitucional ao respectivo fundamento material – proibição do excesso
punitivo e a garantia do cidadão na previsibilidade das sanções, i.e. de que não sofrerá sanções repetidas pelos mesmos factos; que,
quarto, em virtude da duplicação de procedimentos sancionadores, qualquer invocação de caso julgado entre a decisão
administrativa e a jurisdicional é ilegítima, pois que o caso julgado em procedimento administrativo sancionador nunca se pode
impor ao procedimento jurisdicional penal, pois este será sempre uma forma de controlar aquele, além de que entre os tipos de
procedimento em confronto não há paralelismo, quer quanto ao grau de complexidade processual, quer quanto à natureza e
gravosidade das sanções.
130 O quadro das dificuldades, em termos teóricos, é apresentado com grande desenvolvimento e actualidade por Bernd
Schünemann no artigo “Responsabilidad penal en el marco de la empresa. Dificultades relativas a la individualización de la imputación”,
Anuário de derecho penal e ciências penales, tomo LV, MMII, 2004, pp. 8 ss.
131 Devemos aqui separar os campos de responsabilidade que se entrecruzam. A par da responsabilidade objectiva pelo risco, pode
ocorrer responsabilidade subjectiva, ou pelo lado do trabalhador, ou pelo lado do empregador. Se o acidente é causado por acto
doloso, gravemente culposo ou por violação sem justificação das regras de SHST, o acidente é descaracterizado como acidente de
trabalho. Se o acidente ocorre por culpa efectiva do empregador, a ela se equiparando o incumprimento das regras de SHST (esta
independentemente de culpa, como vem sendo defendido pela jurisprudência), a responsabilidade do empregador tem alcance
diverso. Além de implicar agravamento no montante das prestações devidas ao sinistrado ou familiares beneficiários, admite-se
ressarcimento dos danos morais, cabendo à entidade empregadora responder em primeira linha pelo ressarcimento dos danos,
pois que a seguradora só responde subsidiariamente e por montantes não agravados. (cf. art. 7º, 10º, 17º, 18ºe 37º da Lei 100/97
de 13/9). Vide nota 64.
132 Conhecida que é a fragilidade e insipiência de grande parte do tecido empresarial português no sector da construção civil,
aliadas às vítimas de acidente poderíamos ter que acrescentar outras vítimas, agora do desemprego, entre os trabalhadores da firma
sancionada.
133 Ao contrário do que já sucede em Espanha, no artº 318º do Código Penal Espanhol (cf. nota 55)
51
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
6. A situação da jurisprudência. Questões processuais: Breve nota sobre o assistente.
O tratamento e interpretação deste tipo de crime, no especial segmento da infracção das
regras de segurança laborais introduzido pela reforma do Código Penal em 1995, tem colhido pouco
relevo na jurisprudência, onde são ainda pouco expressivas as decisões dos Tribunais superiores
acerca deste tipo de matérias, em contrário do que faria supor a elevada taxa de sinistralidade laboral
do país.134
Identificam-se porém alguns temas de debate, como a questão de saber, no âmbito dos
processos criminais em que se discute a responsabilidade pelo crime de infracção de regras de
segurança no trabalho, se pode haver constituição de assistente. Tratando-se, no caso, de um crime de
perigo comum, em princípio (embora com as reservas apontadas) a característica mais comum é a da
tendencial indeterminabilidade dos titulares dos bens jurídicos. A consequência desse entendimento
seria a de não se poder defender em grande parte dos casos a existência de concurso efectivo sempre
que houvesse pluralidade de efectivos lesados. No caso de morte ou lesão grave na integridade física, a
agravação resultante do art. 285º do C.Penal não modificaria quer a normal indeterminabilidade dos
titulares dos bens jurídicos, quer a normal inexistência de concurso efectivo de crimes, havendo um
ou mais ofendidos135. Tal concepção, para quem a defende neste crime, tem consequências. Desde
logo na admissibilidade da figura do assistente. Conforme recentemente foi decidido em Acórdão do
Tribunal da Relação de Évora (Recurso nº 766/04-1, dos autos de Instrução 1309/02.4PCSTB do Tribunal de
Setúbal), o crime do art. 277º nº 1 não admite a constituição como assistente, dado que se trata de um
crime de perigo comum, carecendo o aí ofendido de legitimidade para requerer a abertura de
instrução. Os argumentos foram, em suma, no sentido de que, como crime de perigo comum, o tipo
descreve comportamentos ou actividades que ameaçam um número indeterminado de pessoas ou
coisas em geral e ainda que haja lesados ou prejudicados indirectos, essa posição não lhes confere o
atributo de ofendido, podendo a situação ter tutela civil ou outra. De facto, continua o referido
aresto, vista a natureza de perigo comum do tipo de crime em questão, não há pessoas particular e
especialmente ofendidas com os crimes de perigo comum (a formulação da legitimidade do queixoso,
134 Salvo qualquer lapso, conhecem-se os Acórdãos publicados na CJ,V, 2001, decisões de 1ª instância, pp. 281; CJ, IV, 2002, pp.
197, bem como os acórdãos aí citados na nota 13. Há referência a duas outras decisões de 1ª instância em J. Soares Ribeiro, op.
cit., nota 54, a fls. 26. Existem vários acórdãos de tribunais superiores que embora tenham por contexto o crime p.p. pelo artº
277º nº 1, abordam outras questões que não o tipo de crime propriamente dito. Ainda ao nível da jurisprudência dos tribunais
superiores vários acórdãos proferidos na área social e em matéria de acidentes de trabalho abordam a temática da violação de
regras de SHST. A título de exemplo veja-se o Acórdão do STJ datado de 24-10-2002 proferido no processo nº 01S4201,
consultado no site www.dgsi.pt em 5-12-2005, o Ac. STJ datado de 20-11-2003, proferido no processo nº 03S2934, consultado no
site www.dgsi.pt em 5-12-2005; o Ac. do Trib. Rel. Porto, datado de 19-01-2005, proferido no processo nº 8248/2004-4,
consultado no site www.dgsi.pt em 5-12-2005; o Ac. Rel. Coimbra datado de 06-06-2005, proferido no processo nº 119/05,
consultado no site www.dgsi.pt em 5-12-2005. Referência também merece o Acórdão do Tribunal Colectivo de Coimbra, de 5-6-
97, publicado e comentado pelo Prof. Jorge Leite na Revista «Questões Laborais», ano V, 1998, nº 11, pp. 99 e ss.
135 Neste sentido vide Augusto Silva Dias, ob. cit. pp. 551.
52
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
nos termos do art. 113º do C.Penal, refere o ofendido como o titular dos interesses que a lei …
especialmente quis proteger..., sendo que a posição de assistente e a respectiva legitimidade se afere pela
qualidade de ofendido, conforme art. 68º nº 1 do CPP). Continua ainda o dito acórdão que, além da
ilegitimidade para se constituir assistente, os actos praticados, mormente o requerimento para a
abertura de instrução, ficaram feridos de nulidade insanável ou, como outros defendem, de
inexistência ou, na tese preferida pelo Acórdão, de anulabilidade dos actos praticados.
Tal orientação não é, porém, uniforme, nem corresponde à posição que acima se assumiu
sobre a potencial determinabilidade dos titulares dos bens jurídicos protegidos no tipo de crime p.p.
pelo art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal. Veja-se, no sentido que se preconiza, o Ac. Rel. Porto, de
11-2-2004, no processo 0344753, onde se decidiu que «Pode constituir-se assistente em relação ao crime de
infracção de regras de construção, sempre que em consequência da conduta violadora ocorre o resultado que se
pretendia evitar, a pessoa afectada em bens pessoais ou patrimoniais.»136. O sentido geral da evolução da
jurisprudência parece seguir por aí. O Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos no Acórdão de
fixação de jurisprudência nº 1/2003 de 16-1-2003, abriu a possibilidade de no crime de falsificação se
poder constituir assistente a pessoa cujo prejuízo foi visado137. O relator do Acórdão 1/2003
(Conselheiro Simas Santos) tem vindo a defender posições que abrem ao ofendido ou à vítima uma
maior participação no processo penal, mesmo em crimes em que era tradicional negar a constituição
como assistente. Assim sucedeu no recente acórdão de 12-7-2005, proferido no Processo 05P2535138,
em que foi admitida a constituição como assistente no crime de falsidade de depoimento.
Curiosamente, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. nº 579/2001 de 18-12 (DR Iª série, nº 39 de 15-2-
2002) considerou não inconstitucional a interpretação da alínea a) do nº 1 do art. 68º do CPP
conjuntamente com o art. 371º do C.Penal, segundo a qual o arguido num processo penal em que se
indicia ter sido violado o segredo de justiça não pode constituir-se assistente nos autos que têm por
objecto a apreciação da indiciada violação.
Apesar de, aparentemente, o contrário poder resultar dos critérios de aferição da legitimidade
para a constituição como assistente, a evolução da jurisprudência, embora muito recente, vem sendo
no sentido de admitir a constituição como assistente do ofendido ou de quem o represente, em caso
de crime de perigo comum e portanto também no crime de que aqui tratamos, pelo menos quando
ocorre morte ou ofensa grave à integridade física, i.e. nos casos de agravação pelo resultado (caso do
art. 285º C.Penal), em coerência afinal com a consideração de que mesmo nos crimes de perigo
comum, a vida e a integridade física têm sempre um substrato individual. Aliás, buscando-se
136 Disponível no site www.dgsi.pt consultado em 28-11-2005.
137 O mesmo sentido acompanhou a fundamentação do recente Acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2006 de 12-10-2006.
138 Disponível no site www.dgsi.pt consultado em 28-11-2005 e cuja leitura se recomenda.
53
Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
inspiração na discussão que deste assunto se faz em Espanha, deve até ponderar-se, em termos de lege
ferenda a possibilidade de – a par da legitimidade do trabalhador acidentado – alargar a legitimidade
para a constituição como assistente às organizações sindicais representativas do sector ou actividade a
que o acidente se reporte139. De facto, pelo menos nos casos de trabalhadores não acidentados mas
que foram colocados em perigo em consequência da violação de regras de segurança, as organizações
sindicais representativas deviam estar especialmente legitimadas a intervir na qualidade de assistente,
por, supostamente, representarem o interesse colectivo dos trabalhadores não concretamente
afectados pelo acidente, mas afectados pelo perigo, reconhecendo-lhes sobretudo a possibilidade de
auxiliarem o Ministério Público na recolha de prova e atribuindo-lhes o direito ao recurso.
7. Nota final.
Quase sempre para uma situação de desastre, calamidade ou infortúnio no trabalho é
reclamada uma reacção, por via de uma (qualquer) qualificação penal do caso.
Nem sempre pode ser assim.
Nas situações que cotejámos até há uma possível tutela penal. Porém, as dificuldades que
desde as meras condições de investigação e de recolha de prova se põem, até aos problemas que,
dogmaticamente, se levantam em matéria de autoria, delimitação típica e integração da ilicitude,
aproximam a tarefa do jurista de uma maldição de Sísifo.
O verdadeiro arsenal legislativo que se instalou no ordenamento jurídico em matéria de
SHST e, particularmente, na construção civil, tem uma correspondência absurda, não em baixas
(como seria de esperar), mas em altas percentagens de acidentes mortais e graves. Ainda parecem
novas as palavras de ordem de outrora: «perde-se a vida a ganhá-la»140.
Dir-se-á, por fim, que o tipo de crime previsto no art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do C.Penal é
paradigmático das dificuldades de adaptar instituições tradicionais a tempos de multiplicidade e
desordem. A complexidade ou indefinição dos mecanismos de tutela sugestionam a desistência da
reivindicação por condenações exemplares e preventivas. A consagração neste âmbito da
responsabilidade das pessoas colectivas poderá resolver grande parte das questões que se colocam na
autoria141, embora possa gerar outras não menos complexas que as acima citadas. Mas o legislador terá
que precaver os efeitos dessa opção, que significará onerar as empresas com mais uma
139 Talvez assim se dinamizasse a posição do assistente neste tipo de procedimentos, já que tem sido decepcionante, em termos
gerais, o funcionamento da figura do assistente. A originalidade desta figura no contexto do processo penal comparado parece terse
ficado apenas por isso. Não tem havido uma prática (e a doxa) que densifique uma real intervenção de coadjuvação ou de
colaboração do assistente para com o MºPº e que constitui(ria) afinal o objectivo legal da figura (art. 69º nº 1 do CPP).
140 O tema favorece a intensidade das observações sarcásticas a ponto de Edmond Maire ter exclamado «vivemos num país
(França) onde sai mais barato matar um operário do que matar um coelho no terreno do vizinho», apud Jorge Leite, Jurisprudência
– Direito penal do trabalho: uma sentença histórica, Revista «Questões Laborais», ano V, nº 11, 1998, pp.105.
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
responsabilidade, de consequências económicas ainda por prever e a acrescer àquelas que derivam já
das competentes leis de responsabilidade civil em matéria de acidentes de trabalho e em matéria
contra-ordenacional.
O caminho de obstáculos e, sobretudo, as impurezas probatórias que penalizam a tarefa do
operador judiciário na interpretação e aplicação do tipo-de-ilícito do artº 277º nº 1 al. b) 2ª parte do
C.Penal pode significar que, neste preciso local, se manifeste a tendência para que a criminalização
das actividades de risco, também sinal da complexidade, insegurança e incerteza dos tempos, mais não
seja que uma manifestação de puro simbolismo. Importará mesmo assim persistir na atribuição de
uma dimensão real e efectiva à norma penal de tutela? É possível resistir ao simbolismo da ameaça
penal e ao risco de que essa ameaça se reduza a isso mesmo – mero simbolismo –, cedendo a uma
visão conformista da sociedade real, em que as normas que deviam fazer sentido são afinal
instrumento de uma sociedade do espectáculo e da aparência142?
Mas a vertigem do «simbolismo» não detém a paradoxal estrutura do real: a par do arsenal
legislativo em matéria de SHST mantêm-se altas e desproporcionadas as percentagens de acidentes
laborais143. A prossecução de maiores lucros, seja a pretexto do desenvolvimento económico, seja
como conveniente imposição da enigmática «globalização» ou «mundialização do mercado» parece
justificar o silêncio face à inobservância das normas do mesmo «arsenal legislativo» poupando os
principais destinatários e obrigados (em última instância, os empregadores e as empresas). O mercado
e o lucro ignoram os níveis normativos do risco permitido, num tempo em que o nível de
desenvolvimento tecnológico e científico possibilitaria certamente melhores resultados na prevenção
de riscos laborais e sobretudo em menos mortes e mutilações144. O mesmo arsenal legislativo não tem
evitado impunidades onde devia haver responsabilização, nem tem evitado decisões que, onde deviam
sancionar, se escusam em questões formais ou princípios a despropósito145. O princípio da mínima
141 Essa consagração, talvez por tardia, já não encontrará nas questões dogmáticas as principais dificuldades. Elas estarão antes em
lutar contra a capacidade de adaptação dos entes colectivos e das estruturas jurídicas que lhe servem de apoio às tentativas de
sancionamento. É fácil transferir em pouco tempo o património das pessoas colectivas que antevejam problemas com a justiça,
assim como é fácil dar-lhes morte jurídico-civil ou ceder ficticiamente quotas no capital social e transferir posições de gerência e
representação para pessoas que depois se não localizam ou são estrangeiros, muitos em situação ilegal. Importante, mais do que
resolver as questões dogmáticas da «capacidade de agir ou da capacidade de culpa», é estabelecer medidas preventivas que
impeçam que a perseguição e sancionamento penal fiquem vazias de reais consequências.
142 Jorge Leite enuncia outras hipóteses explicativas para a complacência com que tem sido encarada a sinistralidade laboral, umas
a residir no carácter selectivo e elitista do sistema punitivo, outras num quadro estritamente económico e eticamente indiferente,
op. e loc. cit. (como na nota 39)
143 Cf. Jesús Martínez Ruiz, Sobre los delitos contra la seguridad en el trabajo, RECPC, 04-j09 (2002), a consultar em
http://criminet.ugr.es/recpc
144 Talvez aqui se possa acompanhar Anselmo Borges que a propósito da miragem do progresso ilimitado da técno-ciência e da
economia na modernidade, que em vez de libertar cria cada vez mais vítimas, fala do Homem «roubado», do Homem apropriado
como mercadoria, de um «roubo» presente tanto na vida quotidiana como das gerações futuras e sobretudo de um «roubo» da
dignidade da pessoa, O crime na perspectiva filosófico-teleológica, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 10, fascículo 1,
Coimbra, Janeiro-Março 2000, pp. 21 e ss.
145 Apontando razões que têm levado as instituições legislativa e judicial a claudicar na defesa do direito à vida, à saúde e
integridade física dos trabalhadores vide Jorge Leite, op. e loc. cit. (como nota 39)
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
intervenção penal e o princípio «in dúbio pro reo» não podem justificar sempre o esvaziamento dos
tipos de crime que tutelam esta matéria. É pois escassa a aplicação das normas penais – mesmo de
ilícito de mera ordenação social – o que bem pode significar uma desistência perante as dificuldades
em fazer operar essas normas. Mesmo quanto às consequências penais em matéria de crimes de perigo
– danosidade a bens jurídicos trans-individuais, sociais ou colectivos a que se aliam a indeterminação
dos factos geradores, dos seus autores e das suas vítimas actuais e potenciais, mas que constituem
condutas socialmente mais graves por porem em causa ora a vida no planeta, ora a dignidade da
pessoa ora a solidariedade entre vivos e vindouros146 – a interpretação delas é pelo mínimo. A título
de exemplo, as próprias regras de concurso aliadas à opção pelo entendimento de que se está perante
um bem jurídico colectivo têm contribuído para uma desvalorização do resultado lesivo, como acima
vimos. Acresce que, quando há condenações, elas quase nunca são pela conduta dolosa de perigo,
factor que determina também quase sempre a aplicação de penas suspensas e que se constitui por si
num resultado vantajoso, em termos exclusivamente económicos, em se preferir a sanção penal por
contraponto até com a sanção contra-ordenacional.
É nas áreas de neocriminalização que o direito penal revela traços de mero simbolismo, em
que a previsão de sanções pesadas não passa de simples ameaça, sem consistência ou prognose válida
de protecção do bem jurídico. Tal simbolismo de representação difusa pode, no que ao crime em
apreciação se refere, ter radicado numa opção discreta do legislador em definir os pressupostos
normativos de um crime que manifestamente se anteviam difíceis de preencher e que por isso, de
antemão, teria pouco êxito na perseguição e punição, o que, afinal, parece comprometer o juízo de
dignidade e de carência de tutela penal que está imanente à criminalização da conduta. O resultado
desse simbolismo é um direito penal de fraca intensidade, desagregador da própria noção de
prevenção geral positiva, antes alicerçada na função de restabelecimento do bem jurídico lesado
enquanto estrutura reguladora das relações sociais e agora funcionalizada ou reduzida à mera
representação do crime e da pena como um exercício retributivo de fidelidade ao direito e de
reafirmação contrafáctica da vigência das normas e da tutela da confiança comunitária, porém
simbólica, naquela vigência ou validade. Em todo o caso, a descobrir-se menos discreta e mais
deliberada a opção pelo mero simbolismo, trata-se de uma opção de política criminal que a seu tempo
se revelará perigosa e geradora de embotamento social por se basear numa ilusão. Um direito penal
simbólico revela-se um direito Penal incapaz, desacreditado, criador de bodes expiatórios147 e produto
146 Cf. F. Dias, Algumas reflexões sobre o direito penal e a sociedade de risco, conferência produzida no Seminário Internacional de
Direito Penal, Universidade Lusíada, in Problemas Fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, (Colóquio),
coordenação de Maria da Conceição Valdágua, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002, pp. 211 e ss.
147 A referência ao direito Penal simbólico, como natureza para que tende o direito penal na sociedade do risco, é feita por Paulo
Silva Fernandes, “Globalização, “sociedade de risco” e o futuro do Direito Penal. Panorâmica de alguns problemas comuns”, Almedina,
2001, pp.53 e ss. e 72, além da remissão que aí é feita para a obra de Claus Roxin. O mesmo autor dá, a fls. 73 e ss., conta da
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Omissão da instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil
de certas conjunturas políticas e ideológicas oportunistas, em que alguns programas eleitorais ou
políticos transformam o “trágico” o “imoral” ou o “horror” numa «simples» e milagrosa qualificação
penal. De caminho, vão-se atirando para os tribunais a prevenção e a resolução de todo o tipo de
conflitos. E espera-se que o tribunal, como instância de controlo social, através da “processualização”
do conflito, acabe por diluí-lo, diluindo por acréscimo a insatisfação ou os protestos, em suma
neutralizando politicamente o descontentamento.148
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Setúbal e Sesimbra, 2005-2006.
tensão – que aqui também nos interessa como contexto – na dogmática e na política criminal actuais entre a «fuga» para um
direito penal funcionalizado e desformalizado, com recurso à criminalização do perigo e à tutela de bens jurídicos vagos e a
posição critica dos cultores da vertente garantística do direito penal, avessos a leis penais em branco e a conceitos indeterminados
por apego conservador ao modelo clássico personalista e antropocêntrico, que não flexibiliza qualquer das figuras da dogmática do
denominado «direito penal nuclear ou básico».
148 V. Niklas Luhmann, “Legitimação pelo Procedimento” (trad.), Editora Universidade de Brasília, 1980, pp. 97 e ss.
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José P. Ribeiro de Albuquerque
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