Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Peças processuais - doc nº 687
Peça nº687 - Contestação   Acção Administrativa Especial. Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa      03-04-2008
Acção administrativa especial intentada contra a PGDL em que foi peticionada a anulação do acto de rejeição do recurso hierárquico interposto pela Autora no âmbito de um processo-crime, a condenação a Ré a conhecer o objecto do mencionado recurso hierárquico e, igualmente, a condenação da Ré a determinar o prosseguimento do inquérito e a realização das diligências ali requeridas pela Autora.
A PGDL contestou por excepção e por impugnação. No tocante às excepções foram invocadas:
- a excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, por considerar que a competência material para conhecer a acção não se encontra legalmente atribuída aos tribunais administrativos, e ainda porque decisão impugnada não era, naquele momento processual, sindicável contenciosamente por qualquer outro tribunal, designadamente pelos tribunais integrados na ordem dos tribunais jurisdicionais;
- a excepção dilatória da inimpugnabilidade do acto impugnado (prevista no artº 89º, nº1, al.c) do CPTA) alegando que o acto impugnado não só não provém de uma autoridade integrada na Administração Pública, não foi praticado ao abrigo de normas de direito administrativo e não consubstancia uma decisão materialmente administrativa.
Por decisão, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa foi julgada verificada a invocada excepção da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, tendo-se, consequentemente, absolvido a PGDL da instância.


Texto integral:

Proc. nº 3268/06.5BELSB 
4ª Unidade Orgânica Administrativa
                                                                       Exmº Senhor
                                                                       Juiz de Direito
            
                        A Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, vem, na acção administrativa especial, intentada por …, Ldª, oferecer o seu articulado de
                                                           CONTESTAÇÃO
I – POR EXCEPÇÃO

A) Excepção dilatória – incompetência absoluta, em razão da matéria

            A Autora intentou, em 12 de Dezembro de 2006, a presente acção administrativa especial, contra a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa pedindo que seja anulado o acto de rejeição do recurso hierárquico interposto pela Autora no âmbito do processo-crime de Inquérito nº …, que correu termos pela 6ª Secção do DIAP; seja a Ré condenada a conhecer o objecto do mesmo; seja a Ré condenada a determinar o prosseguimento do mencionado inquérito, bem como a realização das diligências ali requeridas pela Autora.

         Trata-se, pois, de uma acção em que é peticionada a anulação de um acto proferido em sede de inquérito, cumulada com o pedido de condenação à prática, segundo a Autora, do acto devido a praticar nesse mesmo processo-crime. Em proposição conclusiva: a acção tem por objecto a impugnação de um acto relativo a um inquérito e ao exercício da acção penal e a satisfação de interesse da Autora numa decisão favorável, negada pelo indeferimento.

        Acontece que, de acordo com o estabelecido no artº 4º, nº2, al.c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[1], encontra-se excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal, e à execução das respectivas decisões.

         Trata-se de um preceito subtractivo que retira à jurisdição administrativa a competência para conhecer de certas questões de direito administrativo, relativos ao inquérito, à instrução criminal e ao exercício da acção penal – subtracção que se justifica pela tradição, mas sobretudo pela força atractiva do processo penal, numa matéria cujo julgamento compete à jurisdição comum[2].

         Assim sendo, mais não resta do que concluir que a competência material para conhecer esta acção não se encontra legalmente atribuída aos tribunais administrativos.
 

         Acresce que, como melhor se desenvolverá infra, a decisão ora impugnada não é, neste momento processual, sindicável contenciosamente por qualquer outro tribunal, designadamente pelos tribunais integrados na ordem dos tribunais jurisdicionais.

          Assim, não tendo aplicação, ao caso concreto, o disposto no artº 14º, nº2 do CPTA e por efeito do disposto nos artºs 101º, 105º, nº1, 228º, nº1, al.a), 483º, nº1 e 494º, al.a) todos do CPC, aplicáveis por força do artº1º do CPTA, deverá ser julgada procedente a excepção dilatória da incompetência material e, em consequência, deverá a entidade Requerida ser absolvida da instância.
                        
B) – Excepção dilatória – inimpugnabilidade do acto impugnado 

         A actuação processual da Autora mostra-se inquinada por dois equívocos jurídicos. O primeiro diz respeito aos modos de impugnação dos despachos de arquivamento proferidos pelo Ministério Público no âmbito do inquérito; o segundo refere-se à natureza não administrativa dos actos decisórios do Ministério Público proferidos durante o inquérito. A primeira incompreensão mostra-se pelo modo seguinte:

         O Ministério Público exerce, no processo penal e através do processo penal, a competência do exercício da acção penal que a Constituição atribui a este órgão do Estado – artº 220º da Constituição.
          10º
         O Ministério Público detém, no processo penal, poderes-deveres de direito público autónomos e de conformação concreta do processo como um todo, em vista da decisão final. Caracteriza-se, pois, como sujeito do processo[3]
         Decisivos para esta caracterização como sujeito do processo são os princípios constitucionais da autonomia (perante os outros órgãos do Estado e perante a magistratura judicial) e da competência para o exercício da acção penal numa estrutura acusatória do processo constitucionalmente determinada[4].
          11º
         O exercício da acção penal numa estrutura acusatória do processo caracteriza-se essencialmente com a divisão de funções entre o juiz (julgamento) e o Ministério Público (conformação e direcção do processo pré-ordenada à decisão, a tomar segundo critérios estritamente objectivos e de legalidade, de acusar ou não acusar).
          12º
         Por essa razão, a fiscalização e controlo da actividade do Ministério Público no âmbito do exercício da acção penal encontra-se, em absoluto, densificado no CPP.
          13º
         Quer a decisão de acusação (artº 283º do CPP), quer a de arquivamento (artº 277º do CPP), são passíveis de controlo judicial. 
          14º
          Todavia, esse controle é efectuado unicamente nos termos e parâmetros expressamente definidos no Código de Processo Penal.
          15º
          É axiomático afirmar que o Código de Processo Penal assegura essa possibilidade de controlo das decisões do Ministério Público, quer ao arguido quer ao assistente, através do direito que lhes confere de requererem a abertura da instrução, a qual é da competência do juiz de instrução.
          16º
         Nos casos em que o Ministério Público decidiu deduzir acusação, o arguido pode suscitar esse controle judicial requerendo a abertura da instrução (artº 287º, nº1, al.a) do CPP.
          17º
         Nos casos em que a decisão do Ministério Público foi de abstenção de acusação, é, no tocante aos crimes públicos e semi-públicos, facultada ao assistente, essa mesma possibilidade de controlo judicial por via da abertura da instrução (artº 287º, nº1, al.b) do CPP.  
          18º
         Isto porque, nos exactos termos do artº 286º, nº1, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
          19º
         Na verdade, a instrução não é uma segunda fase investigatória, desta feita levada a cabo pelo juiz, e mais nada. Também não é uma fase pensada no interesse só duma das partes, mas de ambas: arguido e assistente. Trata-se de uma fase através da qual, se opera o controle judicial da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito. Além disso, a instrução surge como um controle que é solicitado ao juiz, e só por quem se sinta agastado pela decisão proferida uma vez encerrado o inquérito. A instrução não só não pode nunca ser requerida pelo Ministério Público, como representa a sindicância que sobre ele se exerce [5].
          20º
         Para além deste controlo judicial está ainda consagrada a possibilidade, no caso de arquivamento, de um controlo hierárquico – dispõe a este respeito o artº 278º do CPP.
          21º
         Se o Ministério Público, concluído o inquérito, não encontrar indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes, se tiver sido recolhida prova bastante da inexistência de crime, de o arguido o não ter praticado ou de ser legalmente inadmissível procedimento (casos de insuficiência de indícios, prova da inocência do arguido ou da não verificação de pressupostos processuais), profere despacho de arquivamento.
          22º
        Este despacho de arquivamento está sujeito a reapreciação hierárquica por parte do imediato superior hierárquico do magistrado que o tiver proferido.
          23º
        As condições processuais de reapreciação estão fixadas no artº 278º do CPP: prazo de 30 dias contados da data do despacho de arquivamento, e se não tiver sido requerida a abertura da instrução.
          24º
       O artº 278º do CPP permite, assim, desencadear o mecanismo de controlo interno hierárquico do MP, sobre a atitude do Agente subordinado.
          25º
       No prazo de 30 dias a partir do arquivamento, o Agente do Ministério Público de grau hierárquico imediatamente superior pode ser alertado para o teor dum despacho ou aperceber-se dele no âmbito dos seus poderes fiscalizadores. Fica-lhe então reservada a possibilidade de ordenar modo de proceder diverso daquele que foi assumido.
          26º
       Contudo, essa possibilidade de controlo hierárquico quer-se que funcione não como modo normal de controlo da legalidade da abstenção de acusação, mas o seu sentido é o de assegurar uma “válvula de segurança” no sistema, para a sindicância de casos escandalosos em que não haja partes interessadas e face à impossibilidade do exercício dos poderes gerais de avocação após o encerramento do inquérito[6].
          27º
         Por essa razão, a reapreciação é limitada, e razoavelmente, a um grau na estrutura hierárquica. A lei apenas refere o imediato superior hierárquico; a decisão deste não é susceptível de reapreciação por outro magistrado colocado em grau superior da hierarquia[7].
          28º
        Deste modo, da decisão proferida, ao abrigo do estatuído no artº 278º do CPP pelo “imediato superior hierárquico” não há lugar, ao recurso hierárquico a que se reporta o artº 166º do Código de Procedimento Administrativo.
          29º
        Contra este entendimento afirma a Autora que o Ministério Público encontra-se numa relação de dependência hierárquica “que se manifesta nas formas de reacção a decisões do Ministério Público, previstas no âmbito do processo penal”.
          30º
       Importa, pois, perspectivar a compreensão funcional da hierarquia do Ministério Público no processo penal.
          31º
        Com o Prof. Freitas do Amaral[8], poder-se-á afirmar que a “hierarquia” é o modelo de organização administrativa constituído por um conjunto de órgãos e agentes com atribuições comuns e competências diferenciadas, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direcção e ao subalterno o dever de obediência.
          32º
       Todavia, a relação hierárquica tem um conteúdo complexo, só podendo considerar-se verdadeiramente típica, perfeita, completa quando interligada pelos três poderes hierárquicos caracterizadores do conceito – poder de direcção (faculdade de dar ordens e instruções); poder de superintendência, ou porventura, numa outra arrumação conceitual, poder de supervisão (faculdade de revogar ou modificar actos do subordinado) e poder disciplinar (faculdade de desencadear o procedimento e aplicar sanções disciplinares).
          33º
       A hierarquia configurada no estatuto do Ministério Público não constitui, porém, uma hierarquia administrativa e não participa de todas as características definidoras desta relação[9].
          34º
       O artº 76º, nº3 do Estatuto do Ministério Público define e concretiza o significado da hierarquia estatutária na inter-relação entre os magistrados do Ministério Público: subordinação dos magistrados de grau inferior aos de grau superior nos termos do estatuto, e a consequente obrigação de acatamento das directivas, ordens e instruções, salvo ilegalidade ou grave violação da consciência jurídica do magistrado a quem a directiva, ordem ou instrução for transmitida.
          35º
       O conteúdo desta específica relação encontra-se definido no estatuto; a relação está estatutariamente conformada nos poderes e deveres recíprocos, nas competências e nos limites[10].
          36º
      Poder-se-á dizer que participa de alguns elementos do aspecto subjectivo e relacional do conceito de hierarquia; participa igualmente de elementos fundamentais do poder de direcção (estatutariamente com regras próprias). Mas já não tipicamente quanto ao poder disciplinar que tem um regime estatutário específico, e especialmente quanto ao poder de supervisão no sentido da faculdade de revogação ou modificação de actos praticados no processo, fora do espaço processual e do exercício de competências previstas na lei de processo[11].
          37º
      No entanto, também no domínio do exercício dos poderes directivos se encontram algumas particularidades da relação de hierarquia dos magistrados do Ministério Público. Enquanto na relação de hierarquia administrativa o exercício deste poder e o correlativo respeito do dever de obediência permanece válido mesmo se caracterizado de forma ilegal (com excepção do cumprimento de ordens ou instruções que impliquem a prática de qualquer crime), na relação hierárquica do Ministério Público impõe-se um dever de recusa do cumprimento de directivas, ordens e instruções ilegais – artº 79º, nº2 do EMP[12].
          38º
       A possibilidade de o magistrado colocado em grau inferior recusar o cumprimento de directivas, ordens e instruções com fundamento em grave violação da sua consciência jurídica, traduz uma relevante especialidade desta relação hierárquica[13].
          39º
       A relação hierárquica do Ministério Público consiste, como já se deixou dito, na subordinação, nos termos do estatuto, dos magistrados de grau inferior aos de grau superior e na consequente obrigação de acatamento das directrizes, ordens e instruções recebidas.
          40º
      Todavia, o Ministério Público não possui uma hierarquia administrativa típica em que seja conferida ao superior o poder de emanar comandos sobre qualquer área de competência do subordinado estando este vinculado a um dever geral de obediência, e em que seja conferida ao primeiro uma faculdade geral de intervenção sobre todas as matérias em que o subalterno detenha competências.
          41º
       Assim, dispondo o Ministério Público de competências próprias e autónomas no processo penal, o exercício dos poderes inerentes à relação de hierarquia terá de ser analisado não apenas numa referência instraestatuária, mas na coordenação da estrutura orgânica do Ministério Público com as normas do processo penal que a este respeito contenham algumas regras ou princípios[14].
          42º
 Deste modo, o poder de direcção do superior hierárquico que respeite ao processo penal há-se conter-se nos limites impostos pela conjugação dos princípios de intervenção do Ministério Público – objectividade e legalidade estrita – com o conteúdo estatutário da relação hierárquica e com as normas do processo penal sobre competências[15].
          43º
Na verdade, o Código de Processo Penal contém regras sobre a reapreciação ao nível hierárquico, das decisões tomadas pelo Ministério Público no inquérito, delimitando as decisões susceptíveis de reapreciação, a legitimidade para a impugnação e as consequências decisórias – regras essas que se encontram densificadas nos artºs 278º e 279º do CPP.
          44º
Por esta via a lei quis prevenir a possibilidade de intervenção hierárquica intra-processual indiscriminada no âmbito de processos onde, escusado será fazer notar, estão também em causa os direitos dos arguidos.
          45º
Assim, no âmbito do processo penal, o poder hierárquico de supervisão (faculdade de revogar ou modificar os actos do subordinado), encontra-se legalmente delimitado e, em caso de arquivamento do inquérito, a reapreciação hierárquica encontra-se expressis verbis confinada a um grau na estrutura hierárquica.
          46º
Ou seja, não é circunstância de o Ministério Público se organizar segundo um modelo de estruturação hierárquica, que permite a conclusão que a decisão de arquivamento de um inquérito pode ser reapreciada por toda a cadeia hierárquica.
          47º
O segundo grande equívoco jurídico da Autora radica na incompreensão da natureza dos actos praticados pelo Ministério Público no âmbito da actividade judiciária, maxime no âmbito do exercício da acção penal.
          48º
Considera a Autora que os actos do Ministério Público têm natureza administrativa. Por essa razão, entendeu que a decisão do imediato superior hierárquico, proferida ao abrigo do estatuído no artº 278º do CPP, que desatendeu a pretensão da Requerente no sentido que fosse ordenado o prosseguimento do inquérito e realizadas as determinadas diligências probatórias, era passível de Recurso Hierárquico, nos termos do artº 166º do CPA; e por essa mesma razão, face ao não conhecimento daquele recurso, intentou a presente acção administrativa especial.
          50º
Acontece, todavia, que é outra a realidade jurídica.
          51º
Com efeito, o recurso hierárquico tem por objecto actos administrativo (artº 166º do Código de Procedimento Administrativo) sendo o meio de impugnação administrativo de um acto praticado por um órgão subalterno perante o respectivo superior hierárquico, a fim de que este o revogue, modifique ou substitua, consoante o caso (artº 174º do CPA).
          52º
Sucede que os despachos proferidos pelo Ministério Público no âmbito do inquérito, não assumem nem revestem natureza de actos administrativos.
          53º
Vejamos porquê. Ensina o Prof. Freitas do Amaral[16] que o “acto administrativo” é o acto jurídico unilateral praticado por um órgão da Administração no exercício do poder administrativo e que visa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto.
          54º
Assim, aquele Autor[17] é terminante na afirmação que o acto administrativo é um acto praticado por um órgão da Administração é, pois, um acto organicamente administrativo, um acto que provém da Administração Pública em sentido orgânico ou subjectivo.
          55º
Isto significa que só os órgãos da Administração Pública praticam actos administrativos: não há actos administrativos que não sejam provenientes da Administração Pública.
          56º
Por esta razão não são actos administrativos, por não provirem de órgãos da Administração Pública, os actos jurídicos praticados por órgãos do Estado integrados no poder moderador, no poder legislativo ou no poder judicial[18].
          57º
Elaborada numa época em que já se estava longe de uma concepção rígida da organização do Estado, a Constituição da República estabelece um princípio de separação e interdependência de poderes e consagra o Ministério Público como órgão integrado nos tribunais, dotado de autonomia e estatuto próprio (artºs 219º e 220º).
          58º
Concretizando o princípio constitucional, o Estatuto do Ministério Público[19] determina (artº2º) que este goza de autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local, caracterizando-se a autonomia pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas no respectivo Estatuto.
          59º
Por outro lado, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais[20] preceitua, no seu artº5º, que o Ministério Público é o órgão do Estado encarregado de, nos tribunais judiciais, representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar; goza de autonomia que se caracteriza pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela sujeição dos respectivos magistrados e agentes às directivas, ordens e instruções previstas na lei.
          60º
Face a este quadro normativo, Cunha Rodrigues[21] considera que “um órgão autónomo, constitucionalmente sistematizado no título dos tribunais, com regras de organização, estatuto e funcionamento fundados em princípios que caracterizam uma magistratura, prosseguindo fins que condicionam a intervenção jurisdicional ou visam conformá-la com os níveis de normatividade a que está sujeita, não pode deixar de ser um órgão do poder judicial”, sem que isso conduza à qualificação das suas funções como jurisdicionais, entendidas estas na “acepção técnico-jurídica de jurisdição, isto é, como actividade que define, com força de caso julgado, o direito aplicável ao caso”, sendo “desnecessária e estéril qualquer argumentação que pretenda demonstrar a natureza jurisdicional das funções exercidas pelo Ministério Público”.
          61º
Ponderando que o que “é decisivo na actividade do Ministério Público é o plano de actuação e os fins a que uma e outra estão pré-ordenadas e se dirigem”, conclui que “o Ministério Público é um órgão judicial, integrado, com autonomia, no poder judicial, embora dotado de atribuições que não são materialmente jurisdicionais nem se confinam às exercidas pelos tribunais”.
          62º
É esta também a conclusão de Gomes Canotilho e Vital Moreira quando sustentam que na “constituição judiciária”, o Ministério Público surge como um órgão do poder judicial. Segundo estes Autores, a Constituição não configurou o Ministério Público como órgão de natureza administrativa, dependente do governo, mas como órgão independente e integrante da organização judicial, com estatuto próprio e autonomia institucional e dotado de governo próprio.
          63º
De todo o modo, o certo é que vem sendo, una voce, considerado que o Ministério Público não integra a Administração Pública em sentido orgânico ou subjectivo e que não é um órgão da Administração – o que, de resto, a doutrina já considerava mesmo no sistema do Estatuto Judiciário[22].
          64º
E, se dúvidas pudessem restar, bastará atentar no seguinte: a própria lei é terminante ao afirmar que os actos relativos ao inquérito e instrução criminais e ao exercício da acção penal não são actos administrativos ou, pelo menos, não podem ser apreciados pelos tribunais administrativos - artº 4º, nº2, al.c) do ETAF.
          65º
Donde, não pode oferecer qualquer dúvida a conclusão segundo a qual a decisão de não acusação proferida pelo Ministério Público, no âmbito de um inquérito, não deve, nem pode, ser considerada “acto administrativo” pelo que não é passível de recurso hierárquico nem de impugnação judicial para os tribunais administrativos.
          66º
O legislador declaradamente não quis que o controlo judicial relativo ao exercício, ou não exercício, da acção penal viesse a ser solucionada por via de uma decisão proferida por outro tribunal, que não o integrado na jurisdição penal.
          67º
Na verdade, a admitir-se o recurso hierárquico, igualmente se admitiria a possibilidade de um tribunal administrativo ser chamado – como acontece na presente acção – a pronunciar-se sobre o acerto, ou desacerto de uma decisão do Ministério Público relativa ao arquivamento de um inquérito.
          68º
Ora, como já se sublinhou, essa sindicância judicial encontra-se, em exclusivo, atribuída por lei ao juiz de instrução criminal – a instrução criminal, que é por este presidida visa, como já se fez notar, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artº 286º, nº1 do CPP).
          69º
A Autora, se não fez atempado uso da faculdade que a lei lhe conferia de requerer a abertura da instrução e desse modo desencadear o controlo judicial da decisão de abstenção de acusação do Ministério Público, fez precludir esse direito de reapreciação judicial.
          70º
Face ao que se deixou dito, impõe-se a seguinte condensação:
- o controlo da decisão de arquivamento do Ministério Público é efectuado nos termos do CPP, pelo juiz de instrução; ou não havendo lugar a essa fase processual, pela intervenção hierárquica, de grau único, do magistrado do Ministério Público situado no degrau hierárquico imediatamente superior aquele que se absteve de acusar;
- os actos judiciários do Ministério Público, designadamente os levados a efeito no no âmbito do inquérito criminal, não têm natureza de actos administrativos.
          71º
Nos termos do artº 51º, nºs 1 e 2 do CPTA são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos; e ainda as decisões materialmente administrativas proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que actuem ao abrigo de normas de direito administrativo.
          72º
Como se deixou expresso, o acto impugnado não só não provém de uma autoridade não integrada na Administração Pública, como não foi praticado ao abrigo de normas de direito administrativo, bem como não consubstancia uma decisão materialmente administrativa – razão pela qual é inimpugnável perante os tribunais administrativos.
          73º
A inimpugnabilidade do acto impugnado constitui excepção dilatória atinente a um pressuposto processual específico do contencioso administrativo previsto no artº 89º, nº1, al.c) do CPTA, que obsta ao prosseguimento do processo e ao conhecimento do objecto do recurso e implica a absolvição da instância.
II – POR IMPUGNAÇÃO
          74º
Admitindo, como mero exercício de raciocínio, que se entendia o contrário do que se deixou dito, sempre importará referir que todas as diligências que a Autora pretende que o Ministério Público efectuasse no âmbito do processo-crime em referência, são - pelos motivos evidenciados no despacho proferido, em 8 de Junho de 2006, pelo Sr. Procurador da República (cujo teor se dá por reproduzido) – e face aos dados indiciários já recolhidos no inquérito, injustificadas e como tal inúteis, uma vez que, ainda que fossem levadas a efeito, a conclusão sempre seria a mesma: o arquivamento do inquérito.
          75º
Por último, importará apenas referir que a Requerida aceita os factos constantes dos artºs 1º a 14º, 17º, 18º, 25º, 26º, 34º, 35º e 37º da PI e que impugna todos os demais, bem como as conclusões jurídicas que deles de pretende extrair.
                                            
   Termos em que:
1. Deverá julgar-se verificada a invocada excepção da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, absolvendo-se a Requerida da instância;
2. Caso assim se não entenda, deverá julgar-se verificada a invocada excepção relativa à inimpugnabilidade do acto impugnado, absolvendo-se a Requerida da instância;
 3. A assim se não entender, deverá a acção ser julgada improcedente absolvendo-se a Requerida do pedido.
Não há lugar à remessa do processo administrativo uma vez que, conforme decorre do que se deixou articulado, tal processo inexiste.
 
Junta-se: despacho de designação de representante em juízo proferido pelo Exmº Senhor Procurador-Geral Distrital de Lisboa.
                                               
                                   
                                               (Ivone Maria Matos Matoso)
                                               


[1] Aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31/12.

[2] Cfr. Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 6ª edição, Almedina.

[3] Cfr. António Henriques Gaspar, “Ministério Público, hierarquia e processo penal”, in Cadernos da Revista do Ministério Público, Ano VI, págs. 79-91 – que se seguirá de perto.

[4] Cfr. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Coimbra, págs. 22 e segs.

[5] Cfr. José Souto de Moura, “Inquérito e Instrução”, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág. 125.

[6] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, in “O Inquérito no novo Código de Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág.73 e 74.

[7] Cfr. António Henriques Gaspar, ob. cit. pág.88.

[8] Cfr. “Curso de Direito Administrativo”, Vol.I, Almedina, pág.638.
[9] Cfr. António Henriques Gaspar, ob. cit., pág.81.
[10] Crf. Anónio Henriques Gaspar, ob. cit. pág.81.
[11] Ob. cit. pág. 81.
[12] Ob. cit. pág. 81.
[13] Cfr. J.M. Meirim, in “Recusa de cumprimento de directivas, ordens e instruções com fundamento em grave violação da consciência jurídica”, Revista do Ministério Público, nº51, pág.51.
[14] Cfr. António Henriques Gaspar, ob. cit. pág.84.
[15] cfr. Ob. cit. pág. 87.
[16] Cfr. “Direito Administrativo”, vol.III, 1989, pág. 66.
[17] Cfr. ob. cit. pág. 71.
[18] Cfr. Freitas do Amaral, ob. cit. pág. 75.
[19] Lei nº 47/86, de 15/10, alterada pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Jan., 23/92, de 20 de Agosto; 10/94, de 5 de Maio; 60/98, de 27 de Agosto rectificada pela Declaração de Rectificação nº7/99, de 16 de Fev; e 42/2005 de 29 de Agosto.
[20] Aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, rectificada pela Declaração de Rectificação nº7/99, de 16 de Fev. e alterada pelos seguintes diplomas: Lei nº 101/99 de 26 de Julho; Dec. Lei nº323/2001 de 17 de Jan.; Dec. Lei nº38/2003, de 8 de Março; Lei nº105/2003, de 10 de Dez.; Dec. Lei nº53/2004, de 18 de Março; Lei nº 42/2005, de 29 de Agosto; Dec. Lei nº76-A/2006 de 29 de Março e Dec. Lei nº8/2007 de 17 de Jan.
[21] In “Em nome do Povo”, Coimbra Editora, 1999, pág.99.

[22] Cfr. Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 106º, nº 3580, pág.271 e segs; Paulo Otero, in “Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa”, Coimbra, 1992, pág.238-240.

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